Mirena

    O apito do trem ecoava pelo campo, os olhos da mulher lutavam para se acostumar com a luminosidade do dia. 

    — Argh! Faz tempo que eu não andava de trem, minhas costas estão um pouco travadas — Mirena se ergueu o suficiente para poder se esticar. — Meu corpo inteiro parece uma dobradiça enferrujada.

    Dhaha estava saltitando igual um lunático e fazendo polichinelos no corredor. A garota encarou aquilo incrédula, não sabia se ele era assim naturalmente ou se ele estava apenas com energia acumulada.

    O garoto não portava a armadura típica, mas sim suas roupas casuais. Camisa de pano preta colada em seu peito, calça bege de canos largos e um tecido amarelado enrolado na cintura. Um par de sapatos pretos pontudos, um par de braçadeiras metálicas nos bíceps, braceletes nos punhos e anéis de aço em todos os dedos.

    Ao olhar pela janela do vagão, Mirena viu o grande reino mecanizado se formando no horizonte. 

    Era um imenso reino circular,  com prédios de latão erguidos até cortarem os céus, dividido ao meio por uma torre do relógio feita inteira em aço. Nas alturas, pontes suspensas ligavam torres de observação e prédios-laboratório, onde cientistas com aventais manchados alimentavam suas máquinas com carvão e cristais de carma.

    As pessoas caminhavam entre monstros de metal que corriam pelas ruas, os famosos carros a vapor, além de alguns dirigíveis que cortavam os céus e pairavam sobre os telhados de zinco e os postes de latão. O som incessante de engrenagens preenchia o ar, perdendo apenas para as vozes dos vendedores da área comercial, que gritavam seus produtos e suas invenções.

    Um grande reino mecânico e unificado, como uma única máquina.

    Os dois desceram na estação, quase sendo levados pelas ondas de pessoas que saíam do vagão. Os olhos do garoto brilhavam com a grandiosidade mecânica, era uma criança em um parque de diversões.

    — Vamos procurar uma hospedaria e, após isso, procuramos a guilda. Certo? — perguntou Mirena, trazendo o amigo de volta para a realidade.

    — Beleza, te espero lá — respondeu ele, de forma automática, distraído com um jornaleiro mecânico.

    Ela encarou o garoto sem entender a resposta, mas decidiu que não valia a pena. Por fim, seguiram por mais algumas ruas. 

    A correria da cidade nauseava a garota, as pessoas esbarravam umas nas outras o tempo inteiro. Eles quase não tinham tempo para respirar.

    Um humano, vestido em seu belo terno preto, cartola e monóculo, trombou com a garota e logo se desculpou. Quando a garota foi devolver as desculpas, notou o olhar de julgamento do homem, uma análise rápida e desconfiada.

    — Senhor? — A ardenteriana perguntou, confusa.

    — Não… não é nada… Perdoe o esbarrão — respondeu ele, com passo adiantado e um puxão na cartola, enquanto escondia o próprio rosto.

    A garota respirou fundo e tentou ignorar, mas aquele olhar era profundo demais para ser o de sempre, era como se o homem a conhecesse. Um pouco mais à frente, conseguiam ver o prédio da guilda em meio aos tubos de metal.

    Ela observou as crianças que corriam nos becos e jogavam futebol com pequenas bolas de pano. Vestiam roupas diferentes das crianças de Eldon: eram de tecidos melhores, vestiam sapatos de couro e usavam adornos como gravatas borboletas e boinas.

    A bola veio em sua direção, mas ela a devolveu com um chute rápido. A bola voou para um lado completamente aleatório, Mirena era uma grande perna de pau.

    — Cuidado para não acertarem alguém, crianças — completou ela, com um sorriso forçado no canto da boca. As crianças se mantiveram em silêncio, encaravam a ardenteriana se afastar.

    Dhaha acompanhou a mulher, segurava o riso igual uma criança.

    — Fique quieto, Dhaha!

    — Claro, senhorita braço de ferro e perna de pau… Hahaha!

    Seu rosto ficou vermelho como um pimentão.

    Passaram pela área comercial, as pessoas gritavam seus produtos e seus preços ao vento, alguns conseguiam clientes, outros não.

    — Suprimentos! Quem quer comida? Temos frutas, carnes e cereais! — gritou um homem adulto de pouco cabelo e barba rala, rodeado de caixas de madeira.

    — Engrenagens! Engrenagens aqui! — falou outra, uma mulher negra com a roupa suja de graxa e uma máscara de solda acima do cabelo.

    “Engrenagens? Eu preciso de algumas para a reserva”, a garota parou para contar as moedas, o pagamento de Halvar viria a calhar.

    — Dhaha, eu irei comprar algumas engrenagens, quer ir atrás de uma hospedaria? Deve haver alguma perto da sede da guilda.

    ! Te espero por lá então. — O douradiano continuou o passo, encarava os arredores como um esquilo encara uma noz.

    A ardenteriana se aproximou da bancada que estava repleta de dispositivos, desde armas, peças e instrumentos, até aparatos difíceis de entender.

    — Bom dia, eu gostaria de comprar algumas engrenagens — disse Mirena, balançando a mão para chamar a atenção da vendedora.

    — Claro, em que posso aju… — A vendedora instintivamente deu um passo para trás, mas logo já tinha se recomposto. — Em que… em que posso ajudar?

    — Eu queria algumas engrenagens… — respondeu a garota, com uma das sobrancelhas erguidas.

    — Ah! Claro, errr… aqui! Quantas?

    A mulher tremia e evitava contato visual com a ardenteriana. Mirena estava acostumada com esse tratamento contra os ardenterianos, mas aquilo era diferente, era como se ela tivesse medo.

    — A senhora está bem?

    — Cla… claro!

    — Certo… são sete engrenagens… — A vendedora se apressou em entregar o pedido, nem se dando ao trabalho de oferecer mais produtos.

    Em questão de minutos, Mirena não estava mais na área comercial, avistando Dhaha à frente de uma construção próximo da guilda.

    Quando se reuniram, entraram na hospedaria. O edifício era bem cuidado, a tinta das paredes era recém-trocada, o piso era bem modelado, vasos de flores decoravam os cantos da recepção, e um grande tapete ia da entrada até o balcão.

    — Desde quando os humanos perderam a vergonha de encarar as pessoas? — murmurou a mulher ao amigo.

    — Desde sempre, talvez, mas… hoje parece mais do que isso — respondeu Dhaha, em tom baixo. — Alguns olhares não são de desprezo, eles parecem com medo.

    — Correto… eu senti isso também. Não é comum que tenham medo de nós.

    Caminharam até a recepcionista, ela possuía uma aparência muito jovial, além do grande par de orelhas pontudas na lateral da cabeça. Estava agarrada a um telefone de disco.

    — Sim! Um bonitão em frente à hospedaria Recanto… Eu tenho noção disso, senhorita Syndona! Ah! Bom dia, em que poderia ajudá-los? — Ela bateu o telefone no gancho assim que notou os dois.

    — Nós queríamos alugar dois quartos, por favor. — Mirena começou, seus ombros estavam mais leves de poder conversar com outra ardenteriana.

    — Claro, esperem apenas alguns minutos enquanto checo quais quartos estão disponíveis. — A atendente fez uma mesura enquanto apontava para uma mesa próxima a parede do estabelecimento. — Podem aguardar por ali, por favor.

    Ela parou, deu um passo para o lado e examinou Dhaha da cabeça aos pés.

    — Sabe, o seu amigo tem uma beleza que deveria vir com uma placa de “cuidado”. — Ela piscou e, antes que qualquer um pudesse responder, voltou ao seu trabalho, pegando um mapa em uma gaveta.

    Mirena ergueu o cenho, confusa com o ataque surpresa da atendente. Dhaha sorriu e acenou para a atendente, como se fosse um elogio casual, completamente alheio ao que havia acontecido. 

    A mulher segurou a boca, tentando conter um ataque de riso. O garoto era realmente popular, atraía a atenção das pessoas, mas receber um flerte aleatório era algo novo de se ver.

    Eles caminharam até a mesa e se sentaram, começaram a observar as pessoas enquanto esperavam. Hóspedes iam e vinham, ignorando a dupla, o mesmo servia para novos compradores, eram apenas mais uma dupla qualquer. 

    Nenhum demonstrava medo deles.

    — Dhaha, tem algo estranho aqui — começou a garota.

    — Acha melhor sairmos? — falou Dhaha, escolhendo acreditar na garota.

    — Eu não sei, é como se só algumas pessoas estivessem assim, é como se… 

    Antes que a garota pudesse continuar, uma onda de passos coreografados ecoou do lado de fora. Um grupo de aventureiros surgiu na porta e se aproximou da dupla.

    Usavam roupas verdes, capacetes de águia cobriam seus rostos e pedaços de armadura estavam nas juntas. O brasão de uma folha de louro estava estampado na região do coração, e cada um portava um rifle em suas costas e uma espada em sua cintura.

    Dhaha colocou a mão em seu cabo, pronto para começar uma luta, mas Mirena o parou com a mão.

    — Boa tarde. Os senhores seriam “Dhaha” e “Mirena”? — perguntou um dos homens.

    Os dois se entreolharam.

    — Sim… há algo que podemos ajudar? — A mulher assumiu a conversa.

    O grupo os encarava com frieza, da maneira que se encara uma criatura, o mesmo olhar que Mirena viu daquelas pessoas. 

    O líder do grupo ergueu a mão segurando um distintivo.

    — Os senhores estão sendo detidos sob suspeita de assassinato, traição e conspiração contra a guilda! — disse ele, com uma calma desconcertante.

    Ela finalmente entendeu porque todos estavam os encarando daquela forma, olhavam para eles como criminosos.

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