O grupo se afastou da área aberta, buscando refúgio da cidade movimentada sob um monte de escombros e um teto de metal retorcido.

    Daten estava sentado do lado oposto à saída, seus braços estavam amarrados por algumas cordas improvisadas.

    — Tá bom, Daten. Vamos começar com algo simples. — disse Dhaha, de braços cruzados sobre o peito. — Por que vocês nos emboscaram?

    Cês são gente nova na região, o que achou que ia rolar? Que a gente ia receber cês com um tapete vermelho e um buquê de flores? — A voz do ardenteriano era ríspida, cheia de escárnio.

    — Então você e seu grupo são assaltantes? — Agora foi a vez de Mirena falar.

    — Não viaja, eu não conheço aqueles caras.

    — Então…?

    — Aqui, na Baixa-Engrenora, a gente segue a lei do mais esperto. É melhor ajudar alguém a roubar e dividir os lucros, do que bancar o herói e não ganhar nada.

    A mente de Dhaha travou por um instante, era difícil acreditar que um cenário como esse existia.

    — Você parece bem jovem… pra falar assim. — O douradiano assumiu a conversa. — Você vive aqui há muito tempo?

    — Hahaha! — Daten soltou uma risada sincera e contagiante. — Se eu aqui a muito tempo? Eu nasci nesse ferro-velho! Eu aprendi a correr antes de aprender a escrever.

    Ele carregava marcas nos nós das mãos. A vida não foi gentil com o garoto.

    Cruzou as pernas e baixou a voz, para evitar que pessoas de fora ouvissem.

    — Olha, eu não sei o que vocês dois tão tentando fazer, mas esse lugar não é nada legal. Ninguém que nasceu aqui consegue uma vida boa, isso é só um sonho — falou Daten, de cabeça baixa e com a expressão exausta de quem já viu a mesma cena várias vezes. — Ninguém nesse lugar é amigo de alguém, ou você rouba, ou você se mata de trabalhar na fábrica. Não tem terceira opção.

    Com a declaração de Daten, Mirena fez uma expressão difícil. Queria negar tudo aquilo, dizer que as coisas não eram tão ruins assim, mas ela sabia muito bem como era essa realidade.

    — Muito bem, vamos mudar de assunto então. — Dhaha guiou o interrogatório. — Se você vive aqui a muito tempo, deve conhecer muita gente, não é?

    — Eu conheço uma galera aí, por quê?

    — Você já viu um cara coberto por um capuz preto, e que carregava um símbolo estranho?

    Daten engoliu em seco, seu coração pulou uma batida. A descrição de Dhaha era como a de Thalwara, então a reação do jovem foi preocupante.

    — Já — falou o garoto, quase em um sussurro. — Vocês tão atrás desses caras…?

    Os dois não responderam, apenas olharam entre si e aceitaram a resposta que conseguiram.

    — Essa gente é problema, cês tão loucos se querem ir pra rua sessenta e nove.

    — Como você sabe que estamos indo para a rua sessenta e nove? — Mirena ergueu a sobrancelha.

    Daten respirou profundamente, como se tivesse entrado em um tópico sensível.

    — Porque é pra lá que eles levam quem eles “gostam”, e ninguém volta de lá…

    Dhaha abaixou a cabeça, tendo confirmado a suspeita de todos. Os cultistas de Nazhur eram os culpados dos desaparecimentos, e Belmorth estava com eles.

    — Era pra isso que você queria nossas armas? E invadir a rua sessenta e nove? — A expressão do garoto se tornou de paciência, não estava mais lidando com um ladrão pé de chinelo.

    — Era. — Ele completou, sem orgulho algum na voz 

    — Então você viu eles levando alguém recentemente? Eles têm reféns?

    — … — O silêncio pesou como uma montanha de angústia. Daten tentava falar, mas as palavras entalaram na garganta.

    — Daten… — Dhaha desamarrou os braços do garoto. — Fique tranquilo, nós vamos salvar essas pessoas, apenas espere aqui.

    O douradiano se levantou e, junto de Mirena, seguiu o caminho para a rua sessenta e nove. Daten ficou para trás, os observando.

    Um pouco mais adiante, Mirena o perguntou:

    — Tem certeza que está tudo bem deixá-lo assim? Ele parecia certamente transtornado.

    — Não dá pra fazer muito, não podemos obrigar ele a ajudar mais que isso. — Dhaha cruzou os braços atrás da cabeça, um apoio improvisado. — Mas ele parecia bem forte.

    Ainda sentado sobre os escombros, Daten observava a dupla de aventureiros se afastando. Eles o deixaram livre, mesmo tendo sido assaltados, eles tinham a determinação que ele há muito tempo tinha perdido, ou talvez nunca tivesse tido.

    Soltou o ar pelo nariz, uma risada curta e sem som, vazia. Não havia nada que pudesse fazer, era apenas uma criança.

    “Nós vamos estar sempre juntos”, um clarão de memória veio à sua mente. Uma pequena ardenteriana o seguia de um lado ao outro, segurando sua mão com seus dedos pequenos e finos.

    A promessa de uma criança, agora um peso de chumbo em sua alma.

    — Maldição! — Daten se levantou em um salto e correu até os dois. — Ei! Vocês dois!

    Eles se viraram surpresos, Daten carregava um sorriso raivoso na face e chamas ardentes em seus olhos.

    — Eu… eu levo vocês. Não garanto muita coisa, mas conheço um caminho


    Perambularam pela cidade por mais algumas horas, era como caminhar em um labirinto de ratos, só que muito maior e com assassinos em algumas esquinas. 

    A notícia teve tempo de se espalhar, sobre o ataque à casa abandonada e o porão carbonizado. As ruas estavam lotadas de mercenários de fora da guilda.

    — Então Belmorth tem poder e influência para contratar tantos assim. Isso vai ser um problema… — murmurou Mirena, no momento em que o grupo passou por uma viela vazia.

    “Se as coisas ficarem difíceis, eu vou ter que usar ela…”, sentiu uma pontada de angústia ao pensar.

    Souberam que estavam perto do destino final quando Daten gesticulou para que parassem. Era o terreno de uma grande fábrica, estavam atrás de alguns caixotes de madeira.

    Os carros eram invenções recentes, criados por um ardenteriano em busca de progresso, mas agora estavam sendo usados aos montes. 

    Eram grandes e podiam carregar muito, além de serem movidos a engrenagens e cristais de carma. Os veículos entravam por um grande portão, e logo saiam lotados de containers metálicos por outro. 

    Era uma grande fábrica de armas brancas e armas de flechas, as ferrarias não conseguiam competir com o avanço da civilização.

    Os punhos de Daten cerraram ao ver o imenso sistema metálico, o desconforto veio em seguida e cresceu no peito.

    — A gente tem que entrar nessa fábrica — sussurrou a criança, avaliando as portas e saídas.

    — Como é? — Mirena segurou o tom de surpresa.

    — A gente já tá na rua sessenta e nove, eles levam as pessoas pra dentro dessa fábrica, e não é pra dar emprego.

    — Ainda assim! Como que nós conseguiríamos fazer isso?

    Ele passou o olho pelos veículos, um dos carros de carga estava parado próximo da parede.

    “Será que ainda dá pra ir por lá?”, pensou o garoto, com um leve tom de esperança.

    Bastou uma olhada na determinação da dupla, e a lembrança da luta que tiveram, para que ele tomasse sua decisão.

    — Tão vendo aquele carro? Logo acima dele, na parede, tem uma janela que leva a um corredor de manutenção. Ele tem um acesso pro subsolo — completou ele, evitando sair de trás do esconderijo. — Eles não vão nos ouvir, por causa das máquinas. É só ser rápido.

    — Parece bom pra mim. — Dhaha já estava alongando seu corpo.

    — Parece coisa nenhuma! Vocês querem mesmo invadir uma fábrica de armas? Eles têm armas! — esbravejou, silenciosamente, Mirena. Era uma lógica válida, não se assalta uma loja de armas.

    — E nós também. — Dhaha tinha um bom contra-argumento.

    — Três… — Daten começou a contagem.

    — Vocês dois só podem ter músculos no lugar do cérebro, não é possível… — Mirena tentou impedi-los, mas era tarde demais.

    — Dois…

    — Os dois, parem!

    — Um…

    — Não!

    — Já! — disse o ardenteriano, saltando entre os caixotes e se esgueirando pelas máquinas. Seu corpo pequeno era perfeito para isso.

    Dhaha seguiu seus passos, praticamente arrastando Mirena junto. Os três correram pelos arredores das máquinas de movimento, milagrosamente não atraindo a atenção de guardas ou trabalhadores 

    Os dois homens carregavam sorrisos alegres e vibrantes como crianças em um parque de diversões, mas Mirena lacrimejava de desespero. Nunca tinha visto uma ideia tão mal trabalhada, tão direta e tão falha de uma única vez.

    De alguma forma, os três chegaram até o carro alvo e subiram sobre os containers. A janela estava visível e próxima, um palmo para a solução do plano.

    “Não é possível que isso vai funcionar!”, pensou Mirena, incrédula.

    — Ei! Vocês três! — gritou um dos operários, um homem robusto e de bigode saliente.

    O sangue dos três gelou, e restou somente a opção de se tacarem para baixo e deitarem sobre o container.

    “Eu não sei se eu fico feliz por estar certa, ou triste por ser presa por invasão de propriedade privada!”, pensou Mirena, amaldiçoando a própria mente.

    O trabalhador se aproximou do container, seu rosto estava enfurecido. As veias pulsavam e a pele estava vermelha.

    Daten respirava de forma pesada, mas seu olhar não estava apreensivo. Era como se já tivesse visto aquela cena, mais de uma vez.

    — Eu já não falei pra vocês três não ficarem jogando truco no serviço?! — Ele bateu na mesa de bater em que três operários estavam sentados matando tempo.

    — Desculpa, senhor. É que o Elias apostou um encontro com a irmã dele — choramingou um dos operários, um gelariano baixinho com chifres cotocos. Ele apontava para um ardenteriano com a barriga saliente e cabelo cacheado.

    — Eu não ligo! Voltem para o trabalho!

    — Si… Sim senhor! — gritaram os três, correndo para a fábrica.

    Mirena havia aceitado a verdade, aquela ideia estava destinada a dar certo.

    Quando o operário se afastou, os três se levantaram e saltaram para a janela. Deram de cara com um corredor vazio, para a sorte de seus planos.

    As paredes eram feitas de tijolos, mas devidamente pintadas de cinza, e o piso era de madeira polida e limpa. O local parecia completamente deslocado da fábrica anterior, mesmo que o barulho ainda fosse audível.

    — Ufa… deu certo de novo! — Daten comemorou com soquinhos no ar.

    O garoto parou a comemoração e ficou sério, pigarreando a garganta.

    Ahem… por aqui. — Daten limpou a poeira da roupa, toda surrada, e apontou para um dos lados do corredor. — Esse corredor dá numa porta pro subsolo, até onde eu sei.

    — Espera! Me deixa… respirar. — Mirena ofegava, apoiada na parede. Não era pelo esforço físico, mas pela overdose de adrenalina.

    Dhaha já tinha se recomposto, e agora fazia uma série leve de polichinelos. Sua capacidade física era sempre algo surpreendente, com uma energia quase inesgotável

    — Quando chegarmos no subsolo, o que faremos? — perguntou a garota, sentada ao chão.

    — Temos que procurar os reféns, prender os cultistas, e sair daqui — respondeu Dhaha. — E, bom, a gente já chegou até aqui. Acho que aquele colosso foi algo muito pior, não?

    — É, realmente.

    Enquanto a dupla conversava, Daten andava em círculos com a testa contraída. Não sabia o que tinha no subsolo, ele agora estava apostando na sorte, e isso era evidente.

    Mirena notou a incerteza no rosto do garoto, e então uma pergunta passou pela cabeça: tudo estava dando certo demais, nada funcionou tão bem para os dois desde a festa e, principalmente, como uma criança como Daten sabia sobre o corredor e o subsolo?

    — Daten… — A voz de Mirena saiu fria. O leve zumbido de carma ativando seu braço mecânico cortou o ar. — Como você sabia sobre esse lugar? E sobre o subsolo?

    Ele demonstrou um olhar confuso, e levemente ameaçado pelo punho mecânico.

    Dhaha parou os polichinelos e pousou a mão sobre a bainha, só agora havia se tocado desse detalhe. O pequeno congelou por um segundo, levantou as mãos sem o semblante confiante de antes.

    — Eu trouxe vocês aqui… porque também tenho um assunto inacabado com esses caras.

    — Certo… e sobre isso? — respondeu a garota, acalmando sua postura de luta.

    — Eu sabia que eles levavam as pessoas pra cá porque… porque foi pra cá que eles levaram a minha irmã — completou ele, abaixando sua cabeça como quem solta algo que estava segurando a tempos.

    As armas da dupla baixaram, a atmosfera mudou instantaneamente. O rapaz à frente deles não era o ladrão que interrogaram tempos antes, ele parecia, e era, apenas uma criança assustada.

    — Eu já invadi essa fábrica, mais de uma vez… — Daten abaixou a cabeça, com as palavras emboladas na ponta da língua. — Eu nunca achei ela, e nem cheguei além do subsolo… eu bati em muita parede até achar essa janela.

    Os três ficaram em silêncio, não precisavam de explicações para o óbvio.

    — Eu quero acabar com esses caras mais que tudo, mas… eu sei que eu não consigo faze isso, não sozinho.

    Daten abaixou as mãos, e curvou do tronco para cima junto. Ele reconhecia sua fraqueza e, via neles uma fagulha de esperança.

    Com uma mesura da cintura para cima, olhos apertados e o sangue fervendo, ele disse:

    — Eu sei que sou suspeito, sei que vocês não têm motivos para confiar em mim — A voz estava áspera, se desmanchava como um punhado de areia. — Mas eu preciso de ajuda… Por favor…

    Mirena e Dhaha se entreolharam, se deparando com a realidade dessa cidade. Não era um fosso cheio de assaltantes e criminosos, era um fosso cheio de pessoas.

    Dhaha deu um passo adiante. Seus olhos estavam fixos, como se a decisão fosse óbvia.

    — Dhaha… — disse Mirena, estendendo a mão ao amigo.

    — A gente não tem tempo pra ficar indeciso, e eu não gosto de ver crianças chorando — respondeu o amigo, colocando a mão sobre a cabeça do ardenteriano. — Não se preocupa, eu sou o herói que vai trazer ela de volta!

    Daten caiu de joelhos. Seus olhos envoltos pelas lágrimas que havia segurado por dias, talvez anos.

    Mirena soltou um suspiro ao aceitar a realidade. Ela sabia que não poderia mudar a mente de Dhaha, talvez fosse essa ingenuidade que o tornasse tão forte.

    — Temos reféns pra ajudar… — O douradiano sacou sua espada e tomou a frente.

    — E cultistas para vencer! — A garota completou a frase, demonstrando a decisão que havia tomado.

    Daten limpou suas lágrimas com o antebraço, a cabeça repleta pela lembrança das incontáveis vezes que invadiu o lugar. Todas as vezes que foi barrado, espancado, e arremessado à sarjeta.

    A esperança que um dia tinha se esvaído, voltava com toda a força. O garoto sabia que não venceria Belmorth, mas Dhaha e Mirena eram diferentes. 

    Eles eram os heróis que ele tanto esperou.

    Acima de suas cabeças, dispositivos de transmissão refletiam tudo para a sala de Belmorth. O senhor da fortaleza acompanhava cada movimento com o deleite de quem já previa o fim.

    — Então ele trouxe amiguinhos dessa vez… — murmurou o pálido. O sorriso se abriu em puro êxtase.

    Ele passou a mão bem devagar sobre a criatura de carne, como quem acaricia sua própria obra prima, e disse com o sorriso perturbador:

    — Ainda não, [Carnoféx]… — O mago mal continha suas gargalhadas. — Deixe eles brincarem também

    Um mecanismo se ativou, o som do carma soou como um choque elétrico. Três pares de olhos iluminaram a escuridão da sala.

    O jogo de policia e ladrão havia começado.

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