Capítulo 18: Metal e Sangue
Sem tempo para lágrimas, Daten guiou a dupla pelo corredor.
O caminhar dos três foi rápido, mas sem qualquer sutileza. Atraíram a atenção de sete guardas que faziam ronda no andar
— Ei, vocês! Parados! — ordenou um dos seguranças.
— A gente abre caminho, [Metalóxis]! — Dhaha transformou sua arma em uma lança e avançou, atropelando os guerreiros.
As placas metálicas não eram capazes de impedir o Guerreiro de Aço, que se jogava nos inimigos como uma locomotiva desgovernada. A lâmina atravessava as defesas e o cabo nocauteava.
Mirena cuidava dos que sobravam. Seus golpes não eram fortes, mas tinham uma precisão cirúrgica na nuca, plexo solar e pulmão. Não sobravam pessoas conscientes diante deles.
A cena fez Daten pensar que poderiam ter entrado pela porta da frente, mas logo apagou essa ideia. A quantidade de seguranças na entrada era surreal.
Após forçarem o caminho até uma escada, o pequeno Daten acenou para que não descessem. Tomou a frente mais uma vez, dedilhando a parede que os cercava.
Com o apertar de uma sequência de tijolos, a ordem estava calejada das incontáveis tentativas, os sons do mover das engrenagens e do metal reverberam ao redor deles.
Uma porta se abriu na parede, revelando caminho para um elevador oculto. Os olhos inquietos de Daten confirmavam que aquele era o limite de seu conhecimento do terreno.
Com uma encarada de alguns segundos, Dhaha saltou no fosso do elevador, seu corpo coberto de carma. Mirena encarou o amigo agarrado às paredes, despencando fosso abaixo, e preferiu apertar o botão para descer o elevador junto com Daten.
No subsolo, as paredes eram feitas de um metal preto e canos de gás, e o piso era feito de uma pedra branca e maciça. Toda a estética contrariava o andar superior.
Agora no fundo do fosso, Dhaha se erguia com um olhar sério. A raiva o alimentava, e talvez a justiça por aquela criança fosse sua única sanidade. Moldou sua lança em martelo e fitou os guardas à frente como se fossem apenas obstáculos no caminho.
Haviam menos de dez, mas não seriam poupados.
— Vamos começar! — O douradiano avançou na multidão, movido pela visão da cidade acima de suas cabeças.
Os guardas usavam armaduras de corpo todo, mal se via a aparência deles por trás das placas rígidas.
Os golpes do douradiano rachavam as armaduras como se fossem vidro, além de arremessar as pessoas igual a bonecos de pano.
O elevador não demorou a chegar ao subsolo, o caminho estava livre para que a dupla se juntasse à luta.
Mirena não perdeu tempo, arrancou um dos canos quebrados pela queda de Dhaha e golpeou um dos guardas na região da nuca.
— Entrada triunfante, heim? — brincou Dhaha.
— Disse a pessoa que saltou no fosso de um elevador — devolveu ela.
Um dos guardas saltou sobre Daten e desferiu uma sequência de golpes pesados.
— Então você trouxe ajuda dessa vez? Desistiu de invadir sozinho? Hahaha! — falou ele, ao descarregar seu sadismo em golpes de espada. — Você quer um convite direto para o cemitério.
O garoto recuou. Encarou o homem como se esperasse por algo.
Seus golpes eram pesados, também eram lentos. O atraso se acumulou entre um golpe e outro, até formar uma abertura grande o suficiente.
O ardenteriano avançou com uma estocada e acertou a boca do estômago do adversário, que caiu de joelhos.
— Vou te dizer onde você enfia esse convite — terminou o garoto, com um golpe lateral sobre a face do humano.
O garoto, mesmo ofegante, retornou para a multidão. Não seria um sádico qualquer que iria o parar.
Mais guardas surgiram ao final do corredor, mas com a diferença de que seus equipamentos eram mais versáteis: portavam escudos, bestas e lanças.
— Eles não acabam não? — esbravejou Dhaha, esmagando o escudo de um dos sentinelas.
— Esses caras que me deram uma surra nas outras vezes. Ta lotado igual taverna de noite — devolveu o jovem, golpeando dois guardas com um ataque em arco.
Mirena usava o cano, junto de alguns movimentos improvisados, e adormecia forçadamente os guerreiros em seu caminho. Mesmo sem treino em defesa pessoal, os anos viajando ensinaram alguns truques.
Os soldados de curto alcance eram derrubados sem dificuldade, mas os atiradores eram outra história.
— Mirena! — alertou Dhaha, um dos soldados tinha a mulher na mira de sua besta.
A mulher ameaçou tirar algo de seu colete, mas hesitou no último momento.
“Não, eu só tenho uma chance”, pensou ela.
Ele não demorou para carregar a arma, e disparou uma flecha na direção do flanco da mulher.
Ela girou o corpo o mais rápido que podia, na esperança de parar a seta com seu braço, mas não foi o suficiente.
“Não vai dar tempo”, pensou a garota.
Ela quase conseguia ver a flecha atingindo sua costela, mas algo a parou antes disso. Daten havia bloqueado o projétil com seu bastão de ferro.
— Eu posso ser pequeno, mas não sou metade. Cai dentro, atiradorzinho de merda! — urrou ele, em um avanço contra o soldado.
Mirena não sabia se agradecia por ter sido salva, ou se dava um sermão pela boca suja. Preferiu ficar em silêncio.
Percebendo a desvantagem militar, os guardas começaram a recuar ao fundo da passagem. A força dos três era completamente desbalanceada se comparada com a deles.
Com duas grandes manoplas metálicas nas mãos, Dhaha estava decidido a acabar a luta.
Saltou sobre a multidão e chocou a cabeça de dois deles, prensou um terceiro contra a parede e, por fim, realizou um suplex no último.
A invasão havia sido um sucesso, Mirena e Daten tinham se livrado dos atiradores, e Dhaha dos combatentes. Os três tinham o caminho livre pelo corredor estreito.
— Isso não foi… fácil demais? — Mirena se perguntou, confusa pelos soldados caídos no chão.
— Tomem cuidado, podem aparecer mais deles. — Dhaha transformou suas manoplas em uma espada e a embainhou.
O espadachim avançou pelo corredor, Daten o acompanhando. Mirena seguiu devagar e com uma pulga atrás da orelha, algo não parecia normal naquele lugar.
“Se demorarmos, vai ser igual na outra vez…”, pensou Dhaha, com os punhos cerrados e o olhar atento.
Seguiram as lamparinas presas na parede e logo deram de cara com uma porta metálica. Era moldada em aço, reconhecida pela cor cinzenta e escura. Uma grande maçaneta de giro se portava ao centro, rodeada de números de zero a nove.
— Parece que precisamos de uma senha, você sabe ela, Daten? — perguntou Mirena, suas mãos giravam a porta com dificuldade.
— Acho que não. Não lembro de nada desse tipo — respondeu Daten, que também tateava a porta. — Talvez o Dhaha consiga moldar ela pra outra forma?
— Eu até conseguiria, se isso não fosse aço — O rapaz respondeu, demonstrando a falha com o toque da sua mão sobre a porta. — [Metalóxis] só funciona em metais e ligas metálicas puras.
— O aço não é um metal?
— Quase, ele é uma mistura de ferro e carvão. Só que tem carvão demais pra eu conseguir usar a minha magia.
— Uma porta convenientemente colocada… — disse Mirena, quase praguejando contra o destino.
— Muito convenientemente colocada… — completou Dhaha, tão indignado quanto a amiga.
Daten se virou e deu alguns passos de volta ao caminho. Sua impaciência era quase palpável.
— Então como nois resolve? — Ele gesticulou apontando para os guardas caídos. — A gente espera os cabeças de lata lá atrás acordarem e pergunta a senha?
— Eu posso tentar resolver a combinação, mas vai demorar um tem… — Mirena ameaçou dar uma ideia, mas Dhaha tomou a frente.
— Deixa eu testar uma coisa — disse ele, sacando seu martelo, recém formado, com as duas mãos.
A confusão tomou o rosto dos outros dois.
— Você não disse que sua magia não era capaz de moldar aço?
— E ela não é.
— Então…?
Dhaha não respondeu, apenas fechou os olhos e deixou o carma fluir. Seu corpo brilhou como uma bela pálida e incansável.
— Ele não vai…? — Daten não acreditava no que seus próprios olhos viam.
A primeira martelada ecoou como um trovão, deixando um amassado na porta grande e densa.
— Ele vai… — Mirena já havia aceitado: Dhaha era inteligente somente para combates, o tipo de pessoa que pensava com os bíceps.
A segunda martelada veio ainda mais forte. A visão do amigo esmurrando a porta sem nenhuma estratégia era algo que alguns diriam ser como uma pintura abstrata: Ninguém entende o que vê, ninguém entende o motivo, mas todos aceitam e todo mundo sai feliz.
A porta não durou muito, agora tinha sido reduzida a escombros e pedaços de aços.
— Pronto, acertei a senha! — disse o dono do martelo, com a cara mais deslavada do mundo.
Todos voltaram suas atenções para o outro lado da porta, ignorando a metodologia deturpada do amigo. Um corredor estreito e escuro, semelhante a uma prisão.
O ambiente havia mudado completamente com o cruzar da porta. O piso e as paredes eram de tijolos cinzas, velhos e empoeirados. As paredes eram adornadas com tochas de madeira e correntes penduradas. Ao fim, cubículos de cinco metros quadrados estavam espalhados pelo local, rodeados por barras metálicas e enferrujadas.
O forte cheiro podre tomava o lugar, alertando do que mais temiam encontrar: cadáveres, corpos que já não conseguiam reagir.
O rosto da garota empalideceu e suas pupilas se tornaram iguais a agulhas. A sensação de que algo estava errado se provou com uma única olhada sobre os defuntos:
Membros metálicos. Braços, pernas e olhos, alguns também tinham órgãos mecânicos. Ciborgues forçados sobre a própria carne.
— Meu Lebkraut… — Mirena engoliu as palavras, na esperança de elas não voltarem junto do resto que preenchia seu estômago.
— Não… não pode ser… — As pernas de Daten o forçaram a seguir em frente, seus olhos procuravam o último fio de esperança que tinha. — Por favor…
Olhou entre os cadáveres e, soltando um suspiro de alívio, encontrou pessoas ainda vivas. Eram poucas, uma pessoa viva a cada dois cadáveres, mas eram pessoas vivas.
A dupla de aventureiros abriu as celas e quebrou as correntes que os prendiam às paredes. Seus corpos estavam envelhecidos e desnutridos, alguns tinham aqueles membros mecânicos no lugar dos originais.
— Eu sinto muito… — disse Dhaha. Olhava para a garota com um pesar.
— Não… — Ela encarou o próprio braço metálico, era igual aos deles. — Eles não tiveram escolha. Só vamos levá-los para fora.
O resgate começou, guiaram as vítimas para fora de seus enclausuramentos e até aquilo que um dia foi uma porta.
— Irmã? Spiena?! — Daten levantou a voz, procurando pela metade que lhe faltava. Olhou todas as celas, cada pessoa desnutrida, cada cadáver, e nada. — Ela não tá aqui… não… não, não!
Ele caminhou até o grupo de ex-prisioneiros, seus olhos não paravam quietos, tremiam como se estivessem desfocados.
— Você viu uma ardenteriana pequena? — perguntou ele, gesticulando a margem de altura em torno da sua cintura — A pele dela é escura como a minha, ela usa chiquinhas.
— Não, garoto… eu sinto muito — respondeu um dos homens.
— Com licença, você viu uma garota…
Ele continuou as perguntas, questionou todos que pode, até que uma mulher caida o respondeu:
— Uma… ardenteriana de… chiquinhas? — A mulher mal tinha forças para falar.
— Isso! Você viu ela? Por favor, me diz que você viu ela…
— Eu vi… eu vi sim…
— Onde ela tá?! Por favor, me fala! — Ele agarrou os ombros da mulher e a balançou de um lado ao outro.
Os olhos da moça se arregalaram, ela deu pequenos chutes no chão enquanto tentava se afastar do garoto.
Mirena adiantou o passo e agarrou o braço do garoto. Os olhares dos dois se encontraram, o pequeno ardenteriano tinha uma expressão de desespero, qualquer um acreditaria que sua vida dependia disso.
— Daten! Respira! — gritou a ardenteriana. Suas mãos seguravam o garoto com firmeza.
Quando voltou aos seus sentidos, Daten soltou a mulher e respirou fundo. Os olhos do garoto se acalmaram e sua respiração voltou a ser lenta e constante.
— Desculpa, é só que… essa garotinha é a minha irmã. — Ele ficou de joelhos, olhando a ex-prisioneira no fundo das pupilas. — Eu preciso saber onde ela tá.
O medo que a mulher sentia foi se esvaindo, Daten era apenas uma criança.
— Não se preocupe. — Ela continuou. — Mas eu a vi sim…
O ardenteriano encarava como um cão encara um pedaço de carne.
— Ela chegou aqui… há alguns dias, mas ela não… ficou muito tempo.
— Não ficou? O Belmorth levou ela para algum lugar?
— Eu… eu não sei para onde… mas ele… levou ela…
Mirena abaixou a cabeça, não tinha palavras para dizer ao amigo. Se virou e ajudou um senhor a se levantar e caminhar para a saída.
— Spiena… — A voz de Daten estava fraca. Lenta. Baixa até demais. — Belmorth…
“Calma, pensa… Se a gente achar o Belmorth, ele deve saber onde ela tá”, pensou ele, agarrado ao último fio de esperança que enxergou.
Respirou fundo. Mais fundo que qualquer momento de sua vida.
Se virou para os aventureiros, cerrou os punhos e começou:
— Mirena… Dhaha.
— Daten, a gente… — Mirena tentou juntar palavras para o amigo, mas não havia o que dizer.
— O Belmorth deve… tá com ela… Precisamos para ele!
Para a surpresa da garota, ele não estava chorando como uma criança. Sua voz estava carregada de ressentimento e amargura, mas não deixava escapar mais que isso.
“Eu não vou deixar isso acontecer de novo…”, pensou a mulher. A visão dos aventureiros caçados pelo colosso ainda assombrava suas noites de sono.
— Nós vamos. Nós com certeza vamos — falou a garota.
— Vamo levar essa gente toda pra fora — continuou o pequeno. — Lá a gente dá um jeito de achar o…
O som de metal e pedra se chocando tomou o recinto, o que impediu Daten de terminar seu raciocínio. Três pares de luzes coloridas surgiram na escuridão: azul, vermelho e amarelo.
— Daten, tira os reféns daqui. — A garota colocou o homem sobre Daten e sacou o cano torcido. Dhaha se pôs ao lado dela, como se pressentisse o que estava por vir.
O tilintar do metal se tornou em um baque, e o baque se tornou um estrondo. Três figuras se formaram diante deles.
O primeiro, à frente do grupo, era pintado em um azul escuro. Apesar dos membros humanoides, possuía uma cabeça de coelho caricata e orelhas que chegavam aos trinta centímetros. Sua barriga enorme roubava a cena, sendo quase um compartimento de comida, e tomava o lugar de suas pernas. Sem a estrutura básica, terminava diretamente nos pés e no rabo metálico em forma de bolinha.
À direita, uma máquina amarelada com traços de pássaro. Possuía penas metálicas ao redor de todos o corpo, com exceção da barriga pelada e pálida. O grande bico de galinha chamava atenção, só não mais que sua cabeça em forma de triângulo com um olhar sério.
Por último, à esquerda, um marrom claro. Tinha uma aparência humanóide, mas era surrealmente alto e robusto. Possuía músculos metálicos por todo o corpo, semelhante ao corpo de um fisiculturista de três metros.
Suas características eram animalescas, com pelos metálicos e a fisionomia de um urso, mas com harmonização fácil. Um par de calças jeans cobriam suas pernas malhadas, revelando apenas as garras nos pés. Ao fim, uma gravata borboleta e uma cartola pequena enfeitavam seu pescoço e cabeça, respectivamente.
As aberrações mecânicas os encaravam de cima, um olhar de superioridade. Mirena não via invenções como aquelas desde que tinha saído de Água-Ardente, eram como uma memória amarga.
— Autômatos de combate…

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