A pequena esfera lutava para iluminar alguma coisa, tanto ela quanto a garota estavam rodeadas por aquela escuridão densa. Procurou mais formas de abrir a porta, mas encontrou apenas mais alguns documentos próximos aos cadáveres.

    — “Remessa de Frutos de Carma”? “Fichário de Aventureiro”? Quem quer que tenha feito isto, estava estudando essas pessoas… — A garota pegou os papéis e caminhou até a escada, sentindo a escuridão segurando suas pernas. — Eu preciso sair daqui!

    Quando a ficha caiu, já era tarde demais. Acompanhado de um clarão, um estrondo ecoou do outro lado do vidro, todo o lugar tremeu.

    A garota parou, seu maior erro. Se virando para o vidro, a escuridão a encarou como algo vivo, abrindo um par de olhos brancos. Seu corpo congelou, era um medo diferente do que sentiu daquele colosso, era um medo vivo.

    “O… que…?”, pensou ela sem forças para pôr em palavras.

    Uma pequena fonte de luz emanou atrás da coisa, que se virou para acompanhar, como se esquecesse que Mirena estava ali.

    Ela aproveitou para correr até às escadas, cortando a escuridão. Sua pequena chama já havia sido devorada, a deixando sozinha no breu. Ou talvez, não tão sozinha.

    Quando chegou até às escadas, tentou erguer os braços para escalá-las, mas seu braço mecânico estava estático. O carma parecia não fluir por ele, tinha se tornado um grande pedaço de metal.

    — Não, não… — murmurou ela amaldiçoando o próprio destino. — Não agora…

    Colocou os pés sobre as barras e enganchou o braço esquerdo. Na falta do braço direito, abocanhou uma barra mais alta para manter o equilíbrio. 

    A estratégia funcionou até subir três degraus, quando escorregou e se viu novamente no solo.

    Caiu com as costas no piso de tijolos, seu grito foi abafado pelo som do golpe. Ficou ali por alguns segundos, tentando recuperar o fôlego, até que a dor se transformou em um foco mais nítido.

    — Como eu…? — falou a mulher com a mão pousada sobre a cabeça — Argh… Isso vai se tornar um galo bem feio.

    Tentou mover seu braço, que agora se dobrava e esticava normalmente. Seu fluxo de carma estava estabilizado.

    — Escalar uma escada de barra sem um braço… brilhante, Mirena.… — Mirena finalmente se deu conta da ideia que teve. — Aquilo está do outro lado do vidro, senhorita inteligente! Se pudesse me atacar, já teria feito.

    Ela foi até os cadáveres, pegou o pano mais seco que conseguiu e foi até a porta de aço. 

    Com um movimento rápido, atritou o braço metálico contra a porta, gerando pequenas faíscas que caíram sobre o pano. A chama não demorou para surgir, iluminando muito mais que sua pequena esfera de carma.

    O lugar era ainda mais abafado quando iluminado. No outro cômodo, todos os móveis eram metálicos, o vidro parecia frágil, e um contador de dias estava posto na parede.

    Dia vinte e nove.

    — Um mês… Parece que acertei em cheio a toca do coelho.

    Se aproximando da parede, a mulher presa se tornou visível, seu corpo já tinha gasto seu último suspiro.

    Fortaleça o fio destas almas que se foram — rezou ela, com um gesto de mãos que lembrava a forma de um cervo.

    A sombra novamente se formou, colidindo contra o vidro, mas nem produzindo o som do impacto.

    A garota agora encarava aquele abismo com os olhos fixos, a escuridão se movia como algo único, algo vivo. Avistou o túnel vertical atrás da coisa, ela parecia evitar subir e escapar.

    Ergueu o pano em chamas perto ao vidro, e para sua surpresa, as sombras se afastaram da luz.

    — Um fantasma com medo da luz… hmph, que conveniente — ironizou ela, deixando a folha sobre a mesa metálica. 

    Levantou o braço na altura da cabeça, e com um balanço calculado, socou-o contra o vidro. Era de se esperar que o fantasma se aproximasse, mas ele estava mais preocupado em se manter longe da fonte de luz.

    Mirena passou um olhar frio sobre os corpos, a criatura parecia estar drenando o carma que restou deles. Seu corpo, ou o que quer que fosse aquilo, emanava uma energia diferente, como se fosse o próprio vazio.

    Sem dizer uma palavra, pegou os papéis que considerava importantes e separou dos que pareciam restos. Espalhou os restos e aproximou o pano incandescente deles, iluminando o recinto.

    As sombras se moviam loucamente, como tentáculos vivos e desesperados para fugir do incêndio, mas que se recusavam a se afastar dos cadáveres. Espíritos obsessores que foram engolidos pela própria ganância.

    Não tardou a subir a escada oposta à que veio, sabia que podia simplesmente voltar pelo templo, mas queria saber onde aquilo chegava.

    Com o porão em chamas abaixo dos pés, subiu calmamente a escada de metal pela qual Dhaha havia descido, logo chegando na casa.

    Quando Dhaha finalmente tinha reunido coragem para saltar, deu de cara com Mirena subindo pelo buraco, coberta de fumaça.

    As expressões de ambos se encontraram, com leves olhares de confusão e alívio.

    — Dhaha?

    — Mirena, você… — logo se deparou com o porão coberto em chamas e com os bolsos do colete dela cheios. — Como você foi parar lá embaixo?

    — Eu meio que… entrei em um buraco.

    “Meu Nahhashir, ela virou uma toupeira!”, pensou Dhaha enquanto tentava aliviar a situação.

    Com mais uma leve encarada sobre as chamas, o garoto disse:

    — Você pareceu bem ocupada ali, não?

    — Eu só… deixei que aquelas pessoas tivessem um descanso — continuou Mirena, andando até a porta de entrada da casa.

    — Bom, acho que agora essa investigação anda, né? — O garoto a seguiu, com uma calma anormal, como se não houvesse um porão macabro em chamas logo atrás deles.

    — Quanto antes, melhor. — Olhou ao redor, finalmente reconhecendo onde estavam. — Mas por que estamos em uma… Deixa. Só vamos encontrar a Syndona…


    Os dois seguiram rumo à guilda com passos apressados. A escuridão não se movia, mas tornava cada avanço mais incômodo.

    A lembrança da criatura amorfa ainda latejava na mente do garoto. Aquilo não era um animal, então o que poderia ser? Algo capaz de devorar o carma de um ser vivo e depois se alojar nele como um parasita invisível.

    Dhaha estremecia só de pensar. Mesmo conhecendo agora a fraqueza daquela coisa, o medo ainda atravessava seus ossos.

    Trocaram poucas palavras no percurso, apenas o suficiente para entenderem o que houve e as provas que cada um tinha.

    Quando chegaram, entraram direto pela porta da frente. Era madrugada, não sabiam se Syndona estaria acordada, mas não havia tempo a perder.

    Cortaram o pátio e correram até o prédio central, respondendo às perguntas dos guardas de forma breve e apressada. Foi então que cruzaram com Thalwara. Ela saía da sala regencial, segurando uma xícara de café que ainda soltava vapor.

    — Senhor Dhaha, senhorita Mirena? — perguntou ela com o cenho erguido.

    — Thal? O que você tava fazendo na sala do regente? — Dhaha devolveu com outra pergunta.

    “Ele se acostumou rápido com o apelido”, Thalwara soltou um leve suspiro.

    — Bom… gulp… — Ela ergueu a xícara até a boca com calma e parcimônia. Ao beber o café, seu corpo relaxou, o rosto corou de leve e um sorriso discreto surgiu. — Eu estava trabalhando.

    — Você trabalha na sala do regente? Ele não tinha desaparecido?

    — Sim, eu sou a vice-regente… gulp… — Ela bebeu mais um gole, deixando outro sorriso escapar. — E deixe-me adivinhar, foi a Syndona que os contou isso? Ela não está presente agora, mas o caso do regente é confidencial…

    Dhaha e Mirena se encararam por alguns segundos, surpresos com a sorte que tiveram, e logo empurraram Thalwara para dentro da sala.

    — Ei! Espera! O meu café! — disse ela, antes de ser obrigada a terminar sua bebida em tempo recorde.

    Em poucos minutos, todos estavam sentados ao redor de uma mesa circular de madeira.

    — Eu espero que tenham motivos muito bons para tirar meus poucos momentos de ca… descanso. — Thalwara rapidamente se corrigiu, sentada diante dos dois com uma carranca em seu rosto.

    — Bom, desculpe por isto. — Mirena assumiu a conversa, já que tinha a maior parte das provas. — A senhorita Syndona nos disse para investigar os casos de desaparecimento…

    — Argh… é claro que ela disse… e não falou nada pra mim… — Thalwara colocou as mãos sobre o rosto em desespero. — Perdão. Continuem.

    — Nós encontramos algumas coisas, e creio que são do seu interesse.

    A ardenteriana entregou os papéis para a vice-regente, que os leu um a um. A carranca em seu rosto se tornou um rosto confuso conforme avançava pelas páginas.

    — Uma remessa de frutos de carma? Onde vocês encontraram isso?

    — Em uma sala secreta, abaixo do templo antigo — Foi a vez de Dhaha falar. — Também tem alguns fichários de aventureiros, parece que o sequestrador investigava as vítimas.

    A mulher ficou em silêncio por alguns segundos, era difícil crer que duas pessoas tinham feito mais progresso que toda a equipe de investigação da guilda.

    — “Alom’Ha”… “Lynda Vene”… São todos aventureiros da nossa sede, são algumas das pessoas que desapareceram. — finalizou a douradiana, organizando os papéis entregues. — Vou precisar que me levem ao local, pode haver mais provas na cena do crime.

    — Não vai dar. — Dhaha disse sem pestanejar.

    — E por que não?

    A imagem da criatura voltou à mente do garoto. Aquele corpo disforme e sombrio controlando a própria escuridão, aquele par de olhos brancos e demoníacos o observando, igual a uma presa acuada.

    — Nós encontramos uma… coisa, lá embaixo… — O garoto tomou um tempo para respirar fundo. — Não era uma criatura, mas era vivo, como um… fantasma.

    Thalwara se calou, esperando que o douradiano continuasse. Seus olhos estavam fixos nos dele.

    Já o garoto, estava mais inquieto que o normal. A ponta do pé levantava e descia sobre o chão, as mãos não paravam quietas, e os olhos não se fixavam em um ponto.

    — Vocês encontraram um fantasma? Talvez fosse um Eco-Mortal? Eles são bem parecidos com fantasmas. — A voz de Thalwara soou lenta, como se o peso da situação a segurasse.

    Eco-Mortais eram criaturas espectros que assumiam a forma de humanas adultas e atacavam suas vítimas com gritos, por isso o nome.

    — Eu imagino que tenha a ver com isto. — Mirena retirou o livro negro de seu bolso, o mesmo livro que encontrou no templo.

    Com uma leve passada por cima do livro, os olhos da armadurada se arregalaram. A preocupação escapava de seu rosto como o ar havia escapado de seus pulmões.

    — O Culto de Nazhur… — O silêncio tomou a sala. As caras de espanto de Thalwara e Mirena eram visíveis a quilômetros de distância. — É pior do que eu pensava…

    “Culto de Nazhur?”, Dhaha encarou as duas, esperando que explicassem do que se tratava.

    Percebendo a confusão do garoto, Thalwara começou:

    — O Culto de Nazhur… É uma seita que existe a anos, talvez séculos, e sempre está envolvida em crimes.

    — Uma seita? Mas o que é “Nazhur”?

    — É uma espécie de… deus mitológico, as lendas dizem ser de mais de quatrocentos anos atrás, da Era Perdida. — A vice-regente cruzou os dedos e apoiou o cotovelo na mesa. — É como um deus do caos, das sombras. As pessoas que cultuam a ele, sempre estão envolvidas em assassinatos ou sacrifícios, são completos lunáticos!

    — Algumas academias de Água-Ardente vêm procurando por esses cultistas, mas eles sempre desaparecem no último instante, e sem deixar rastros — completou Mirena.

    — E vocês acham que pode ser outra espécie de ritual deles? — questionou Dhaha.

    — Eles nunca tentam se esconder, são atrevidos e extravagantes, então eu creio que sim. Isso é mais um motivo para me levarem até o local do crime.

    — Aquela sombra estava devorando o carma dos cadáveres, eu coloquei fogo em todo o porão. — Mirena abaixou a cabeça, talvez aquela não tenha sido uma boa ideia.

    — O que você disse?

    — Que eu coloquei fogo nos cadáveres. — A ardenteriana estava quase chorando, queimar a cena do crime talvez tenha sido uma péssima ideia.

    — Não! Antes disso.

    — Como? Ah… que a sombra estava comendo o carma dos cadáveres?

    Thalwara não disse mais nada, somente se levantou e começou a revirar as gavetas próximas de um telefone de disco ao fundo da sala. Após alguns minutos, retornou com um mapa de todo o reino de Engrenora.

    Com uma caneca vermelha, desenho círculos e xizes por todo o mapa, como se calculasse algo.

    — Por dúvida, o que é tudo isso, Thal? — O douradiano deu uma leve olhada por cima da mesa.

    — As regiões com maior quantidade de carma reportado. Os frutos de carma devem ser iscas para essas coisas, eles soltam carma o tempo todo!

    A dedução tinha uma lógica sólida: frutos de carma eram plantas germinadas em zonas de carma, então eram grandes fontes dele.

    — Se essas são as zonas de oscilação… esses são os locais de desaparecimento… foi aqui que vimos os cutistas… então…

    Batendo o mapa contra a mesa novamente, Thalwara o encarava como se fizesse a descoberta do século.

    — A rua sessenta e nove! — terminou ela, apontando para o local do mapa onde se encontrava a tal rua.

    — Na Baixa-Engrenora? — Dhaha perguntou, estalando os dedos enquanto esticava seu pescoço. — Já temos nossa próxima parada, então.

    — Acalme-se, Dhaha. Não temos mais nenhuma informação, onde vamos buscar lá?

    — Temos sim. Temos o cheiro daquela coisa?

    — Cheiro? — Mirena encarou confusa.

    — Cheiro? — Thalwara também encarou confusa.

    — Lógico! Eu não vou me esquecer o que aquela coisa fez com a gente, e ainda menos aquele cheiro dele.

    — Você é um cachorro agora? — Mirena estava muito descrente nesse plano.

    — Confia em mim, só confia.

    — Espera, com “cheiro”, você quer dizer o carma da criatura?

    — Não sabia que carma tinha cheiro, mas talvez seja isso.

    — Você foi de “prodígio exibido” para “cão farejador” muito rápido, isso é amedrontador. — Mirena deu alguns passos para se afastar de Dhaha.

    Thalwara parou com as mãos sobre a mesa, ela não sabia com o que deveria ficar mais surpresa: por eles quase estarem perto de resolver o caso dos desaparecidos, ou pelo fato de Dhaha já saber sentir o carma de outros seres vivos.

    Dhaha e Mirena discutiram por mais alguns minutos, até entrarem em acordo e se virarem para Thalwara.

    — Bom, vamos descansar por hora, é madrugada e tal. Aí, amanhã a gente vai pra rua sessenta e nove — disse Dhaha, soltando um bocejo longo e grave.

    — Sim, está bem tarde, vão descansar. Mas tomem cuidado amanhã. — Thalwara pegou seu pires e xícara, e caminhou até a porta.

    — Hm? Por que?

    — A Baixa-Engrenora não é tão gentil quanto a Alta-Engrenora, a lei não vai proteger vocês lá.

    — Fica tranquila, só vamos socar esses cultistas e voltar com a nossa prova de inocência! — O garoto gesticulou ao socar a palma da outra mão.

    — Vamos ficar bem. Tentaremos não chamar atenção, certo Dhaha…? — A ardenteriana lançou um olhar afiado como um machado sobre o garoto.

    Ele se manteve em silêncio, apenas soltando um leve assobio.

    — Então, melhor irem descansar logo, podem usar os quartos extras da guilda. — Ela entregou dois molhos de chave que pegou em uma das gavetas.

    Os dois partiram de antemão, deixando somente um aceno para a vice-regente. Thalwara ficou na sala e observou o mapa que eles resolveram.

    “Eles fizeram o que a nossa equipe de investigação não conseguiu…”, ela passou a mão pela mesa, como se o tato a fizesse entender que aquilo era real.

    Uma expressão melancólica tomou seu rosto, uma memória fria como a noite cruzou seus olhos.

    “O que o Aldric faria, se estivesse no meu lugar…”.

    Caminhou até o pequeno telefone de disco ao fundo da sala e discou um número lentamente, seu toque foi atendido em poucos segundos.

    — Alô? Ellenor? Sim, é a Thalwara. — A mulher sentou na cadeira e encarou o mapa rabiscado. — Preciso que você cuide da guilda para mim amanhã…

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