A cela era pequena, as paredes eram de tijolos negros e resistentes, enquanto era selada por barras de prata. O garoto estava sentado em sua cama, seus punhos ligados por algemas, também de prata.

    Ele poderia resistir a ordem de prisão, mas preferiu atender o pedido da amiga, que estava sentada na cama ao lado.

    O sol mal conseguia pela janela, quadrada e barrada, o que tornava a cela em um cubiculo frio e escuro.

    — Mirena — disse Dhaha, encarando o teto.

    — Fala… — A ardenteriana conhecia esse começo de conversa, sabia que vinha besteira.

    — Sabe o lado bom de tudo isso?

    — Qual seria o lado bom?

    — Nós conseguimos duas camas, e de graça!

    A garota abriu um sorriso, deixando o riso escapar.

    — Isso é algo bom? Hahaha.

    Era surpreendente como os dois sempre conseguiam tirar algumas piadas, mesmo nas piores situações possíveis.

    — Claro que é! Imagina o quão caro seria o quarto naquela hospedaria. — Dhaha continuou,

    — É verdade…

    O silêncio cobriu os dois, mas foi rapidamente quebrado por Dhaha.

    — Então…

    — Então?

    — Quem a gente assassinou? E quem a gente traiu? E, principalmente, quando que conspiramos contra a guilda?

    — Eu… — A mulher cerrou os olhos, sua cabeça doía só de pensar nesse assunto. — Eu não sei…

    — Então não foi você que cometeu aqueles crimes?

    Os olhos da garota cerraram, indignados com a piada do amigo, pareciam os olhos de uma fera. Ela estava se segurando muito para não enforcá-lo com aquelas algemas.

    — Certo, não foi você! Já entendi! — respondeu Dhaha, se amontoando no canto oposto da cela com as mãos protegendo o rosto.

    Quando ele terminou sua piada, os passos de três pessoas puderam ser ouvidos no corredor. 

    — Senhor Dhaha, Senhorita Mirena? — falou um dos guardas, ele usava o mesmo uniforme dos aventureiros.

    O lado de fora da cela era uma prisão simples, com alguns corredores e outras celas. Era possível ver outros prisioneiros deitados em suas camas, apenas esperando pelo julgamento.

    — Nos acompanhem, por favor.

    Assim fizeram, se levantando e seguindo o grupo, ainda algemados.

    Foram levados até uma sala maior, ainda feita em tijolos, mas com as paredes devidamente pintadas em tons de cinza. Ao fundo se tinha armários lotados de papéis, além de alguns distintivos, e ao centro, uma mesa longa de madeira com duas cadeiras à frente e uma atrás.

    Uma mulher os encarava, ocupando a terceira cadeira. Sua pele era escura, seus cabelos eram lisos da raiz até um coque no topo da cabeça, mas se tornavam cacheados e volumosos depois dele. Portava uma armadura leve esverdeada, com o símbolo da guilda estampado no peito.

    Ao lado dela, de pé ao fundo, uma gelariana estava de braços cruzados e com um olhar penetrante. Sua pele era um azul turquesa, com um par de chifres ziguezagueantes saltando do cabelo branco e longo. Usava roupas que misturavam couro e lã, deixando apenas seus braços descobertos. Seus olhos eram o que mais chamava atenção, sendo pintados como um céu estrelado.

    — Nathan, Noah, podem se retirar. Nós cuidamos desses dois. — disse a mulher sentada. Sua voz era imponente e forte, mas sem ser grossa ou profunda.

    Os dois guardas saíram e os dois detidos se sentaram nas cadeiras restantes.

    — Muito bem… parece que a ficha de vocês é meio longa. — A mulher ajustou os óculos de leitura e folheou os papéis.

    Mirena se adiantou.

    — Com licença, senhorita…?

    — Thalwara — respondeu ela, sem levantar os olhos. — Pode chamar apenas de “Thal”.

    — Certo. Senhorita Thalwara… os guardas nos disseram as acusações, mas… ainda não entendemos o motivo disso tudo. Poderia nos explicar melhor?

    Thalwara suspirou, deixou os papéis de lado e pegou outro monte.

    — Vamos lá. Assassinato, traição, conspiração contra a guilda. Vocês foram para a floresta com um grupo de aventureiros liderado por Roger Willians, correto?

    — Sim — começou Mirena. — Nós partimos para a floresta pois algumas pessoas haviam sido sequestradas na noite anterior.

    — Entendo. Consta aqui, que os senhores retornaram para a cidade, mas somente vocês dois e o senhor Willians, gravemente ferido.

    — Certo — A arenteriana continuou. — Fomos atacados por lobos de prata enquanto estávamos na floresta, e lutamos contra o sequestrador após o encontrarmos.

    — Em seguida, consta que o senhor Willians não estava em condições de responder pergunta alguma, além de ter seu braço decepado. 

    A garota abaixou a cabeça, os vislumbres daquele dia vieram à mente.

    — Muitas pessoas morreram naquele dia… Eu não o julgo por estar assim, ele passou por muitas coisas — finalizou Mirena, cerrando os punhos.

    — E então, vocês passaram por tudo isso, mas decidiram não entregar nenhum relatório para a sede da guilda em Eldon?

    Mirena arregalou os olhos. Era verdade, haviam esquecido completamente disso. Roger estava ferido demais, eles tinham partido no calor da urgência, voltados no caos, e depois… simplesmente esqueceram.

    “Como a gente se esqueceu disso…?”, pensou a mulher. A vergonha veio logo em seguida, estavam em uma situação tão drástica por conta de um erro tão simples.

    — Eu… — tentou responder, mas a voz sumiu.

    — O garoto não sabe falar? — A outra mulher finalmente quebrou seu silêncio, erguendo seus olhos vorazes acima de Dhaha.

    — Perdão? — piscou Dhaha, surpreso.

    — Qual o seu depoimento?

    O douradiano sentia como se um oceano estivesse o esmagando, e ela nem mesmo tinha liberado seu carma.

    — Tudo bem, eu vou do começo — continuou ele. A história foi lenta e gradual, mas o garoto não poupou os detalhes que sabia.

    Conforme contava, seu corpo reagia às memórias, uma dose de adrenalina veio quando lembrou dos lobos e do urso, seu sangue ferveu e suas veias pulsaram quando lembrou de sua falha no lago. 

    Seus olhos ficaram distantes quando lembrou do colosso, que venceram por muito pouco, e por fim, seu rosto se contraiu ao lembrar da expressão do amigo.

    Mesmo que Dhaha pudesse mentir, seu corpo era como um livro aberto, que agora estava sendo lido por aquelas duas. A mulher mais alta o encarava não mais em ameaça, mas como uma ouvinte sincera.

    — E então eles nos levaram pra cela ali atrás…

    — Então vocês pretendiam nos avisar sobre o necromante? — perguntou a armadurada.

    — Sim.

    — Eu entendo… vocês se meteram em uma grande cilada. Vamos ver o que podemos…

    — Espere! — esbravejou a gelariana.

    Todos ficaram em silêncio enquanto ela se aproximava dos dois 

    — Garoto, me responda.

    — Sim…? — Dhaha não era de fugir de uma briga, mas seu corpo gritava para correr.

    — O que você vai fazer agora?

    O silêncio predominou. Dhaha queria dizer muitas coisas, mas todas elas entraram juntas em sua garganta.

    — Syndona, eu acho que… — Thalwara tentou falar, mas sua voz não era forte contra a gelariana.

    — Vamos, diga! Se soltarmos vocês dois agora, o que você vai fazer? — A gelariana cortou.

    Os olhos do douradiano brilharam como dois sóis, seu rosto fechou e seus dentes cerraram.

    — Eu… eu vou caçar aquele necromante até o fim do mundo!

    A mulher não desviou o olhar.

    — E por quê?

    — Porque é isso que um herói deve fazer! — Ele não pensou duas vezes.

    — Diga seu nome.

    — Eu sou Dhaha Sulfazyan, o Guerreiro de Aço!

    As outras duas se mantiveram em silêncio, esperando a reação da terceira. Para a surpresa de Mirena, e infelicidade de Thalwara, Syndona apenas abriu um sorriso, um sorriso pequeno, mas genuíno..

    — Eu gostei de vocês. 

    — Syndona! — esbravejou Thalwara, tentando impedir a aventureira de contrariar as regras da própria guilda.

    A mulher alta a ignorou e caminhou até a porta, se virou para o grupo e os encarou.

    — Vocês dois, venham comigo! — Ela abriu a porta e seguiu pelo corredor, como se soubesse que a seguiriam.

    Dhaha e Mirena olharam para a porta por alguns segundos, para depois se voltarem novamente à Thalwara.

    — Errr… a gente… pode? — murmurou Dhaha, pronto para se levantar.

    — Argh, só vão. — A mulher colocou as mãos sobre o rosto, como se tentasse aliviar o estresse. — Ela é o tipo de pessoa que os olhos não erram em um julgamento…

    Antes que pudesse terminar, Dhaha já estava correndo na direção da mulher. Mirena, que ficou para trás, se desculpou com uma mesura e saiu pela porta.

    Não muito distante, Syndona andava com um sorriso discreto no rosto, seus olhos brilhavam em azul claro, literalmente.

    “A mulher é inteligente, muito. E aquele douradiano…”, pensou, sentindo a lembrança reverberar como um eco. “Ele tem convicção em sua resposta, é a primeira vez que vejo essa coragem fora dos livros de história. Ele realmente é um dos Sulfazyan.”.

    Seu sorriso se ampliou, quase imperceptivelmente, mas cheio de orgulho.

    “Os dois têm potencial, não é qualquer futuro que os espera… Esse futuro é grandioso!”.


    Já havia passado das onze da manhã, o sol estava em seu pico. As pessoas andavam apressadas, quase corriam, pelas ruas de pedra. O cheiro forte da fumaça embrulhava o estômago de Mirena, que, junto de Dhaha, acompanhavam Syndona pelo complexo industrial de Alta-Engrenora.

    Engrenora era um reino muito grande, então foi dividido em duas grandes cidades. Elas eram separadas pela imensa torre do relógio ao centro, além do relevo hostil. 

    A Alta-Engrenora era o sonho de consumo dos inventores, lotada de indústrias de máquinas e bens de consumo, misturado com as bem trabalhadas áreas residenciais, lotadas de pessoas.

    Ao contrário, a Baixa-Engrenora era como um parque de diversões infernal dos cientistas. Era lotada de indústrias, mas indústrias de armas, e sua área residencial era qualquer lugar onde se pudesse deitar e dormir. A pobreza assolava a população, que sonhava em um dia poder ir para a cidade irmã e mudar de vida. 

    Para a felicidade da maioria das pessoas, a guilda do distrito se encontrava na Alta-Engrenora, o que encurtou o caminho para que ela se tornasse a segunda maior sede de todas. Ela tinha todos os recursos que precisava.

    Ao chegarem na guilda, se depararam com um complexo muito maior que um simples prédio. Dezenas de galpões e pequenos prédios estavam espalhados pelo térreo, grandes torres de observação se estendiam do chão aos céus, cortando o véu azul, e uma grande torre de base circular estava ao centro, atingindo seus, não tão singelos, vinte andares.

    — Senhorita Syndona…? — A garota tomou a frente.

    — Sim? — A mulher pálida respondeu sem desviar o olhar do caminho.

    — O que é tudo isso? Aonde estamos indo?

    Para o desespero de Mirena, ela não respondeu, apenas ergueu o sorriso e continuou caminhando até um prédio vermelho de tijolos. O edifício esbanjava uma placa de mais de cinco metros com a escrita “Arquivo”.

    “Ela realmente não vai dizer nada? Isso é o que? Um sequestro?”, pensou a ardenteriana com um leve tremor passando pelo corpo.

    Por dentro, o prédio era bem mais apertado do que parecia. Rodeado de armários e gavetas, além de papéis jogados por toda a parte e uma grande mesa circular ao centro.

    — Sentem-se, eu vou explicar nova situação de vocês — falou Syndona, finalmente quebrando o gelo.

    Os dois obedeceram, não poderiam escolher muito quando uma mulher de quase dois metros e com a presença de um monstro os mandava fazer algo.

    — Como vocês não ser da cidade, vamos às apresentações. — Ela se sentou em uma das cadeiras, ficando de frente para os dois. — Pode me chamar Syndona. Eu ser uma das aventureiras da sede de Engrenora.

    — Eu… — Mirena hesitou entre se manter em silêncio e entrar no jogo da aventureira. — Eu me chamo Mirena, sou uma acadêmica e viajante…

    — Eu sou Dhaha Sulfazyan, o Guerreiro de Aço! E vou ser o próximo herói do continente de Arthuria! — repetiu o garoto, com o nariz levemente empinado.

    Com um pequeno riso, Syndona colocou um bolo de papéis sobre a mesa.

    — Parece que temos duas pessoas bem diferentes aqui. 

    — Eu que o diga… — murmurou Mirena, o mais baixo que pôde.

    — Você disse algo?

    — Não!

    — Está bem… — concluiu Syndona, estendendo alguns papéis sobre a mesa. — Como vocês já saber, estar sob suspeita de serem criminosos, e eu que impedir que vocês sejam presos..

    — Obrigado…? — perguntou Dhaha, com as sobrancelhas levemente franzidas.

    — Hahaha! Fiquem calmos, eu não vou morder vocês, mas…

    “Tinha que ter um “mas”, não tinha?”, pensou a ardenteriana, sentindo a bomba que cairia sobre seus colos.

    — Eu não poder proteger vocês o tempo todo, então vocês precisam provar suas inocências.

    — E como a gente faz isso? — disse Dhaha, com um olhar sério.

    — É muito simples — Syndona mostrou os papéis para os dois, cartazes de pessoas desaparecidas. — Essas pessoas desapareceram no último mês, ser muito recorrente para ser caso isolado. uma olhada.

    Pegaram os cartazes, eram todas pessoas entre dezesseis e vinte anos, de todas as raças, mas majoritariamente de não humanos.

    — Cinco ardenterianos, sete douradianos, quatro gelarianos e dois humanos. Todos sumiram na área residencial da Alta-Engrenora, e um dos humanos ser nosso antigo regente.

    — O antigo regente da sede sumiu também? — Mirena arregalou os olhos.

    — Exatamente. E agora ponto principal: vou considerar vocês inocentes se resolverem esse caso..

    A afirmação atingiu os dois como um martelo, era tão ilógico e ilegal que poderia entrar para um livro de frases mais criminosas já ditas.

    — Como é? — A ardenteriana se inclinou para trás, evitando proximidade com Syndona.

    — Fique calma, garota. Tem lógica por trás disso. — Ela juntou os papéis e entregou as cópias para os dois. — Se eu disser que vocês são inocentes, eles não vão questionar, eu não costumar errar nisso.

    — E o que “Resolver um caso de desaparecimentos” tem a ver com isso?

    — Por dois motivos: Primeiro, eu quero ter certeza que não estar errada, quero confiar em vocês. E segundo, pessoas precisam de motivo para não duvidar índole de vocês, e que jeito melhor do que virar heróis do povo?

    Surpreendentemente, ela tinha uma boa lógica. Era uma solução válida.

    Mirena se aproximou com cautela, ignorando o fato de Dhaha estar completamente bem sobre tudo isso.

    — Certo… Eu não vou questionar mais. — Mirena suspirou, aceitando seu destino incerto. — E por onde podemos começar?

    Syndona fitou-os com um olhar firme, como se pesasse cada palavra e pensamento que cruzava a mente dos dois jovens.

    — Vocês ter acesso aos arquivos, contatos e recursos limitados da guilda, mas somente isso.

    Ela se levantou, abrindo a porta do arquivo com um rangido que ecoou no silêncio do prédio.

    — Agora, jogo começa — disse, com um meio sorriso. — Escolha é de vocês: caçar verdade… ou passarem os próximos anos na cadeia.

    Mirena e Dhaha trocaram um olhar decidido, mas mal sabiam eles que, do lado de fora, algo sombrio se movia nas ruas da cidade. Aqueles desaparecimentos seriam apenas o começo de algo muito maior.

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