Dhaha

    O grupo chegou na cidade na manhã seguinte, não disseram uma palavra sequer durante a viagem. Mirena carregava Roger apoiado em seu ombro.

    O céu estava nublado, as pessoas usavam roupas grossas para se proteger do frio que chegara.

    — Ei! Eles chegaram! — Um dos aldeões gritou para os outros.

    — Venham pessoal! — Outra aldeã puxou o grupo.

    Uma multidão se formou ao redor dos três, os recebendo com aplausos e gritos. Olhares cheios de esperança os atravessaram.

    O garoto se manteve  de cabeça baixa, olhos levemente cerrados e estômago girando. Mirena não disse uma palavra, somente olhou para a multidão como se procurasse por alguém.

    — Mocinha! — gritou um senhorzinho baixo, de cabelos e bigode grisalhos. Reconhecia bem, era o comerciante.

    Dhaha viu a expressão da garota fechar, uma sombra cobriu seus olhos.

    — Que bom que conseguiram voltar! — disse o senhorzinho, com um sorriso brilhante.

    — Errr… sim… que bom… — respondeu a garota, com a voz fraca e sem convicção.

    — Esse aó… é o Roger?

    — Sim… eu fiz o tratamento básico mas… melhor levá-lo para um médico…

    — Ah! Sim, claramente, mas… — O velho se virou para as costas da garota, procurando o restante do grupo. — Onde estão os outros?

    Mirena baixou o olhar. Dhaha segurou a respiração. O velho franziu a testa, esperando.

    — Senhorita… onde…

    — Mortos. — disse ela, num sussurro.

    — O… que…?

    — Todos… todos eles morreram… — A garota virou o rosto, escondendo as lágrimas. Seus punhos cerraram até quase sangrarem.

    — Não… não pode ser, não é? Eles eram tantos… e eram bons! Isso é… impossível…

    — Eu sinto muito…

    — E… e as pessoas desaparecidas? — ele perguntou, agora em desespero. — A missão era sobre elas, não era? Vocês encontraram alguém?

    Ela não respondeu, apenas estendeu a mão. Na palma, um pequeno laço de cabelo, gasto e sujo de terra, era tudo o que restara.

    O comerciante caiu de joelhos no chão frio, sua respiração estava buscando pelo máximo de oxigênio que pudesse conseguir, suas pupilas estavam finas como pontos perdidos. Lágrimas escorreram dos olhos, caindo sobre o pequeno enfeite nas mãos.

    Sem dizer uma única palavra, o homem desabou. As comemorações pararam ao ver a cena, notaram que mais nenhuma pessoa saía da floresta.

    Outros caíram em desespero com Mirena entregando os pertences restantes. Aqueles que tiveram seus entes sequestrados choravam apoiados nos entes que restaram, uma mãe chorava pelo filho que recentemente havia se tornado aventureiro, um homem chorava pela noiva que abandonaria as aventuras para se casar.

    O que começou com aplausos e cantoria, acabou com lágrimas e angústia.

    Dhaha podia apenas olhar. Não conseguiu salvar aquelas pessoas, nem mesmo conseguiu estar junto deles no final, não conseguiu impedir o próprio líder de se perder na dor. Tinha apenas sobrevivido por Mirena ter o salvado.

    “Se eu só tivesse entrado no lago…”, ele não havia se tornado o herói que queria.

    Roger foi entregue aos médicos, que o trataram de antemão. Mirena saiu primeiro, mas Dhaha logo saiu da enfermaria de cabeça baixa, a lembrança do amigo preso a um olhar morto era demais para ele.

    Halvar havia os pago minutos antes, em uma mistura de felicidade por ter sobrado dinheiro com a tristeza da perda.

    O garoto caminhou pela cidade, e mesmo com o brilho do sol, tudo parecia escuro e cinza. O lugar não lembrava nem um pouco o que fora alguns dias atrás.

    As pessoas tinham rostos sérios, trabalhando precisa e mecanicamente. Não se comprimentavam, não conversavam, não viviam.

    Ele parou em uma praça, sem destino para o qual rumar. Nem sequer sabia o que havia acontecido na caverna.

    Se sentou em um banco, encarou o céu e soltou um suspiro. As pessoas passavam de um lado ao outro, alguns olhavam com pena, outros com desgosto.

    — Dhaha? — perguntou uma voz familiar, Mirena.

    — Ah… é você, Mirena.

    A mulher se sentou ao lado do amigo. O vento gelado batia contra a dupla, seus corpos tremiam.

    — Hoje está muito frio, não está? — começou a garota.

    — Sim, parece que tacaram neve na minha cara… — respondeu o douradiano.

    — E você já viu neve alguma vez?

    — Não, mas nem preciso. Já estou congelando o suficiente.

    — Não é melhor ir para perto de uma das máquinas a vapor então?

    — Nem pensar! Elas soltam muita fumaça, mas… — Dhaha olhou para o nada, como se entendesse tudo. — Você já percebeu como o cheiro de fumaça parece pipoca, só que estourada em um vulcão?

    — Depende. A sua pipoca de vulcão tem manteiga ou é daquelas sem gosto?

    — Com certeza manteiga. Muita. Daquela que gruda no céu da boca e nunca mais sai. — Dhaha soltou uma risada curta.

    O estômago de Mirena roncou alto, não comia desde o peixe frito.

    — Está vendo? Meu estômago está revirando e você aí, falando de comida. Que tipo de monstro é você? — A garota balançou a cabeça, fingindo desapontamento.

    — O tipo que sobrevive a desastres e ainda arranja tempo pra pensar em lanches. Tipo um… glutovivente.

    Glutovivente… Horrível. Vai para a lista das palavras que você não devia inventar nunca mais. — A ardenteriana soltou uma risada leve, que se desfez lentamente.

    Os dois ficam em silêncio novamente. Um silêncio desconfortável.

    — Dhaha… Acha que… que dava para ter feito algo diferente? Como… qualquer coisa que não fosse só… sobreviver? — Mirena olhou para seu braço mecânico com os olhos marejados.

    — Sim… eu nem estava lá. Quando vocês desceram, eu fiquei na floresta, com medo.

    — Mas e se mesmo que você estivesse… e se nem assim fosse o bastante? — Sua respiração acelerou com as lembranças do ocorrido. — Aquele homem era…

    — Homem? Que homem? — Dhaha ajeitou sua postura e encarou a amiga.

    — O mago que invocou aquele colosso.

    — Tinha um mago lá?!

    — Sim, ele era… aberrante. Seu corpo era cadavérico, cheirava como a própria morte. — A mão da garota tremeu, mas não de frio. — Matou um dos nossos com o mover de um dedo, e depois…

    — E depois…?

    — Invocou aquilo com o levantar de uma única mão!

    — Você lembra pra onde ele foi?

    — Eu não…

    “Tsc! E pensar que acreditei naqueles boatos sobre a página do grimório! Estarei esperando em Engrenora, titã. Seja rápido.”, a frase cruzou a memória da garota como um tiro.

    — Ele veio pela página…

    — Página? Que página?

    — A página do grimório da primeira maga. Lembra que eu disse que vim para cá por causa disso?

    — Você acha que ele conseguiu ela?

    — Duvido bastante, era apenas… — A memória do desenho de Pedrão e do autógrafo cortaram sua linha de raciocínio. Seus olhos morreram por alguns segundos — um boato…

    — Tá, mas você lembra pra onde ele foi?

    — Ele havia dito algo sobre ir para Engrenora.

    — O reino de Engrenora? Perfeito. — O garoto levantou e esticou os membros.

    — O que vai fazer?

    — Ir para Engrenora, não é lógico?

    — Mas você vai morrer se for sozinho! Não vê que nada do que fizemos foi o bastante? — Agora foi Mirena quem se levantou, encarando os olhos do douradiano.

    — Não é questão de ser o suficiente. Se não fizermos, mais gente vai morrer, igual essas pessoas.

    — Mas…

    — Não tem “mas”. Mesmo se já for tarde demais, se ainda tem algo aqui dentro que faz a gente se mexer, então ainda tem algo que pode ser feito.

    — Então é isso? Continuar mesmo quando não tem mais para onde ir?

    — Nós temos pra onde ir: Engrenora!


    Mirena

    O barulho das locomotivas era ensurdecedor, as pessoas andavam apressadas para não perderem suas viagens. A estação estava lotada.

    Não era muito distante de Eldon, sendo uma ironia ter algo tão avançado perto de uma cidade tão atrasada no tempo. Mirena e Dhaha já haviam comprado suas passagens e agora estavam esperando o próximo trem.

    — Já esteve em Engrenora? — A mulher cutucou o amigo, já não tinha mais como voltar atrás em suas decisões.

    — Não, nem mesmo estive em um trem. Temos poucos em Areia-Dourada, e a maioria é de carga.

    — Entendi. Ouvi dizer que Engrenora é um dos reinos mais desenvolvidos do distrito, será que é bonito?

    — Eu espero que seja mais organizado que essa estação aqui, é muito apertada.

    — O que pretende fazer quando chegar? 

    — Vou direto na sede da guilda, quero falar sobre o necromante que falou.

    — Verdade, acho que vou junto… Ah! É o nosso trem.

    Os dois correram para a entrada, cavando entre a multidão de pessoas. Por pouco não perderam a locomotiva.

    Ao longe, acima do teto da estação, um pássaro sombrio os observava. Estava completamente podre, com as asas costuradas ao corpo, seus olhos se moviam simétricos demais para um animal.

    — Então foram eles que derrotaram o titã… — falou uma voz rouca, observando pelos olhos do pequeno defunto. — Eu esperava um pouco mais.

    O pássaro abriu voo, rumando ao norte. Penas negras flutuavam no ar.

    Lá embaixo, dentro do vagão, Mirena sentiu um calafrio repentino subir pela espinha. Olhou pela janela, mas não viu nada além do céu cinza e os prédios se arrastando para trás.

    — Hoje está bem frio… — murmurou ela.

    O trem apitou, a viagem continuou para Engrenora, e a sombra também.

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