O som das máquinas havia parado, a grande fábrica cinzenta fora interditada pela Guilda. Assim que o sol desceu de seu pico, a equipe médica resgatou os feridos e os direcionou à Guilda.

    Comparados aos reféns, os ferimentos dos três eram bem mais superficiais: Dhaha e Daten estavam encobertos em arranhões, pequenos hematomas e exaustão. Já Mirena, tinha uma fratura leve em uma das costelas.

    Os olhares dos sobreviventes caíram sobre eles, não em tom de malícia, mas com sorrisos de agradecimento.

    Thalwara os acompanhava dentro da carroça a vapor, mas sua mente estava em outro lugar: a insígnia da Guilda, os reféns escolhidos a dedo e, principalmente, o rosto de Belmorth.

    “Não tem como ser ele…”, pensava ela, repetidamente.

    Quando os carros chegaram, os paramédicos não perderam tempo e carregaram todos os feridos. Thalwara permaneceu em silêncio enquanto os três entravam na sala de tratamentos.

    — Parece que foram apenas ferimentos leves, eles vão ficar bem em até duas horas — disse uma das paramédicas, ao entregar um relatório a ela.

    — Obrigado pelos seus serviços. Todos serão devidamente recompensados — devolveu a vice-líder, em uma mesura.

    — Não se preocupe, é o mínimo que posso fazer por eles. — Ela gesticulou para que Thalwara levantasse sua cabeça. — Minha filha estava entre os reféns, eles são nossos heróis.

    A mulher não disse outras palavras, apenas acenou com a cabeça e se retirou da ala médica. 

    Em menos de alguns minutos, Thalwara já estava no prédio de arquivos, rodeada de documentos e fotos de pessoas.

    — Onde está… tenho certeza que tava aqui… — murmurava ela, ao puxar outra caixa e quase revirá-la do avesso.

    Foi então que algumas batidas vieram da porta. Do lado de fora, a mulher alta de pele azul encarava a amiga.

    — O que você estar procurando? — perguntou Syndona, de braços cruzados e testa contraída.

    — Um arquivo… quero confirmar uma coisa — Thalwara puxou outra caixa, sem guardar a primeira.

    A gelariana adentrou a sala a passos lentos, seus olhos começaram a exalar carma e um brilho estrelado.

    — Você sempre ser alguém viciada em organização, pelo menos desde que entrar pra guilda. — Ela parou na frente da amiga. — Nunca ia ser normal ver você jogando papéis para todos os lados.

    Syndona se abaixou, juntou um bolo de papéis e o guardou na respectiva caixa. Mesmo que agisse de forma tão abrupta, seus movimentos eram calmos e delicados, carregavam uma amizade que não precisava de palavras para ajudar.

    — O que você… — Thalwara tentou dizer, mas foi cortada pela mão da amiga.

    — Te ajudando, isso estar mais desorganizado que meu quarto. E você lembra como meu quarto ser bagunça…

    — Mas… 

    — Sem “mas”, Thal! Você encher o saco quando não arrumo minhas coisas, enfim a hipocrisia.

    A douradiana tentou segurar, mas um riso escapou de seu nariz. Após alguns tapas no próprio rosto, que ecoaram pela sala fechada, ela começou a juntar os papéis que já havia visto e os organizou em suas respectivas caixas.

    Não demorou para que terminassem, mas, dessa vez, as caixas já vistas estavam separadas em um canto. Syndona cruzou os braços outra vez e se virou para a amiga.

    — Então? — disse ela. — O que estamos procurar?

    — “Estamos”? — Thalwara cerrou os olhos, incrédula.

    — Sim. Pra você estar desse jeito, deve ser coisa importante, ou pior: meu imposto de renda.

    — O que? Não!

    — Então? O que é?

    A douradiana levou uma das mãos à face, pensando em como explicar. As palavras estavam lá, mas enodavam-se na garganta.

    — No meio… da missão, eu… eu… — começou ela, mas falhou miseravelmente.

    Syndona colocou a mão abaixo do queixo e o coçou, e então disse:

    — Você se endividou pra um vendedor de pastéis?

    — Claro que não! — gritou Thalwara, com o rosto vermelho como pimenta. — Como raios você chegou nessa conclusão, Syn?!

    — Bom… Você está mexendo em documentos dos membros da guilda, está preocupada com algo, não conseguir nem falar sobre esse algo. — Ela estalou o dedo ao lado do rosto. — Com certeza dívida.

    — Não, não é! — A douradiana não sabia se ficava com raiva ou se ria do absurdo que acabara de ouvir. — E por que um vendedor de pastéis?

    — Nunca duvide de um pasteleiro baixa-engrenoriano, eles bons com negócios — ela concluiu, com um olhar sério no rosto.

    Ela se rendeu ao riso, um riso teatral e doce como não fazia a muito tempo. A tensão em seus ombros se desfez, como se um peso tivesse sido retirado.

    Syndona riu junto, sabendo que seu plano deu certo.

    Levou um tempo para se acalmaram, mas quando isso aconteceu, Thalwara tomou a frente:

    — Durante a missão, eu encontrei um dos membros do culto de Nazhur… — Ela ajustou a postura, enrolando os dedos das mãos, que insistiam em se mexer.

    — Então eram eles mesmo… Caso vai ficar mais perigoso agora — concluiu a pálida, com um suspiro entristecido.

    — E… ele era igual ao Aldric.

    Os olhos de Syndona se arregalaram, a mão tapou a boca e o cérebro demorou para processar a informação.

    — Mas como…? — A voz da gelariana saiu trêmula. — Aldric não faria coisa dessas…

    — Por isso estou procurando o arquivo dele… 

    O rosto da douradiana se fechou, seus olhos marejados pela perda, mas confusos pela descoberta.

    Syndona deu um suspiro longo e então, novamente de pé, se aproximou da e virou-se para todos o prédio.

    — [Auglind]! — disse ela, a voz ressoando como um trovão.

    O carma ao redor dela oscilou, como se o ar dançasse no calor de um deserto. Seus olhos, antes azuis e estrelados, agora brilhavam em um azul claro e fumegante.

    Na visão de Thalwara, tudo estava como sempre foi, mas não para Syndona. A gelariana via dezenas de prédios de arquivos, centenas de caminhos onde olhava os papéis, e milhares de documentos diferentes.

    Viu cada documento ali presente, todos em menos de um único segundo. Para sua surpresa, e talvez medo, o arquivo de Aldric não estava ali.

    Quando fechou os olhos, a mulher pálida se apoiou na barra da porta, ofegante. As veias saltavam para fora de seu rosto e suas escleras estavam vermelhas carmesim.

    — Syndona! — Thalwara se aproximou e serviu de apoio para a amiga.

    — Eu tô bem, só parecer que passou um caminhão na minha cara — respondeu ela, piscando rapidamente. — Eu olhei todos os arquivos…

    — Você usou sua magia pra isso?! — A douradiana foi de preocupação para raiva em questão de segundos.

    — Tenho má notícia…

    — Outra?

    — O arquivo não tá aqui, é como se… ele nem tivesse existido. — A mulher sentou-se em uma das cadeiras, ainda de olhos fechados.

    A sentença atingiu a douradiana como um martelo, os olhos de Syndona nunca se enganavam.


    A ala hospitalar era silenciosa, repleta de maçãs brancas e aparelhos de medição ligados aos pacientes. Não havia engrenagens, não havia falatório e, principalmente, não havia magos com ideais deturpados e prontos para matar alguém.

    Quando Mirena acordou, seus olhos caminharam por todo o lugar. Dhaha estava capotado, provavelmente em seu quinto sono, e Daten estava sentado enquanto comia uma tigela de mingau.

    “Onde eu…”, pensou a garota, ainda zonza.

    Ao se sentar na maca, a voz de Daten adentrou seus ouvidos:

    — Ah! acordou. — disse o garoto, notando Mirena se mexer. Sua voz saiu sem o ânimo habitual. — se sentindo melhor?

    Ele colocou a tigela na mesa ao lado de sua cama.

    — Um pouco… ainda estar zonza. — A voz da garota soou mais forte e arrastada que o normal.

    — “Estar”? Você é de fora?

    O rosto de Mirena, antes pálido e confuso, foi inundado por um vermelho vivo. O sotaque que ela lutava tanto para polir e esconder tinha escapado com a guarda baixa.

    — Eu… eu… — Ela tentou se defender, mas as palavras morreram na garganta.

    — Relaxa. É legal. — Daten forçou um sorriso, mas ele não chegou aos olhos. — Combina com você.

    Mirena piscou repetidas vezes, como se tentasse checar se não estava alucinando.

    — O… obrigado…

    Enquanto conversavam, Dhaha dormia tão calmamente que uma bolha de saliva e formou em sua boca. O ronco era leve e pacífico, mas constante e longo.

    A pequena bolha se inflou até sair da boca, quando finalmente estourou. O estalo quase inaudível chegou aos ouvidos do Douradiano, que acordou num pulo, socando o ar..

    — TÔ ACORDADO! CAÍ DENTRO — gritou ele.

    — AAAH! — Mirena e Daten quase caíram de suas camas.

    — Hm? Por quê vocês tão gritando? — Já de pé, Dhaha começou seus alongamentos pós-sono.

    — Eu que pergunto, você gritou do mais absoluto nada! — disse Daten, com lágrimas nos olhos.

    — Eu pensei que fosse morrer… — Mirena tentou controlar a respiração. — É isso que costumam chamar de “pico de energia”?

    — Ah… isso. — Dhaha fixou o olhar no nada, pensativo — Foi mal. Sonhei que o coelho azul tava roubando meu lanche. Errei, fui moleque.

    Ao ouvir o amigo, Mirena o encarou por alguns segundos, mas Daten permaneceu quieto, remexendo o mingau frio com a colher.

    Se olhares arremessassem facas, essa seria a hora perfeita.

    “Isso é tudo que ele tem a dizer?”, pensou a garota, a indignação quase escorria do rosto.

    Ignorando completamente a tensão, o douradiano analisou as faixas em seu próprio corpo e deu alguns pulinhos de teste.

    — Terapia de carma é assustadora, não é? — concluiu ele.

    Daten colocou a mão abaixo da mandíbula, onda quase fora mordido pelo urso. Mirena fez o mesmo, mas na costela que tinha sido golpeada.

    — Esta é a segunda vez que passo por uma — A voz de Mirena saiu leve como um sussurro. Seus olhos pousaram sobre o ombro, onde o braço mecânico deveria estar conectado. — E espero que seja a última.

    — Eu nunca vi uma parada assim. — Daten tirou algumas das faixas nos braços. — Nem parece que um gogoboy mecânico me jogou na parede e me chamou de “minha lagartixa”.

    Dhaha virou a cabeça lentamente.

    — Nem parece que o quê?

    — Nada não.

    Um silêncio constrangedor cobriu a sala, mas Dhaha não o deixou durar muito.

    — Bom, se a gente tá aqui, vivo e comendo gororoba de hospital, quer dizer que vencemos a escultura abstrata, certo? — o douradiano falou, pegando a tigela de mingau em sua mesa.

    — Eu também estava pensando isto, mas desmaiei logo após você. — Agora foi a vez da Mirena sacar uma tigela de mingau.

    Os olhares dos dois aventureiros se voltaram para o elefante na sala: Daten era o único que tinha ficado consciente até o final.

    Sentindo o peso de centenas de expectativas, Daten começou:

    — A gente… quase venceu — murmurou o garoto, sem levantar a cabeça.

    — “A gente”? — disse Dhaha.

    — “Quase”? — completou Mirena.

    — Sim, “a gente”. Depois que vocês foram de vala, a senhorita Thalwara brotou do nada e encheu ele de porrada. — Ele colocou uma colher grande de mingau na boca.

    — Isso parece bem heróico para um “quase”. — Mirena encarou de lado, com a sobrancelha erguida.

    Daten mastigou lentamente, fazendo um suspense desnecessário para um mingau.

    — Foi… 

    “Foi o máximo que eu consegui fazer, e ele se regenerou em dez segundos”, completou em pensamento. 

    — No final, o Belmorth fugiu. Uma sombra engoliu ele, nhac, e acabou.

    — Uma sombra… comeu ele? — Dhaha piscou, processando. — Tipo… nhac?

    — Exato. — Daten fez a cara mais séria que seu rosto infantil permitia. — Nhac.

    De forma quase coreografada, os dois magos deitaram suas costas nas macas e soltaram suspiraram altos e longos.

    — E agora? A gente faz o que? — Dhaha agarrou um dos travesseiros e afundou o rosto. — A gente senta e espera uma pista nova cair do céu?

    — Eu não tenho certeza… — Mirena esmagou uma alfada entre o braço e o peito. — Eu tenho quase certeza que a tal “signore” que ele tanto falava deve ter relação com o necromante, mas não consigo ver uma relação clara…

    acha?

    — Sim… — Ela rolou pela cama algumas vezes. — Se eu, ao menos, tivesse pego aquela folha…

    A palavra “folha” acendeu uma lâmpada na cabeça de Daten. Ele largou a tigela, vasculhou os bolsos do casaco jogado ao pé da cama e tirou de lá um pedaço de papel que emitia um brilho fraco e pulsante.

    — Era essa folha que você queria? — falou ele, nariz empinado e orgulho escancarado no olhar.

    Os olhos de Mirena se arregalaram.

    — Como…?

    — Enquanto eu tava pendurado nas costas do monstro… eu peguei. — Ele deu de ombros, mas a voz saiu fraca. — Pelo menos pra bater carteira eu sirvo, né?

    Quando o artefato pousou sobre a palma dela, seu brilho refletiu nas íris negras.

    Ela levou a  mão ao peito, cerrando o punho como se apertasse muito mais do que a barra da roupa. 

    Imagens reverberaram na mente da garota, uma memória gentil e distante. Uma dor surgiu em seu peito, passou por sua garganta e chegou em seus olhos, uma dor doce como o choro de uma criança. Lágrimas caíram de seus olhos.

    — Eu… eu consegui…

    A garota soluçava, despejando o que estava contido. Dhaha e Daten tomaram um susto com a mudança repentina de emoções.

    — Mirena, tá bem?! — O douradiano se aproximou, hesitante, sem saber se deveria ou não tocá-la.

    A garota esfregou os olhos com as costas da mão, um sorriso se formou em seu rosto.

    — Sim… eu não poderia estar melhor!

    Os garotos suspiraram em alívio, logo de volta a suas camas.

    “Ela conseguiu o que queria, e o Dhaha conseguiu lutar de igual pra igual com aquilo…”, pensou o loiro. “E eu? Eu só fugi e roubei”.

    Em meio ao caos que os três fizeram, o riso de Dhaha ecoou pela sala.

    — Não assusta a gente assim, poh — disse ele, em um tom alegre. — Pensei que ia ter que usar meu plano de emergência e apagar o Daten.

    — Ei! Eu ainda aqui, beleza? — O pequeno protestou, com as mãos na cintura.

    As lágrimas de Mirena se transformaram em uma risada genuína, algo que os dois raramente viam. A maga, sempre tão séria e contida, gargalhava como uma criança, deitada de costas na cama, segurando a folha contra o peito.

    Ela estendeu a mão e encarou a folha entre as mãos. A escrita era estranha, rebuscada e antiga, a língua não era igual a nenhuma da atualidade.

    — Você entende o que tá escrito aí? — perguntou Dhaha, curioso.

    — Não diretamente, mas… eu consigo traduzir. — respondeu Mirena, os olhos ainda brilhando.

    — Que massa. Deve ser importante pra caramba, então — comentou Daten.

    — É… — A voz dela embargou novamente. — É a coisa mais importante do mundo.

    Percebendo que o “modo cachoeira” estava prestes a ser reativado, Dhaha mudou de assunto rapidamente.

    — Então, Daten! O fujão lá… ele disse mais alguma coisa antes de ser… nhac?

    O garoto entendeu a deixa e ajeitou a postura.

    — Ele falou algo sobre um ritual, daqui a uma semana.

    — Ritual? Isso deve estar relacionado aos vagantes — concluiu Mirena.

    — Bom, é isso! — Com um salto, Dhaha se levantou da cama e foi até a porta de saída. — Temos uma semana pra treinar e quebrar aquele burguês safado em dois.

    Mirena abriu a boca para ponderar, talvez sugerir um plano mais elaborado, mas a fechou em seguida. Sabia que nada que dissesse iria parar a locomotiva dourada que era seu amigo. Ela se levantou também, pegou o braço metálico sobre a mesa e o encaixou no ombro. Luzes brancas percorreram as juntas metálicas assim que o fluxo de carma se conectou.

    Enquanto os dois se dirigiam à porta, Daten permaneceu sentado, o brilho em seus olhos diminuindo. Ele era inútil numa luta daquelas, e sabia disso.

    Dhaha observou a criança por alguns segundos, e então disse:

    — Vamos salvar sua irmã!

    A frase deveria consolar, mas soou como um tapa. “Vamos salvar”. Não. Eles iriam salvar. Daten seria apenas o guia, o peso morto, a criança que precisa ser protegida.

    — É… vamos… — respondeu, sem força.

    Ele não queria ser salvo. Ele não queria que outros salvassem Spiena enquanto ele apenas assistia. Ele queria ser capaz de fazer aquilo. Ele queria ter a força que Thalwara tinha, a velocidade que Dhaha tinha.

    Mas ele era só o Daten, o ladrãozinho da rua 69.

    — Não se preocu… 

    Quando Dhaha tentou completar a frase, a porta do local se abriu com uma força extraordinária e o acertou no rosto, o derrubando no chão.

    Mirena observou a cena em silêncio, agradecendo por não ser a primeira da fila. Diante deles, a voz de Syndona ecoou como um trovão em uma planície:

    — Chega de descanso — disse a gelariana, com um sorriso desafiador. — Vamos treinar!

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