Conto: Li Wang

    Já estava quase amanhecendo quando chegaram ao cais.
    Li e Dayse começaram a vasculhar o local em busca de navios pesqueiros, até que avistaram um com o nome “Violet” gravado na popa. Subiram a bordo com cautela e caminharam em silêncio pelo convés deserto, até que uma luz acesa e risadas abafadas vindas de uma das cabines atraíram sua atenção.

    Abriram a porta, e a cena os paralisou: um homem e duas mulheres, completamente nus, rindo sobre a cama. Assim que notaram as intrusas, as mulheres gritaram e o homem lançou uma garrafa de bebida na direção delas.

    Li reagiu por instinto, fechando a porta imediatamente, como escudo.

    — QUEM SÃO VOCÊS?! O QUE QUEREM AQUI?! — berrou o homem, com a voz arrastada pelo álcool.

    — Só queremos conversar! Somos amigas de Nathan! Ele disse que poderíamos procurá-lo! — respondeu Li, ainda atordoada.

    Virou-se, procurando o estado de Dayse. A amiga estava imóvel, tomada por uma fúria silenciosa.

    — Dayse… está tudo bem? — sussurrou Li.

    Mas Dayse não respondeu.

    De dentro da cabine, o homem berrou:

    — NATHAN?! NÃO CONHEÇO NENHUM NATHAN! SUMAM DAQUI, SUAS VADIAS!

    Antes que Li pudesse intervir, Dayse, mesmo debilitada, ergueu a perna e desferiu um chute contra a porta, arrombando-a. Avançou como um furacão. Assim que reconheceu o homem, lançou-se sobre ele, enforcando-o com força, como se cada segundo fosse um acerto de contas represado há anos.

    — SAIAM DAQUI, SUAS VAGABUNDAS! — vociferou ela, descontrolada.

    As mulheres, apavoradas, agarraram as roupas às pressas e correram pelo convés, ainda seminuas e aos gritos.

    — Dayse! O que está fazendo?! Se o matar, não teremos como sair do Japão! — gritou Li, tentando contê-la.

    Dayse respirava com dificuldade, os olhos cravados no homem, as mãos ainda apertando seu pescoço. Mas, de repente, hesitou.

    — Por que está fazendo isso, William? — perguntou, a voz embargada.

    O homem não respondeu. Apenas fechou os olhos, imóvel — como se não oferecesse resistência ou, talvez, desejasse o fim.

    Por fim, Dayse soltou-o, afastando-se com os punhos cerrados e o corpo inteiro tremendo. Saiu da cabine sem dizer mais nada.

    — Dayse, o que foi isso? — perguntou Li, indo atrás dela.

    — Ele é todo seu. Faça esse lixo nos levar até a ilha. Ou eu mesma acabo com ele. É isso que ele merece. — disparou, antes que Li conseguisse entender a dimensão daquela raiva.

    O silêncio que ficou na cabine era denso, sufocante. O homem tossia, massageando a garganta com uma expressão entre dor e sarcasmo.

    — Continua irritada como sempre… — murmurou, tentando se recompor.

    Li o observou com mais atenção. À luz fraca da cabine, percebeu a pele queimada pelo sol, os cabelos e a barba loiros desgrenhados, e os olhos verdes — assustadoramente parecidos com os de Dayse.

    — A saída é ali, caso não tenha percebido — disse ele, pegando uma garrafa de uísque caída no chão e bebendo como se fosse água.

    — Foi uma longa viagem até aqui. Preciso falar com você — disse Li, desviando o olhar, desconfortável com o fato de ele ainda estar nu.

    — Vai ser uma longa viagem de volta. Agora, dá o fora. Não tá vendo que tô ocupado?

    — Dá pra vestir alguma coisa? — retrucou ela, evitando encará-lo.

    — Meu barco, minhas regras. Se não tá gostando, a escada é por ali.

    Li soltou um suspiro, pegou o lençol que escorregava da cama e jogou sobre ele, cobrindo o essencial.

    — Vamos tentar de novo. Preciso da sua ajuda.

    — Ah, claro. Depois de quase arrombarem minha porta e me atacarem, querem “tentar de novo”.

    — Somos amigas de Nathan. Ele disse que você poderia nos levar até Oshima.

    — Já falei que não conheço nenhum Nathan! Se era só isso, faz o favor e cai fora do meu navio.

    Li respirou fundo.

    — Mas você conhece a Dayse. Nathan disse que ela te reconheceria.

    A mudança foi imediata. Ele se levantou bruscamente e lançou a garrafa contra o chão. O vidro se estilhaçou a poucos centímetros dos pés de Li.

    — FORA DO MEU NAVIO! AGORA!

    O som cortante do vidro despertou Henry, que começou a chorar, agitado.

    Li o acolheu imediatamente, balançando-o nos braços e sussurrando, tentando acalmá-lo.

    Ao perceber o bebê, o semblante do homem mudou. A arrogância sumiu num segundo. Ele vestiu uma cueca e um calção às pressas, como se, de repente, tivesse recuperado a noção da realidade.
    — Me desculpa… eu não vi que você estava com um bebê — disse ele, aproximando-se com um olhar hesitante.

    Li recuou instintivamente, protegendo o sobrinho com o corpo.
    — Ela é sua filha? — perguntou, a voz agora mais mansa, quase arrependida.
    — É um garoto. Filho do meu irmão — respondeu ela, firme, ainda desconfiada.

    Ele assentiu, voltando a se sentar na beira da cama.
    — Você disse que precisava ir a uma ilha. Que ilha é essa?
    — Oshima.
    — Por que querem ir pra lá… e por que agora?
    — Porque tem gente querendo matar essa criança. É o único jeito seguro de sair do Japão. Não tenho muito dinheiro, mas, se nos levar até lá, posso te pagar cinquenta mil dólares.

    O silêncio pairou por um momento. William a encarou, como se tentasse medir a verdade nos olhos dela.
    — Isso tudo é real? — perguntou, erguendo uma sobrancelha.
    — Sim — respondeu ela, sem hesitar.
    — Seu nome?
    — Li Wang.

    Ele ficou em silêncio por um instante.
    — Se você está com a Dayse… então não é brincadeira. Não precisa me pagar nada.
    — Por que mudou de ideia tão rápido?

    Ele não respondeu. Apenas se levantou e caminhou até a porta.
    — Veja onde a Dayse está. Zarpamos em cinco minutos.

    Li o observou por um segundo, sem entender a súbita mudança de atitude. Depois saiu da cabine para procurar Dayse.

    Sozinho, William se encostou na parede. O silêncio era quase absoluto, interrompido apenas pelo som do vento soprando pelas frestas da janela. Fechou os olhos, deixando a escuridão envolvê-lo.
    — É certo o que estou fazendo? — murmurou para o vazio.

    Como sempre, nenhuma resposta veio. Apenas o sussurro invisível do passado, ecoando entre as sombras de sua mente.

    As lembranças chegaram como uma avalanche: o hospital, o sangue, o choro que nunca foi ouvido. Sua filha havia morrido antes mesmo de nascer. Sua esposa… partira logo depois.

    Ele viu o rosto dela, sereno, como se tivesse aceitado tudo. Mas aquela paz, que talvez fosse um alívio para outros, era uma ferida aberta para ele. Nada o havia curado desde então. Nada nunca curaria.
    — Eu não queria que isso acontecesse… — murmurou, a voz falha, quase inaudível, fitando as próprias mãos, como se nelas estivessem impressos todos os erros que cometera.

    “Se eu tivesse agido mais rápido… se tivesse sido mais forte… talvez as coisas fossem diferentes”, pensou, amargando o peso da culpa.
    — Eu não posso deixar mais ninguém sentir a dor que eu senti… — sussurrou, tentando se convencer de que suas ações agora tinham propósito. Mas, no fundo, hesitava. O peso de suas decisões o esmagava mais do que gostaria de admitir.

    Fraquejar agora seria repetir o passado, e ele já perdera tudo uma vez. A morte não podia ser mais a resposta. Não desta vez.

    Mesmo assim, o medo de falhar latejava dentro dele, arrastando-o para o abismo, sem saber se haveria salvação ou apenas a queda final. A imagem da esposa, antes tão nítida, agora se desfazia na memória como névoa ao vento. Nenhum sinal, nenhuma palavra. Só o silêncio, e esse silêncio doía mais do que qualquer reprovação.

    Algum tempo depois, Li Wang encontrou Dayse no convés. O vento frio da madrugada agitava os cabelos das duas enquanto Li se aproximava com cautela.
    — Dayse, está tudo bem? — perguntou, observando a expressão melancólica da amiga.

    Dayse balançou a cabeça, respirando fundo para conter as lágrimas.
    — Me desculpa, Li… — disse, a voz embargada.
    — Você não precisa se desculpar.
    — Eu conheço aquele homem — sussurrou Dayse, desviando o olhar.
    — Ele te fez algum mal no passado? — Li perguntou, preocupada.
    — Não… — Dayse hesitou, antes de soltar a verdade: — O nome dele é William Green. Ele é meu irmão.

    Li ficou em silêncio por um instante, absorvendo a revelação.
    — Então por que você… fez aquilo com seu irmão? — perguntou, surpresa.

    Dayse passou as mãos pelo rosto, tentando se recompor.
    — Há alguns meses, recebi uma carta. Ele me contou que a esposa estava grávida. Você lembra? Eu até te mostrei o ultrassom… — a voz dela falhou brevemente. — Pelo tempo, a filha deles já deveria ter nascido. Mas… olha para ele. Está aqui, se deitando com prostitutas, bêbado, como se nada tivesse acontecido. Esse não é o William que eu conhecia.

    Li pousou uma mão no ombro da amiga, com suavidade.
    — Talvez haja uma razão para tudo isso, Dayse. Seu irmão… não me parece uma má pessoa.

    Dayse não respondeu. Apenas encarou o horizonte, onde o céu começava a clarear timidamente, como se tentando encontrar lá uma esperança que parecia tão distante quanto o passado que compartilhava com William.
    — Quando eu era criança, o admirava do fundo do meu coração. Assim como o nosso pai, ele era um exemplo de homem. Nada, absolutamente nada, justifica o que eu acabei de ver!

    Naquele instante, Li Wang entendeu que não havia palavras que pudessem aliviar a dor ou a decepção de Dayse. Não havia consolo possível. Por isso, apenas permaneceu ao seu lado — não com promessas ou argumentos, mas com presença. Às vezes, o silêncio é tudo o que se pode oferecer.

    Minutos depois, o navio partiu rumo a Oshima. A viagem foi curta, mas carregada de um silêncio espesso. William não apareceu uma única vez durante o percurso, como se estivesse se escondendo não apenas das duas mulheres a bordo, mas de si mesmo.

    Quando a ilha começou a despontar no horizonte, o celular de Dayse vibrou. Ela atendeu sem entusiasmo. Do outro lado, a voz inconfundível de Nathan explodiu com sarcasmo:
    — Olá! Como foi a viagem?! Se divertiram?! Aposto que sim! Deve ter sido um reencontro agitado, digamos assim!

    Dayse sequer respondeu. Apenas estendeu o celular para Li Wang, como se não tivesse forças para lidar com ele.

    Li pegou o aparelho, os olhos faiscando de raiva.
    — Onde está o avião? — perguntou entre os dentes, controlando o tom.
    — Calma! Honestamente, vocês duas se merecem. Não aguentam nem uma brincadeirinha e já ficam com raiva do seu benfeitor…
    — CADÊ O AVIÃO, FILHO DA PUTA?! — gritou Li, a voz ecoando no convés.
    — Ô, mulherzinha chata… Já sabemos onde vocês estão. Ele já está indo até vocês! — respondeu Nathan, rindo antes de encerrar a ligação.

    Li desligou o celular com força. Já era o bastante. Aquela voz era como veneno.

    Poucos minutos depois, um hidroavião pousou sobre as águas próximas. William, enfim, apareceu. Em silêncio, soltou o bote salva-vidas e o empurrou até a borda. Li foi a primeira a embarcar no avião. Quando olhou para trás, notou que Dayse ainda estava no bote. Estava parada diante do irmão, e parecia haver algo pendente entre eles.

    O barulho do motor impedia que qualquer palavra fosse ouvida com clareza.

    No bote, Dayse encarou William com olhos carregados de dor e raiva.
    — O que você quer me dizer? Vai explicar por que trocou sua filha e a memória da sua esposa por álcool e prostitutas? — disparou, sem conseguir esconder a mágoa.

    William baixou os olhos. Não havia mais espaço para ironias.
    — A nossa mãe morreu — disse, direto, quase como se aquilo estivesse entalado por tempo demais.

    Dayse paralisou.
    — O quê…? — a palavra saiu como um sussurro, esvaziada. — Quando?
    — POR QUE VOCÊ NÃO ME CONTOU?! — gritou Dayse, as lágrimas escorrendo sem controle.
    — Nosso pai também morreu — completou William, sua frieza agora servindo apenas como defesa para não desmoronar.

    Dayse ficou estática. O mundo parecia girar mais devagar ao redor dela. O ar se tornou espesso. Nada fazia sentido.
    — Minha esposa… e minha filha… — William murmurou, cobrindo os olhos com a mão enquanto as lágrimas enfim venciam sua resistência. — Sinto muito.

    Não houve consolo. Nenhum gesto. Apenas o silêncio amargo entre dois irmãos que, embora ainda de pé, estavam ambos quebrados.

    Minutos depois, Dayse subiu no hidroavião. Seu rosto não expressava mais dor, nem raiva — apenas uma apatia absoluta, como se o peso das revelações tivesse drenado todas as emoções possíveis.
    — Vou levá-las até o litoral da China — informou o piloto, já se preparando para decolar. — Um helicóptero as estará esperando. Ele as conduzirá até o local onde nosso avião principal está. Não se preocupem com fronteiras — vocês poderão ir para onde quiserem.

    A viagem seguiu em silêncio.

    Desde a morte de Yu, Li não havia pisado na China. Agora, vinte e um anos depois, não só estava de volta à terra em que nasceu, como também ao lugar onde perdera algo que jamais conseguiria recuperar: seu irmão.

    Após embarcarem no avião principal, que as esperava em uma base discreta no continente, foram levadas ao Reino Unido. Durante todo o trajeto de volta, Dayse permaneceu em silêncio, mergulhada em pensamentos que não compartilhava.

    Sempre que tentei entender o que se passava, ela me respondia com o mesmo tom apagado:
    — Está tudo bem… Você não precisa se preocupar.

    Mas eu sabia que estava longe de estar tudo bem.

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