Capítulo 1 – Memórias em Tons de Cinza
Conto: Andrew Oscar
Andrew Oscar jazia no chão, coberto de sangue, suor e lagrimas, à beira da morte refletindo sobre o que tinha feito em sua vida.
Paciência, persistência e esforço a combinação perfeita para o sucesso, segundo Napoleon Hill, autor cujos livros Andrew devorou durante a infância e adolescência.
Nascido em janeiro de 1970, Andrew recebeu o nome em homenagem ao avô paterno, um gesto de Edward Oscar, seu pai, que trabalhava como medico na cidade onde viviam. Embora a condição financeira da família fosse estável, o relacionamento entre Andrew e seu pai era distante.
Edward nunca deu a devida atenção ao filho, e Andrew, por sua vez, tentou várias vezes se aproximar, sem sucesso. Com o tempo, desistiu de tentar e aprendeu a se virar sozinho. Sua mãe falecera durante o parto, e Andrew sempre sentiu que essa perda era o motivo pelo qual seu pai o evitava.
Ele nunca perguntava sobre a mãe, pois sabia que isso trazia tristeza e pensamentos sombrios ao pai. No entanto, algo o incomodava profundamente: ele não sabia o nome da própria mãe. Essa ignorância fazia com que se sentisse como se sua existência fosse um erro.
Aos seis anos, Andrew começou a frequentar a escola, mas sua vida continuava marcada pela monotonia e pela falta de estímulos. Sem amigos, sentia-se isolado, e os adultos ao seu redor estavam ocupados demais com seus próprios problemas para lhe dar qualquer atenção. As atividades escolares eram fáceis demais, e ele logo se viu sem desafios.
Foi então que encontrou uma forma de se destacar e atrair um pouco de atenção: quebrar todos os recordes de notas da escola. Mas, com o tempo, até isso se tornou entediante, pois, não havia com quem competir. Em busca de algo novo, começou a aprender idiomas. Aos seis anos, já era poliglota, mas aprender línguas se tornou tão fácil que logo perdeu o interesse.
O que Andrew realmente queria era algo que o desafiasse, algo que o fizesse se sentir vivo. Mas, infelizmente ele nuca encontrou isso. Refugiou-se, então, nos livros onde podia viver uma nova vida, mesmo que apenas por um tempo.
Nas histórias que lia, Andrew sempre se colocava como protagonista, e em uma delas, ele encontrou um refúgio especial: nela, tinha um pai presente e uma mãe viva que o amava. Leu esse livro inúmeras vezes, mas, ao chegar à última página, era forçado a retornar à realidade, uma realidade que não queria enfrentar.
Em 1979, seu pai, Edward, partiu para a China como voluntário, para ajudar crianças carentes que se tornaram órfãos devido a guerra sino-vietnamita. Quando voltou, trouxe consigo uma menina de cinco anos chamada Li Wang. Ela tinha a pele clara, era baixinha, magra e de cabelos escuros.
Andrew nunca perguntou por que seu pai havia adotado Li Wang, nem por que ela aceitara vir com ele. Mesmo assim, ajudou-a a se adaptar à nova realidade, ensinando-lhe inglês.
No início, Li Wang teve dificuldades em aprender o novo idioma, mas após cerca de seis meses, ela já conseguia compreender a maior parte do que era dito. Andrew notou que Li Wang era muito grata ao seu pai e o via como um herói. Ela passava maioria do tempo ao lado dele, exceto quando estava tendo aulas de autodefesa com vários professores.
Andrew sentia uma ponta de inveja de Li Wang por poder passar tanto tempo ao lado de Edward, algo que ele próprio nunca havia conseguido. No entanto, ele era medroso demais para tentar se aproximar do pai novamente, temendo ser afastado mais uma vez.
Em 1981, Andrew enfrentou um desafio inesperado. Uma aluna chamada Sarah Isla conseguiu igualar suas notas em todas as matérias, com a diferença de que ela terminou as provas dez minutos mais cedo. Isso o fez questionar se Sarah era mais inteligente do que ele.
Intrigado, Andrew se aproximou dela para conhece-la melhor, mas logo descobriu que, além de inteligente, Sarah era também extremamente bonita. Sua pele clara, os cabelos castanhos, e os olhos que pareciam transmitir uma sensação de paz, deixaram Andrew completamente encantado.
Sentindo-se pressionado, Andrew agiu de forma imatura: desafiou Sarah para uma disputa de notas no próximo simulado de matemática. No entanto, ela respondeu de forma direta e bem-humorada, dizendo que não queria competir e que ele tinha “cara de bobo”. Sua risada doce ficou gravada na mente de Andrew, que sem se dar conta sentiu-se cada vez mais atraído por ela.
Essa interação deixou um sentimento estranho em seu peito, como se quisesse chamar a atenção de Sarah, mesmo que isso significasse agir de forma ridícula. Em vez de se afastar como normalmente fazia, passou a se aproximar dela com frequência, sempre com um pretexto bobo de desafiá-la, embora no fim eles somente brincassem e se divertissem juntos.
Com o passar do tempo desenvolveram o hábito de observar as nuvens lado a lado, e Andrew passou a levar doces para dividir com ela. Era sua maneira de agradá-la e Sarah sempre reagia com entusiasmo.
No entanto a personalidade de superioridade de Sarah às vezes irritava Andrew, que sentia vontade de dar-lhe uns cascudos. Em vez disso, ele apenas puxava suas bochechas.
Sem sombras de dúvida, um dia em específico ficou marcado na memória de Andrew.
O céu estava limpo naquela tarde, com nuvens esparsas navegando lentamente pelo azul. Andrew e Sarah sentaram-se sob uma árvore, compartilhando alguns doces que ele havia guardado. Ela estava particularmente animada — talvez fosse o sol, ou talvez fosse ele.
— Você sabe — disse Sarah, com um sorriso travesso —, se formos pensar bem… eu sou como uma deusa. A mais bela do vilarejo. — Ela ergueu o queixo, teatral.
Andrew arqueou uma sobrancelha, rindo.
— Modesta também, pelo visto.
— Ei! Deusas não precisam de modéstia. — Ela estendeu a mão, como se esperasse que ele a beijasse. — Ajoelhe-se, mortal. Peça por um desejo.
Andrew olhou para ela por um segundo, depois deu um suspiro exagerado e se ajoelhou diante dela, com um sorriso debochado.
— Ó grande e poderosa Deusa Sarah… eu trago a ti minha oferta — disse, estendendo um doce. — Em troca, peço apenas uma coisa.
Sarah arqueou uma sobrancelha, divertida.
— E qual seria seu desejo, súdito?
Ele a olhou nos olhos, mais sério por um instante.
— Que você passe o resto da vida ao meu lado.
Sarah congelou. Por um segundo, toda a brincadeira se dissipou. Depois, ela cobriu o rosto com as mãos.
— Idiota! Idiota, idiota, idiota! — disse repetidas vezes, tentando esconder as bochechas vermelhas.
Andrew se levantou, confuso.
— O quê? Eu disse algo errado?
— Você… — ela murmurou, ainda escondendo o rosto. — É mesmo um completo idiota…
Andrew coçou a cabeça, olhando para ela, sem saber se tinha ido longe demais… ou se, talvez, estivesse mais próximo do que nunca.
Meses haviam se passado desde que Andrew conhecera Sarah. A relação entre eles havia florescido lentamente, quase como se ambos tivessem medo de admitir o que sentiam. Foi então que, numa tarde tranquila, enquanto caminhavam juntos pelos campos, Sarah o convidou para jantar em sua casa.
— Meu pai quer te conhecer — disse ela, sorrindo.
Andrew congelou por um segundo.
— Seu… pai? — perguntou, tentando manter a voz firme.
— Sim.
Ele assentiu, forçando um sorriso.
— Claro… vai ser ótimo.
No caminho de volta para casa, uma sensação estranha o acompanhou. Um arrepio que se espalhou por sua espinha como um toque gelado. Não era medo exatamente. Era algo mais instintivo, quase como se o ar ao redor ficasse mais denso toda vez que pensava na figura paterna de Sarah.
À noite, antes de sair, ele ficou parado diante do espelho por um longo tempo. Penteou o cabelo, ajeitou a gola da camisa e suspirou.
— Bom… se eu morrer hoje, pelo menos vai ser com o estômago cheio — murmurou, tentando brincar com a tensão.
A ideia de experimentar uma refeição feita por uma mãe, algo que nunca teve, aquecia seu coração. Era um gesto simples, mas para Andrew, era quase um sonho.
Andrew estava nervoso ao chegar à casa de Sarah, ansioso para conhecer seus pais. Ouviu rumores de que o pai dela era ex-combatente do exército. Perdido em pensamentos, não notou quando um homem alto e musculoso abriu a porta. Andrew tentou se apresentar, mas as palavras saíram embaralhadas. O homem, com um sorriso ligeiramente sinistro, disse:
— Entre. Está esperando um convite formal?
A voz rouca, o cheiro de cigarro recém-acendido e o rifle pendurado na parede atrás do homem fizeram Andrew sentir um medo intenso. Sua voz tremeu, suas pernas fraquejaram, e seus instintos gritavam que aquele homem era perigoso. Andrew apenas conseguiu balançar a cabeça, assumindo que aquele era o pai de Sarah.
Aterrorizado, pensou que Christopher Evans Isla, pai de Sarah, iria matá-lo. Passou pelos cinco estágios do luto, desde a negação até a aceitação em uma fração de segundos, e por fim, chorou e implorou por misericórdia.
Christopher, que até então se mantinha em silêncio, explodiu em gargalhadas.
— Cara… você precisava ver a sua cara! Foi hilário! — Ele ria tanto que mal conseguia terminar a frase.
Andrew cerrou os punhos, o rosto vermelho de vergonha e irritação.
— Isso é algum tipo de piada pra você?
— Claro que é! — respondeu Christopher, enxugando uma lágrima de tanto rir. — Você realmente achou que eu ia te matar só porque está namorando minha filha?
E caiu na risada outra vez.
Após se recuperar do susto, Andrew entrou na casa e viu Sarah. Ela estava deslumbrante em um vestido verde, uma imagem que ficou gravada em sua mente por muito tempo.
— Uau, Sarah… você está incrível — disse Andrew, encantado.
— Ah, obrigada. É só um vestido velho. Minha mãe quem fez.
Andrew não conseguia desviar o olhar. Sarah notou. Ficou corada e sorriu de leve.
— Bom, bom… se eu soubesse que um vestido te causaria esse tipo de paralisia, teria mandado costurar um pra mim também — disse Christopher, caçoando, antes de cair na gargalhada.
A mãe de Sarah ouviu e riu junto.
— Christopher, querido, para com isso… vai acabar constrangendo nossa filha.
Christopher encostou-se na parede, com cara de inocente.
— Estou só dizendo o que todo mundo está pensando. Quer dizer… olha pra cara dele. Se babar mais um pouco, vai precisar de um balde.
— Mãe, fala alguma coisa! — reclamou Sarah, irritada com as brincadeiras do pai.
— O que eu posso dizer? Seu pai está certo. E, além do mais, é tão bom ver a casa cheia de novo.
Sarah olhou nos olhos de Andrew por um instante, depois desviou o olhar, visivelmente envergonhada.
— Eca. Amor, eles estão se paquerando na minha frente — disse Christopher com um sorriso debochado. — Essas crianças de hoje em dia não têm mais respeito pelos mais velhos.
— Ei! Isso não é verdade! — Andrew e Sarah disseram ao mesmo tempo, e então se olharam, surpresos. Em seguida, os dois baixaram o olhar, corados.
— Eu não disse? — Christopher ria sem parar.
“Ele é completamente diferente do meu pai.” — Pensou Andrew.
Alguns meses se passaram, e Andrew se tornou amigo de Christopher, que o aconselhava e o levava para caçar frequentemente.
A luz dourada da manhã filtrava-se entre as árvores altas. O cheiro de terra úmida e folhas frescas invadia o ar. Christopher caminhava à frente, o rifle apoiado no ombro e passos firmes. Andrew o seguia de perto, mais concentrado do que de costume.
— Está ouvindo isso? — Christopher sussurrou, agachando-se atrás de um tronco.
— Sim! — respondeu Andrew, olhando ao redor. — Um jovem veado.
Christopher assentiu com um sorriso.
— Isso mesmo. Já está começando a pensar como um caçador.
Andrew deitou-se no chão com cuidado, apoiando o rifle.
— Calma, espera ele sair do arbusto — disse Christopher, observando o veado à distância.
— Vamos, mais um passo… — murmurou Andrew.
Finalmente, o cervo apareceu entre os galhos, imponente.
Andrew segurou o fôlego, mirou e disparou.
A bala passou à frente do animal, que se assustou e correu floresta adentro.
— Quase. De novo. — Christopher comentou.
— O vento desviou a bala. E além disso, ele se mexeu. — Andrew respondeu, se defendendo enquanto se levantava.
— Claro, a culpa é sempre do vento. Daqui a pouco você vai dizer que o cervo se abaixou de propósito.
— Vai ver ele sabia que eu estava aqui. Talvez ele me espionando. — Andrew disse, sarcasticamente.
— Se os cervos estão falando sobre você, então é melhor começar a acertar. Ou logo eles vão começar a te caçar.
E, mais uma vez, caminharam lado a lado pela mata, como se fossem pai e filho.
Com o tempo, a confiança entre eles aumentou e durante suas conversas diárias Christopher revelou muito de seu passado, embora Andrew ainda sentia algo estranho, como se ele estivesse escondendo algo.
As visitas à casa de Sarah se tornaram frequentes. E, dia após dia, Sarah conseguiu transformar os dias monótonos de Andrew em belas memórias, memórias que ele guardaria para sempre.
No entanto, um trágico dia estava por vir…
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