Capítulo 3: Faísca de Incêndio
Mirena
Os curandeiros chegaram em poucos minutos, cerca de uma dezena deles. Naquele dia, as hospedarias ficaram mais lotadas do que nunca, não havia espaço nas tendas e locais de tratamento médico.
Mirena foi atendida após as coisas se acalmarem, seus ferimentos não eram sérios e não passavam de superficiais.
Foi liberada logo em seguida.
Com poucos olhares, ela já conseguia ver pessoas jogadas nas portas das pensões e das tabernas, cheios de faixas em seus membros. Nem todos conseguiram um lugar para dormir.
Era alguém muito sortuda, caminhou até a pousada em que estava hospedada, agradecida pela dona não ter cancelado sua hospedagem.
Era uma senhorinha rígida, uma humana na casa dos setenta. Era surpreendente que ela tenha vivido tantos anos em um local como o distrito da Folha de Louro, lotado de florestas densas, e as florestas lotadas de animais.
Entrou pela porta da frente, a senhora estava sentada em uma cadeira enquanto se olhava no espelho. Gostava de se admirar, mesmo que não tivesse muito o que admirar naquela visão.
Seus cabelos eram brancos e curtos, a pele acompanhava a idade. O mais gentil dos cavalheiros diria que ela parecia apenas “bem envelhecida”.
— Heim? Ah, é só você. Então você não se machucou? — perguntou a dona, desviando os olhos apenas para o necessário. Seus olhos cerrados e sem emoção estavam repletos de desinteresse.
— Ah! Bom dia, senhora Vera. Eu estou bem, sim. Eu não me machuquei…
— Ótimo! Pensei que teria que cancelar mais uma hospedagem. — A idosa interrompeu, isso era algo que Mirena estava acostumada.
“Seu maracujá de gaveta!” Era o que a garota queria dizer, mas conteve a voz. Respirou fundo e expirou devagar.
Não era a primeira vez que tinha que aguentá-la. Se continha apenas por ela ser a dona do local.
— Fico feliz pela preocupação, mas estou bem. Vou subir agora, preciso descansar um pouco. — Mirena mal deu tempo para a idosa responder e seguiu para as escadas.
— Hmph! Esses jovens de hoje em dia… Ela é igual ao ingrato do meu filho. — Ela olhava para um retrato pintado do tal filho. Devia estar no auge dos trinta anos, tinha cabelos crespos e negros, não se parecia nem um pouco com a mãe.
Mirena respirou fundo e engoliu em seco.
Entrou no quarto e desabou na cama. Não era dos melhores, as paredes estavam mal pintadas, as cortinas tinham buracos, o piso rangia como se fosse quebrar a qualquer momento, mas era o que podia pagar.
Ser viajante não trazia uma renda muito segura.
A exaustão tomou conta de sua mente, fazendo seus olhos ficarem pesados. Ela despencou na cama.
Naquele momento, tudo o que a ardenteriana queria era que sua paz não fosse perturbada. Seus músculos já não doíam, mas estava acabada. Infelizmente, seu desejo não seria concedido.
Em menos de algumas horas, a porta da pousada foi batida.
— Senhora Vera? — disse uma voz grave, levemente rouca. Era um dos aventureiros que estava no incidente.
— Pois não? O que querem? — A velha abriu a porta, se deparando com dois aventureiros vestidos em armaduras de aço.
Portavam o brasão da sede local da guilda.
— Estamos procurando uma pessoa. Uma ardenteriana de cabelos de cabelos curtos e pretos.
— Nunca vi na vida. Passar bem! — A mulher estava prestes a fechar a porta, ela não possuía respeito nem pelos aventureiros que protegiam a cidade, mas tinha algo acima de tudo isso.
— Senhora, espere. Nós estamos oferecendo recompensas, é urgente.
— Andar de cima, quarto doze!
Era uma grande megera.
Dhaha
Dhaha esperava sentado em um dos bancos da taverna, tinham feito um ótimo trabalho em remontá-la, quase estava como se fosse nova. Ele não portava a tradicional armadura, estava com uma roupa mais confortável.
Usava uma camisa de pano preta colada em seu peito, sem mangas, uma calça bege de canos largos até os calcanhares, com um tecido amarelado enrolado na cintura. Um par de sapatos pretos e pontudos cobriam seus pés, e um de braceletes de aço nos bíceps e punhos. Finalizou o visual com anéis de aço nas mãos.
Passos ecoaram de fora e a porta se abriu, um homem rodeado de guardas adentrou a sala.
Seu corpo já não era jovem, músculos flácidos, pele quase caindo de seu corpo, cabelos grisalhos cinzas e uma barba que ia até a clavícula. Portava uma cicatriz causada pela noite anterior, era Halvar, o organizador da festa.
Ele se sentou à frente do douradiano. Um silêncio se manteve por alguns segundos, o garoto não sabia o que dizer para quebrar o gelo.
— Fico feliz que tenha… se recuperado rápido, garoto. Você fez muito pela cidade naquela luta.
Dhaha tinha se recuperado em tempo recorde. Bastou uma noite de sono e ele já estava pronto para mais uma luta.
— Err… É uma bela… cicatriz? — Dhaha se arrependeu daquelas palavras logo que as disse.
— Eu… sniff… — Halvar se segurou o melhor que pôde, mas não conseguiu evitar de cair em lágrimas.
Naquele momento, os olhos de Dhaha se arregalaram, a culpa cobriu sua mente.
— E-eu não que-queria… err…
Passos metálicos foram ouvidos do outro lado da porta, Mirena entrou logo em seguida, acompanhada por mais guardas.
Quando viu Dhaha e Halvar, cerrou os olhos e deu alguns passos para trás. Dhaha parecia um valentão brigando com Halvar.
— Não é o que você tá pensando! — O garoto se adiantou, em vão. A garota agora mantinha distância.
Os guardas não moveram um músculo, apenas abaixaram a cabeça e prestaram condolências silenciosas. O veterano tomou um tempo para respirar, arrumou a postura e voltou a falar.
— Aquelas coisas! Eles levaram a minha mãe e fugiram pra floresta!
Halvar esmurrava a mesa em ódio. Para alguém daquela idade, a mesa estava sofrendo bastante.
“Eita”, pensou Dhaha. Ele não fazia ideia de o que dizer naquela situação, era exímio no combate, mas péssimo em conversação.
Mirena relaxou os ombros e se sentou à mesa. Ela tinha sido acordada abruptamente por um bando de guardas, pensava que seria presa por algo.
— Sentimos muito… — disse a garota, abaixando a cabeça em condolência.
O homem limpou o rosto, sabia que não era a hora para chorar.
— Vinte e seis. Esse foi o total de pessoas que foram levadas, minha mãe entre elas. — Explicou, jogando retratos de papel sobre a mesa.
O jovem encarou os papeis por alguns segundos e logo concluiu:
— E você precisa da gente para salvá-los?
— Sim, mas eu gastei todos os meus fundos com a festa, não vou conseguir pagá-los.
Dhaha olhou ao redor, além dos guardas haviam aventureiros, dispostos a ignorarem a dificuldade do trabalho sem cobrar nada.
— Conta comigo, eu acei…
— Espera. — Mirena cortou Dhaha, que agora a encarava confuso.
Dhaha era forte, um guerreiro entre dezenas, era até mesmo corajoso e ousado, mas essa ousadia podia ser um problema às vezes.
— Nós já lutamos ontem, este aqui principalmente. — A garota continuou. — Eu fui praticamente arrastada da pousada para cá, precisamos discutir isso melhor.
— Mirena, são pessoas! — Dhaha a encarava incrédula. Como ela podia pensar em si mesma nesse momento?
— E nós também. Você pode pular naquela floresta igual um maluco, manda um abraço para os animais silvestres.
— Tsc! — Dhaha estalou a língua, cruzou os braços e se encostou na cadeira.
— Ahem! Continuando… Você que mandou guardas para nos procurar, não foi?
Mirena se virou e encarou Halvar.
— Bom, sim! É uma situação de vida ou morte.
— Então você está desesperado atrás da nossa ajuda, é sua mãe afinal.
— Bom…
— Não vamos pensar que isso é um conto de fadas. Todos nessa sala não tem nem a menor ideia do que pode acontecer naquela floresta, e nem se conseguimos trazer eles vivos.
— Sim, mas a gente não pode deixar de tentar. Aquelas pessoas ainda podem ser salvas! — Dhaha se meteu.
— Eu não disse que elas não podem, mas você não acha engraçado? O ex-veterano que juntou dinheiro a vida toda para uma festa, não paga nada para que salvem sua própria mãe?
Halvar engoliu em seco.
— Err… N-não sobrou dinheiro. Foi tudo g-gasto.
— É mesmo?
Ela pausou, esperando a resposta. Halvar de repente se viu em meio a um campo de guerra mental, seu próximo passo poderia definir o seguimento da conversa.
— Sim!
A ardenteriana abriu um leve sorriso, seus olhos eram os de uma fera irrompendo no pulo.
— E a recompensa que os guardas falaram? Você está pagando para nos acharem.
Xeque-mate.
— E-eu… eu…
— Ou você mentiu sobre a recompensa? Não… alguém tão nobre quanto o senhor. Não faria algo assim.
— Exatamente!
— Então, me pergunto o que será que as pessoas vão pensar quando ouvirem que você não queria pagar para salvarem sua própria mãe.
Dhaha arregalou os olhos. O homem choroso que viu a pouco, agora rangia os dentes em raiva.
Ao fim das negociações, o acordo foi firmado. Cinquenta moedas por aventureiro que voltasse da floresta, o velho ainda tinha uma grande quantia guardada da festa.
Mirena
Saindo da taverna, Dhaha não disse uma palavra sobre a atitude de Mirena, apenas caminhou em direção a área comercial da cidade, estava ajudando nas reconstruções. Mirena o seguiu, não era uma construtora nata, mas queria falar com os moradores.
Primeiro foram à mercearia, uma pequena venda que fora pega no meio do fogo cruzado. A garota carregava tábuas de madeira de um lado ao outro, não sendo melhor que um trabalhador comum. Dhaha carregava pelo menos três vezes a carga da moça no lombo, seu corpo nem mesmo tremia.
Os outros trabalhadores tinham fogo nos olhos, não perderiam para um novato.
— Exibido… — disse a ardenteriana, encarando o garoto praticamente carregando os outros construtores nos ombros.
— Não seja tão má com ele, é apenas uma criança. Haha! — disse o dono. Era um senhorzinho acima do peso, seus cabelos eram tão grisalhos quanto o bigode curvado e pontudo abaixo do nariz. Usava roupas coloridas e de tecido fino.
O senhor se sentou em uma das cadeiras, oferecendo café para a garota. Sem hesitar, ela aceitou a pequena pausa.
— Uff… É uma pena que tudo isso tenha acontecido. — O olhar do velho estava marejado, em um misto de tristeza e paciência.
— Vai ficar tudo bem, vamos reconstruir a cidade e arrumar tudo!
— Sim, eu sei, mas é uma pena que tantas fatalidades tenham ocorrido.
A mente de Mirena se voltou para as pessoas sequestradas, ela sabia como era sentir o medo da morte.
— Vamos salvar aquelas pessoas, ainda há esperança.
— Vocês vão para a floresta? — O velho curvou as sobrancelhas. — Melhor tomarem cuidado, tem animais perigosos por aquela região.
— Animais? Do que vocês estão falando? — Dhaha se virou enquanto servia como escada para um dos pedreiros.
— Aquela floresta não é um lugar seguro, meus jovens. — O dono bebeu um pouco do café, parando para suspirar de forma pragmática. — Eu já fui um caixeiro viajante, aquela floresta tem algumas rotas de comércio, mas quase ninguém as usa.
Mirena e Dhaha pararam o que estavam fazendo, qualquer informação sobre o local era bem vinda.
— Eles não a utilizam? O que tem naquela floresta? — Dhaha perguntou, a seriedade em seu rosto era notável.
— Lobos de prata…
Dhaha mudou seu semblante. Ele e o comerciante se encaravam, entendendo a gravidade do problema.
— Lobos… de prata? — Mirena forçou a memória tentando entender o que eram os tais lobos de prata, mas nunca tinha ouvido falar. — O que são lobos de prata?
O comerciante abaixou a cabeça, Mirena sentiu um calafrio subindo pela espinha.
— No distrito da Areia Dourada… — Dhaha começou — tem grandes jazidas de metal, algumas ficam em zonas de carma. Como o carma lá é bem mais denso, os animais se adaptam a ele, e alguns acabam se desenvolvendo com os metais. Os ursos de prata estão migrando para Gelo Fino nessa época do ano, então não temos que nos preocupar com eles, mas os lobos se espalharam para outros distritos…
— Você está dizendo que são literalmente lobos misturados com prata?
— Não misturados. É que algumas partes do corpo são feitas de prata, são uma praga que se descontrolou. Praticamente não tem predadores, destruíram fazendas de gado, se multiplicam rápido demais, até a caça deles foi permitida.
Mirena pensou enquanto levava a caneca à boca. A prata era um grande medo para qualquer mago, absorvia quase completamente todo o carma que tocava. Servos não iam funcionar contra essas criaturas.
— Se encontrarmos uma alcatéia, nossos números não são ruins… Acho que tive uma ideia!
Dhaha encarou a garota por alguns segundos e logo se levantou.
O dono o acompanhou com o olhar, mas o garoto apenas acenou com a cabeça. Mirena provou que era uma boa estrategista.
— Não morreremos naquela floresta, não se preocupe — falou Dhaha, voltando a carregar os pedaços da construção, ela estaria pronta em breve.
O senhor observou a cena com os olhos marejados. Decidiu depositar sua confiança:
— Eu queria perguntar algo, mocinha.
— Estou ouvindo, senhor. — Mirena terminou seu café.
O dono se levantou por um instante, pegou um retrato que tinha em sua estante e trouxe à mesa. Uma garota humana de uns dezesseis anos, usava um vestido rosa, sapatos pretos e um laço vermelho.
O velho não disse uma palavra, e nem era necessário, uma lágrima escorreu de seu olho direito. Mirena se levantou e segurou as mãos do homem, seu olhar estava sério e determinado.
— Não se preocupe, eu… não! Nós faremos o nosso melhor para resgatarmos essas pessoas!
As lágrimas escorreram pelos olhos do homem, Mirena ficou mais alguns minutos consolando o homem.
Dhaha
A loja ficou pronta em questão de duas ou três horas depois. O garoto preparava seus equipamentos para partirem para a floresta. Roupa de viagem, mantimentos, armas e sua armadura de couro.
Na saída, cumprimentou algumas pessoas que esperavam os aventureiros. Muitas pessoas oravam por seus familiares, outros pelos aventureiros. Essa missão precisava dar certo.
Uma senhorinha se aproximou do garoto. Implorou enquanto segurava sua mão.
— Por favor, salve o meu filho! — Era a dona Vera.
— Eu vou, senhora! Conte comigo!
Ao fim, deixou a senhora para trás e se juntou aos outros na boca da floresta. Os aventureiros estavam sendo liderados por Roger, um homem alto, de cabelos longos e pele levemente bronzeada.
“Então é aquele cara…”, pensou Dhaha, lembrando das contribuições do homem durante a invasão.
Mirena chegou logo depois, carregando um arco e flechas. De forma quase orquestrada, todos os aventureiros que vieram a seguir portavam arcos e flechas.
— Arma nova? — O douradiano encarou com a sobrancelha erguida.
— Praticamente. Você vai entender mais tarde.
Deu de ombros. Se completassem a missão, já seria bom para ele.
— Todos que vão entrar na floresta, um passo à frente! — gritou o líder.
Todos fizeram. Dispensaram apresentações, Roger já era conhecido pela cidade.
“Shhhhh”, o vento soou no ouvido de Dhaha, um calafrio subiu a espinha. Uma sensação ruim amarrou seu peito e turvou sua visão.
Adentrou a mata junto dos outros. Ele não sabia, mas uma calamidade estava para acontecer, uma que mudaria a vida de todos eles para sempre.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.