Capítulo 8 – Resiliência
Conto: Li Wang
Ela deu um passo à frente. Sozinha.
Os primeiros movimentos vieram como um vendaval. Um corte horizontal. Li girou o corpo, desviando com precisão e, num único movimento, acertou uma cotovelada no maxilar do agressor. Ele caiu, mas outro veio por trás. Uma faca deslizou contra suas costelas. Não a perfurou profundamente, mas ardeu. Ela cambaleou e, em seguida, tomou um soco no rosto. O sangue escorreu pela lateral de seu corpo.
O som do passado ecoou em sua mente.
Ela era uma menina outra vez. Os pés descalços no ringue. Um treinador a observava de braços cruzados.
— Levante-se, Li Wang — dizia ele.
Ela se ergueu no presente, ignorando a dor nas costelas. Cuspiu sangue. O gosto metálico reacendeu o instinto de sobrevivência. Quando o segundo homem atacou de novo, ela girou com o calcanhar e, com o impulso, quebrou-lhe o nariz com um soco brutal.
Outro ataque — um chute, dessa vez. Ela bloqueou com o antebraço. Sentiu o impacto no osso, mas não cedeu. Respondeu com um chute lateral que o derrubou.
O terceiro homem veio em velocidade, faca em punho, mirando o peito. Ela desviou parcialmente, mas foi atingida de raspão na clavícula. Caiu de joelhos. A visão embaçou.
— Não pare. Você não para até que eu diga. Entendeu?!
Era a voz ríspida de sua treinadora de kali, quando ela já era adolescente. Sangue escorria de seus lábios em cada sessão de treino. Mas ela nunca foi autorizada a recuar. O castigo por desistir era pior que o próprio combate.
Ela se levantou com um rosnado contido. Seus pés deslizaram pelo chão molhado com a leveza de quem treinou anos no Muay Thai. Um soco direto. Depois, um uppercut. Joelhada.
O terceiro homem caiu.
Restavam dois. E vinham juntos.
O lado direito do rosto latejava. A camisa já manchada de vermelho na altura das costelas. Mas ela se posicionou novamente: pés firmes, queixo baixo, punhos cerrados.
Os dois atacaram em sincronia. Um pela frente, com golpes rápidos e agressivos; o outro circulando por trás, mirando seus pontos cegos.
Li girou, desviou do primeiro corte e bloqueou um chute com o antebraço, o impacto fez seu osso vibrar. Respondeu com um soco rápido e seco no queixo do homem à sua frente, mas não teve tempo de respirar. O de trás a agarrou pelos ombros e a jogou contra a parede.
A visão piscou em branco. Ela escorregou para o chão.
— Fraca.
— Você nunca vai vencer de verdade se continuar com medo.
As vozes do passado vinham em ondas. Gritos de instrutores. Sons de bastões de madeira rachando seu corpo adolescente.
— Levanta, Li Wang. Agora!
Ela se ergueu.
O primeiro homem avançou de novo. Ela segurou seu pulso no ar, torcendo até ouvir um estalo seco. A faca caiu. Ela girou, usou o corpo do oponente como escudo e chutou o outro no peito, fazendo-o recuar dois passos. Mas ele não caiu.
Li perdeu o controle.
Num surto de fúria contida, virou o corpo, pegou a faca no chão e desferiu uma sequência de facadas rápidas contra o rosto do homem à sua frente. Uma, duas, três, quatro — até sentir a mão escorregando pelo cabo da lâmina. O som dos ossos se partindo era abafado pelos próprios batimentos de Li.
Ele caiu, inconsciente. Irreconhecível.
O último ainda estava de pé.
Ela avançou como uma sombra viva, esquivou-se do corte instintivo e acertou uma joelhada na boca do estômago dele. Quando ele se curvou, ela cravou a faca em suas costas. Ele caiu de lado, gemendo de dor.
Mas ela não parou.
Montou sobre seu peito. Socou uma, duas, dez vezes. O rosto dele virou uma massa de carne ensanguentada, até que os braços nem reagiam mais.
Só parou quando ouviu a própria respiração arfante e os gritos de Dayse ao fundo.
— Li! Já chega! — Dayse estava assustada e maravilhada.
Ela se levantou, instável, arfando como um animal selvagem. Sangue escorria da testa. O braço latejava. As pernas tremiam.
Mas ela estava de pé.
Sentia os músculos em chamas. O estômago revirava. Observou os corpos ao redor, o sangue no chão, as mãos tremendo.
Havia algo naquele momento que não era só defesa.
Foi um reflexo profundo, primitivo…
Algo quebrado dentro dela que reagia antes que a razão pudesse falar.
Li cambaleou até Dayse, pegou Henry nos braços e disse, sem encará-la:
— Precisamos sair daqui.
O celular de Dayse vibrou. Nathan estava ligando.
— Fiquei sabendo que queria falar comigo… sentiu saudades?! — disse ele, antes de soltar uma gargalhada. — Ameaçar meu amigo foi golpe baixo. Gostei disso!
A voz era masculina, mas completamente diferente da de Nomura. Além disso, ele falava em italiano.
— Tá de sacanagem… italiano, jura?! — resmungou Li Wang, irritada. — Já percebi que, pelo resto da madrugada, serei excluída de todas as conversas importantes.
Dayse olhou para ela e riu, como se Li tivesse contado uma piada.
Nathan soltou outra risada curta.
— A garota de ouro, Li Wang… Ouvi falar muito de você. Tudo caminhava para que você se tornasse a 5ª Imperadora. Aliás, como está o pequeno Vangeance? — disse agora em inglês.
Li arregalou os olhos, surpresa.
— Como você sabe sobre Henry?! — perguntou, incrédula, a voz carregada de irritação. — Responda! Como pode saber do meu sobrinho se ele acabou de nascer?!
— Calma, tigresa. Não sou seu inimigo. Mas, quando se alcança uma patente tão alta quanto a minha, algumas fofocas chegam em primeira mão.
— Pare com as gracinhas! — gritou Li, cada vez mais impaciente. — Apenas eu, Andrew e Sarah estávamos naquele quarto quando escolhemos o nome dele. Como poderia saber disso?!
Nathan soltou uma gargalhada mais longa antes de continuar:
— Você realmente acredita que foi seu meio-irmão fracassado quem escolheu o nome? Esse garoto já estava destinado a nascer desde que os deuses lutaram pela supremacia.
— Do que você está falando, seu lunático?! — retrucou ela, os olhos varrendo o ambiente à procura de câmeras ou algo suspeito.
Dayse pegou Henry nos braços.
— Um dia você vai entender — disse Nathan. — Talvez morra no processo… mas não existe nada melhor do que conhecer a verdade.
— Nathan, nunca tive paciência para suas brincadeiras, e neste momento estou a um fio de revelar seu segredo para o mundo. É melhor colaborar e me dizer como sair deste maldito país em segurança — disse Dayse, séria, o olhar firme e a voz carregada de frustração.
— Certo, certo… Parece que o tempo deixou seu pavio ainda mais curto — respondeu Nathan, divertido.
— Você não imagina o quanto.
— Vá até o cais de Yokohama. Procurem por um navio pesqueiro chamado Violet. Lá, reencontrarão alguém importante. Peçam que as leve até a ilha Oshima. Tudo dependerá do poder de persuasão de vocês. Mas, se conseguirem chegar à ilha… haverá um avião esperando para levá-las para onde quiserem.
— Certo. Vamos, Li — disse Dayse, determinada.
Nathan retomou, agora mais sério:
— Ah, mais uma coisa, Li… se eu fosse você, não voltaria para a IGS. Como bem sabe, é apenas um esquadrão subordinado à ONU. E, por falar no demônio… pode ter certeza de que a ONU e todos os Imperadores vão te caçar como se fosse um animal.
Li arregalou os olhos, sentindo um calafrio percorrer a espinha.
— O quê?! Por quê?! — perguntou, assustada.
Nathan não hesitou:
— Neste exato momento, esse garoto por quem você está dando a vida… é a pessoa mais procurada do mundo. Além disso, aposto que já percebeu que a morte dos seus irmãos não foi um acaso. Enfim, tome cuidado. Pode acabar atraindo ainda mais atenção indesejada — completou Nathan, agora em chinês.
O mundo pareceu silenciar por um instante.
Li Wang virou o rosto lentamente, olhando para Henry, que dormia em seus braços. Seu coração bateu com força, como se tentasse escapar da realidade. Apertou os punhos com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Por um momento, tudo o que havia suportado, sangue, gritos, perdas, fugas. Pareceu pesar dez vezes mais sobre seus ombros.
Ela se aproximou de Henry, inclinando-se para tocá-lo no rosto. Mas, ao olhar para suas mãos sujas de sangue, sentiu-se incapaz de fazê-lo. A visão do bebê, tão frágil e indefeso, fez sua dureza de guerreira se despedaçar.
O olhar que antes era pura determinação se quebrou, revelando a dor, a dúvida e a imensa responsabilidade que agora carregava. O ar parecia mais espesso, como se cada respiração fosse um esforço para não desmoronar sob o peso de tudo.
Ali estava ela, no limite, em meio a uma batalha interna que ninguém podia ver. Seu corpo, cansado e marcado pela violência, tentava se manter firme. Mas a fragilidade do coração estava à flor da pele.
— Então é isso… — murmurou, a voz embargada. — Você vale mais do que todos nós juntos… E agora todos vão querer tirar você de mim.
Dayse a observava em silêncio, como se não houvesse mais nada a ser dito. Nathan também permaneceu calado do outro lado da linha, apenas o som leve de sua respiração podia ser ouvido.
Li Wang inspirou profundamente, recobrando a compostura. Seus olhos voltaram a brilhar com a mesma determinação que a mantivera viva até ali. Havia tristeza neles… mas também havia fogo.
— Que venham todos — disse ela, em voz baixa, quase como uma prece. — Se quiserem o garoto, terão que me matar primeiro.
Ela ergueu os olhos, agora firmes e implacáveis. O medo ainda estava lá, enterrado em algum canto dentro dela, mas não era ele quem guiava seus passos. Era algo mais profundo. Um juramento silencioso. Li puxou Henry um pouco mais para perto do peito, como se, naquele instante, tivesse certeza de que ele estava seguro.
Dayse, que a observava de perto, abriu um sorriso discreto. Um alívio genuíno se espalhou por seu rosto ferido.
— Sabia que você não ia recuar — disse com suavidade, sem tirar os olhos de Li.
Ela retribuiu com um leve sorriso, rápido e triste, como uma rachadura breve num rosto de pedra, o mesmo que carregava desde o início de tudo.
Do outro lado da ligação, Nathan soltou uma risada nasal, quase imperceptível.
Sua voz agora soava mais tranquila. Havia nela algo raro: alívio.
— Agora sim… — disse ele. — Agora eu posso deixar o garoto com você, Li Wang. Agora eu sei que ele está nas mãos certas.
O silêncio voltou a se impor. Um daqueles silêncios densos, cheios de significado, onde nenhuma palavra cabe, porque todas já foram ditas.
Li Wang respirou fundo e olhou para o céu. Estava escuro, mas ela sabia: logo amanheceria. E quando esse dia chegasse, tudo mudaria.
Ela se virou para Dayse.
— Vamos sair daqui.
E com Henry nos braços, os olhos atentos ao redor e um futuro incerto à frente, desapareceram na multidão.
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