Capítulo 21: Carne Podre
Daten se arrastou para junto do grupo, agarrando nas paredes para se manter de pé.
O ar ao redor do grupo se tornava mais pesado conforme o mago se transformava diante de seus olhos.
Rachaduras surgiram no cubo de carne, fissuras que iam do centro até as bordas. Com o pulsar da estrutura, os pedaços de carne começaram a descolar uns dos outros.
De dentro do amontoado vermelho, o novo corpo de Belmorth emergiu.
Ele tinha a face lisa, mas distorcida e monstruosa. Sua pele estava em completa carne viva
Possuía dois pares de braços repletos de buracos e hematomas. Suas pernas também eram quatro, mas se mantinham estáveis por pura força muscular, também cheias de furos e de tamanhos assimétricos.
Sua boca chegava de uma orelha à outra com um sorriso sádico, mas não possuía dentes em sua gengiva. Tinha três olhos no rosto, um sendo muito maior que os outros.
— Contemplem! Eu sou a perfei… — falou Belmorth, com os braços deformados erguidos para o alto.
— Parece uma… arte abstrata! — alfinetou Dhaha, que arfava de cansaço.
A criatura partiu para o ataque com dois socos de cima à baixo. O douradiano não demorou para moldar sua arma em um escudo.
O choque do impacto rachou o chão abaixo de Dhaha e o empurrou alguns metros para trás.
“Ok, isso doeu”, pensou ele, sendo empurrado vários metros para trás, os pés cavando dois sulcos perfeitos no piso de pedra. “Nota mental: não bloquear socos de um bife anabolizado de quatro braços. Anotado.”
Dhaha arrancou em uma corrida, colidindo seu escudo contra Belmorth, mas ele o parou ao segurar a chapa de metal com os quatro braços.
“Ah, ótimo. Gêmeos”, pensou o garoto, que já via dobrado. “Acho que eu vou vomitar se vibrar mais um pouco… E se eu vomitar no meu escudo, vou ter que limpar depois. Que dia.”
Com um simples empurrão, Belmorth obrigou ele a recuar outra vez.
Daten aproveitou a distração causada pelo amigo e golpeou o nobre com seu taco. Um amassado se formou em uma das pernas do monstro, para logo voltar à forma anterior.
“Regeneração?”, pensou o jovem ao cobrir suas pernas em carma para conseguir recuar.
— Você ainda está aqui? Não vai fugir, como fez em todas as outras invasões? — zombou Belmorth, com os olhos vidrados no loiro.
Antes que Daten pudesse dizer alguma resposta, um dos punhos de Belmorth veio em sua direção. O jovem desviou com um salto para o lado, mas caiu ao chão com seu brilho apagado.
O soco da aberração afundou parte do chão, mas quebrou sua mão no processo.
— Tsc! Acho que gastei carne demais me recuperando dos tiros… — murmurou ele, ao analisar a própria mão. A deformidade regenerava lentamente.
Mirena correu até o cano que havia derrubado, o levantou com as duas mãos e executou um ataque lateral sem hesitar.
O impacto foi curto, seco e não conseguiu arrancar nem mesmo um pedaço da carne solta.
Em consequência, Belmorth acertou-lhe um soco com um girar do corpo e a arremessou contra a parede do corredor. A estrutura inteira tremeu, pequenos pedaços do teto caíram perto da ardenteriana.
— Argh! — gritou a mulher. Uma de suas costelas havia se rachado.
Os movimentos de Belmorth podiam não ser rápidos, mas já eram o suficiente para superar os três à sua frente.
— O que foi? — riu o homem, se aproximando dos outros dois a passos lentos e desajeitados — Eu nem estou completo, e vocês já estão no chão?
— E quem tá no chão? — disse Dhaha, em uma investida na direção de Belmorth. — É que o chão estava com saudades dos meus pés! [Metalóxis]!
Seu escudo tornou-se em um cabo fino e longo, e seu topo se moldou em um bico e lâmina de machado. Uma alabarda.
Quando tinha a criatura em seu alcance, Dhaha tentou girar o corpo no próprio eixo e impulsionar a arma, mas seu ataque parou antes de começar.
A lâmina da alabarda bateu ruidosamente na parede do corredor antes mesmo de completar um quarto do caminho. O impacto fez a arma vibrar e parou todo o movimento. Dhaha ficou ali, parado na pose heroica, com a alabarda presa na parede, olhando para Belmorth, que o encarava com seus três olhos confusos.
“Preciso de mais espaço”, pensou ele, sentindo o rosto esquentar. “Ou talvez de um corredor mais largo. A culpa é da arquitetura do lugar, claramente.”
Com um puxão, ele soltou a arma e a remodelou. O cabo encurtou drasticamente e a cabeça da arma se transformou numa esfera cheia de espinhos pontiagudos. Uma maça. Mais simples. Menos chance de bater nas coisas.
Escalando um dos montes de escombros, Dhaha saltou sobre o monstro E os espinhos da arma encontraram o ombro esquerdo de Belmorth.
O guerreiro tocou o chão com as mãos mal conseguindo segurar sua maça, seu corpo tremia como se tivesse golpeado uma parede de concreto.
Os olhos de Dhaha se arregalaram, era a segunda vez que a criatura segurava seu ataque. Belmorth parecia como se nem tivesse sido acertado, inabalável.
— “Você” está no chão, douradiano! — gritou Belmorth.
O mago monstro atacou-lhe o estômago com um dos braços e o pressionou para baixo com outros dois, de cima para baixo.
Dhaha rapidamente bloqueou o segundo ataque ao colocar seus braços entre ele e o monstro, mas seu corpo inteiro doeu.
Suas pernas cederam, o garoto foi ao chão.
— Isso vai deixar uma… bela cicatriz… — sussurrou ele para si mesmo, tentando encontrar o lado positivo. — As garotas adoram… cicatrizes, certo? Pelo menos… é o que dizem…
Seus olhos ficaram pesados como chumbo. Sua mente, que antes fervilhava com piadas e estratégias falhas, ficou completamente em branco. E então, tudo escureceu. Sua consciência se esvaiu como poeira
— Quem é o próxi… — Bermorth ameaçou falar, mas foi interrompido por Mirena.
Com um salto e um giro em pleno ar, a garota acertou o rosto do inimigo. Seu cano brilhava em uma aura branca e fumegante que explodiu ao redor.
Belmorth recuou alguns passos, com uma mão sobre a região acertada. Um sutil hematoma que não demorou mais que alguns segundos para se curar.
“Ela me bateu mais forte que aquele marombeiro?!”. A incredulidade era visível no rosto da aberração.
— Com você se recuperando para cada ferida… Assim até mesmo eu conseguiria vencer! — disse ela, como se a ofensa fosse mais para ele do que para ela.
— Se tá no jogo, é para usar, ardenteriana! — respondeu o projeto de homem, com um sorriso sádico no rosto.
A coisa usou seus dois braços direitos para tentar acertar a garota, mas ela desviou com um pulo e uma rolagem. Mirena era muito boa em acrobacias simples.
Com um movimento ágil, a ardenteriana afundou seu cano na costela do monstro humano e arrancou um pedaço.
Antes de elas se regenerarem, a garota pode ver: envolta em uma fina camada de carma, lá estava a página do grimório.
“Aí complica…”. O pensamento de Mirena tinha um tom de desilusão.
Belmorth tentou usar uma de suas pernas para chutar Mirena, mas um taco metálico colidiu com ele antes.
— Eu ainda… tô aqui! — berrou Daten. Seu carma controlava mais que antes, reunido em suas pernas e em sua arma.
O segundo impacto ecoou pelo campo de batalha, os olhos de Mirena mal conseguiram enxergar através do brilho gerado.
“Ele tá imitando o douradiano?”, pensou Belmorth.
Ao fim, o garoto e monstro foram forçados a recuar. Daten fez mais um avanço, dessa vez com o alvo na perna que já havia golpeado.
A mulher aproveitou o tempo de respiro e juntou alguns pedaços de tijolo. Segurando entre os dedos, ela alongou o ombro com um giro, estendeu o braço para trás e deixou o corpo brilhar.
— Basta uma canalização… — disse ela, com uma puxada de ar profunda.
A luz fluiu pelo braço orgânico e depois para as pedras. Quando cobertos pelas chamas, os restos de tijolos se tornaram afiados e mais fortes.
O movimento foi rápido, os pequenos projéteis voaram como balas e atingiram as costelas da criatura.
Uma pequena explosão ocorreu com o impacto. Os pedaços eram mais fracos que balas, mas ainda causavam estrago.
— Argh! Vai ficar atirando até quando, ardenteriana? — Belmorth, ao perceber o objetivo da mulher, desviou seu olhar de Daten e galopou até ela.
Com o impulso da corrida, ele acertou-lhe um soco no estômago e a prensou contra a parede.
— Você não vai conseguir a página de minha Signore, esqueça — completou ele, ao jogar Mirena em uma pilha de escombros. — Agora…
Antes que pudesse terminar de falar, Belmorth sentiu um golpe pesado cair sobre sua perna. Daten havia acertado um ataque em arco de cima para baixo.
“Faça igual ao Dhaha! Faça igual ao Dhaha”, pensou o pequeno.
O golpe era forte, mas não o suficiente para superar a regeneração do mago. O hematoma causado já se recuperava.
— O seu controle de carma evoluiu muito rápido, mas agora… — O monstro ergueu seus quatro punhos com sadismo em seus três olhos. — Agora… Você se unirá à minha adorável arte!
Os punhos de Belmorth desceram como martelos velozes, mas para Daten, o tempo pareceu se esticar e derreter. A vida passou por seus olhos em um borrão: o sabor do pão roubado para sobreviver e a satisfação de devolvê-lo em dobro; o riso de sua irmã enquanto brincavam no meio das peças descartadas pela Alta-Engrenora.
“Eu não posso morrer agora… eu prometi pra Spiena!”, as palavras reverberaram pela mente do garoto.
Foi quando o ar estalou.
Um cheiro de chuva e metal queimado inundou o corredor, sobrepondo-se ao odor de carne de Belmorth. Antes que o primeiro punho o atingisse, um clarão de luz branca cortou a penumbra. Os braços de Belmorth foram cortados antes que pudesse reagir, seus músculos tremeram ao sentir o carma que fluía pelo ar.
— Sua exposição foi cancelada — Uma voz feminina surgiu entre os dois.
Entre Daten e o monstro chocado, uma silhueta se materializava. A luz fraca do corredor cintilava sobre uma armadura verde, gravada com o brasão da Guilda da Folha-de-Louro. A figura se moveu, e pequenos arcos de eletricidade dançaram em seu rastro.
Daten, ainda no chão, piscou, sem ter certeza se aquilo era real ou uma alucinação de seus últimos momentos. Era Thalwara, a Raposa Relâmpago.

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