Capítulo 4: Floresta Prateada (1)
Mirena
Fazia mais de uma hora que o grupo havia adentrado a floresta. Mesmo para um lugar que deveria ser acolhedor, as árvores eram retorcidas e tinham copas densas, impedindo a passagem da luz do sol.
Não era exagero dizer que aquele lugar causava calafrios.
Eles podiam ouvir o balançar dos galhos e o quebrar das folhas secas ao chão.
Mirena estava acostumada a viajar por florestas, conseguia evitar as raízes disformes e já havia identificado alguns frutos comestíveis ao redor, mas não podia negar que aquele lugar era macabro.
Ela parecia uma das poucas pessoas que tinha notado o clima estranho, a maioria parecia descontraída enquanto jogava conversa fora
— Seu nome é bem peculiar, você é daqui mesmo? — Um dos aventureiros perguntou ao outro.
Era um humano alto e de cabelos loiros, mas parecia jovem demais para ser aventureiro, ainda cheio de esperanças sobre o ramo.
— E é por isso que eu estou aqui hoje, mas também… — Outra aventureira disse.
Era uma garota um pouco mais velha, ela conversava com a amiga sobre como deixaria as aventuras e se casaria com o noivo.
— Aqueles dois ali no meio! São os forasteiros que ajudaram no ataque, lembra? É bom a gente ficar perto deles… — Sussurrou um aventureiro para seu grupo.
O grupo encarava Mirena e Dhaha ao longe, se aproximando lentamente.
“Parece que consegui alguns fãs…”, pensou Mirena. A ideia de ter pessoas observando de longe não agradava a ardenteriana.
Ela tentou desviar sua atenção se virando para Dhaha, mas o silêncio que separava os dois era quase palpável. Ela precisava quebrar o gelo, mas Dhaha fez isso por ela.
— Esse lugar é de dar calafrios, não é? — Dhaha deu uma abertura.
— Hm? Ah! Sim, é tudo tão… mórbido. Nem parece uma floresta normal.
— Eu queria perguntar uma coisa para a senho… para você, se não tiver problema — disse ele, sem desviar seu olhar da mata.
“Ele ia me chamar de senhora…”, os olhos dela cerraram, a hesitação em suas palavras era óbvia, mas ela engoliu suas palavras e continuou a conversa.
— Claro! Conversar faz bem nessas horas, esse lugar não é muito convidativo.
— Todos os ardenterianos são assim? Tipo, as orelhas e a longevidade. — Dhaha foi direto ao ponto.
Normalmente as pessoas deveriam se sentir ofendidas com esse tipo de pergunta, era como comparar uma raça inteira com uma única pessoa, mas não Mirena.
Ela encarou o garoto por alguns segundos, de alguma forma ela não conseguia sentir alguma malícia em suas palavras, era como conversar com uma criança curiosa.
— Bom, depende.
— Depende?
— Sim! Assim como vocês, douradianos, cada ardenteriano é diferente, mas temos algumas coisas em comum — disse ela, seu braço mecânico coçou seu queixo. — Todos temos as orelhas longas, conseguimos ouvir melhor com elas, além disso, vivemos mais ou menos o dobro da expectativa dos humanos, somos longevos.
Os olhos do garoto já não estavam mais no matagal à frente, mas sim naquela com quem conversava. Seus olhos brilhavam como os de uma criança que saía de casa pela primeira vez.
— Fale um pouco de você, quase não vi douradianos nas minhas viagens.
— Ah! Bom, a gente não é muito diferente dos humanos, vivemos o mesmo tanto e nossas orelhas são do mesmo tamanho.
“Comparando comigo, heim”, pensou a garota, um leve sorriso surgiu em seu rosto. Fazia muito tempo que não parava para conversar em uma viagem, ainda mais com outro não-humano.
— Eu ouvi que vocês têm olhos especiais, isso é verdade? — Mirena deu continuação à conversa.
— A gente pode fazer nossos olhos brilharem, os mais treinados conseguem usar isso pra ver no escuro. Fora isso, somos todos negros, não sei sobre outras coisas diferentes.
O queixo de Mirena caiu. Ter olhos brilhantes já era algo incrível, mas poder enxergar no escuro era ainda mais surreal.
— Cê veio de Água-Ardente? Ouvi que é lá que fica o país de vocês. — O pequeno interrogatório continuou.
— Está certo, mas recentemente alguns refugiados estão migrando para outros distritos, acho que é por ser perto demais da Grande Fronteira, qualquer um iria querer distân… — Antes que Mirena pudesse terminar, Dhaha cortou sua fala, suas duas sobrancelhas erguidas em choque.
— A Grande Fronteira?! Tipo, aquela Grande Fronteira?
Mirena e Dhaha falavam sobre a mesma fronteira, uma imensa parede de ferro indestrutível, tão alta que era impossível ver do outro lado, e tão longa que era capaz de contornar os quatro distritos de uma vez.
Era simplesmente a obra-prima da arquitetura, a qual não havia sido feita por arquitetos. Mesmo os melhores historiadores nunca encontraram a origem da imensa parede negra e fria.
— Sim… Eu cresci próxima dela, aquela coisa era assustadora… — Ela abaixou a cabeça. Não era fácil encontrar alguém que quisesse viver próximo de algo tão sufocante.
— Ah… Errr… eu sinto muito… eu não queria… — Dhaha balançou os braços sem um sentido, como se tentasse gesticular algo que não conseguia.
— Está tudo bem, Dhaha… — Enquanto falava, uma ideia veio na mente da mulher, como o acender de uma lâmpada. — Na verdade, façamos assim: Você para de me tratar como uma senhora e eu te perdoo por isso! Temos um acordo?
Ele encarou surpreso, como uma criança pega aprontando.
— Tá bom! Temos um acordo!
Mirena soltou um suspiro aliviado, ela não se importava verdadeiramente em falar desse assunto, mas ser tratada como uma senhora a irritava.
— Você é do distrito da Areia Dourada?
— Sim, sim, a maioria dos douradianos vêm de lá. Eles não costumam fazer migrações que durem muito tempo.
— Verdade? Mas você parece estar viajando a muito tempo.
— …
O silêncio alagou o local, tão denso quanto súbito.
— Eu estou viajando porque quero realizar meu sonho.
Uma das sobrancelhas de Mirena se ergueu, a falta de resposta fez Dhaha continuar.
— A maioria dos douradianos não saem da cidade em que nasceram, eles não conhecem o mundo de fora, eles só têm sempre as mesmas histórias pra contar. — Seus olhos se fecharam levemente, a imagem dos livros de sua casa veio como um soco.
A cena de sua mãe lendo livros de histórias o cobriu como uma avalanche, a memória era vívida como se estivesse diante dele.
— Eu não gosto disso, eu quero viver uma grande aventura, quero ser um grande herói! — finalizou Dhaha, com o peito estufado e um sorriso no rosto.
— Hm? Herói?
— Sim, esse é o meu sonho!
A ardenteriana não podia negar que era um sonho possível.
Muitas pessoas largavam os trabalhos de suas famílias e caiam no mundo em busca da adrenalina, estavam na Era das Aventuras, mas Dhaha era diferente. Ele demonstrou no festival que era capaz de cativar as pessoas, além de ser forte o suficiente para ser capaz de derrotar aquela criatura gigantesca. Suas mãos podiam alcançar aquela ambição.
— É um belo sonho, te desejo boa sorte.
Um sorriso estava estampado no rosto de Dhaha, aberto de orelha à orelha.
Quebrando a conversa dos dois, passos ecoaram pela mata, galhos quebrados e folhas secas puderam ser ouvidos por todos os aventureiros. O batalhão parou e se reagrupou.
Mirena ajoelhou uma de suas pernas e armou seu arco e flecha, fechou seus olhos e ouviu os arredores: Passos quadrúpedes, muitos deles cercavam o grupo.
— Saquem suas armas… O tempo de descanso acabou — disse Roger com a voz baixa.
Ergueram espadas e arcos. Todos sabiam o que aquilo significava, eles encontraram os lobos de prata.
Sem aviso algum, uma criatura saltou dos arbustos na direção de Roger, apenas para ser acertado pela flecha de Mirena.
— Arcos em punho! — gritou ela, anunciando o combate iminente.
Dhaha
A criatura parecia um lobo, mas sua pelagem tinha uma juba branca ao redor do pescoço, além do grande chifre prateado em sua testa e garras metálicas nas patas.
Com a queda de um de seus companheiros, a alcatéia avançou sobre o grupo saindo dos arbustos, recebidos por uma salva de flechas e golpes de espadas.
Dhaha saltou sobre um, sua espada envolta por carma se chocou com o pelo da criatura. Para a surpresa do garoto, seu ataque não derrubou a criatura, muito pelo contrário. Os pelos do canino drenaram sua aura.
— Prata maldita!
Ergueu uma cortina de poeira golpeando o chão. Atraiu a atenção de outros caninos que avançaram no meio do caos.
— [Metalóxis]!
Com a mesma velocidade que se ergueu, a fumaça foi desfeita pelo golpe de Dhaha. Portava manoplas em mãos.
Golpeou o primeiro lobo com sua direita, aproveitando a esquerda para agarrar e arremessá-lo contra outro.
— Grrrrr! — A criatura rosnava enquanto três cercavam o jovem.
Pularam juntos, dois pelos lados e um pela frente. Dhaha conseguiu parar a direita e frente, mas sentiu o sangue escorrer pelo braço esquerdo, o animal tinha perfurado sua proteção de couro.
Afastou-os com um chute. Seu corpo sentia a diferença de lutar com uma pessoa para lutar com um animal.
— [Metalóxis]! — disse ele, esperando suas armas se transformarem, o que não aconteceu.
Dhaha ficou confuso por alguns segundos ao ver suas manoplas iguais, mas sua confusão se esvaiu quando a dor da ferida no braço pulsou.
— [Controle de Carma]! — Seu corpo piscou em branco por um instante, mas nada aconteceu.
Quando um dos lobos saltou em sua direção, uma flecha o antecipou, perfurando seu crânio e o derrubando ao chão.
Dhaha pegou um dos lobos, surpreso com a flechada ao companheiro, e o arremessou no outro, nocauteando os dois.
— Você parece cansado, herói! — Mirena brincou, preparando outra flecha. — Precisa de suporte?
— Tsc! Não tô conseguindo usar meu carma, aquele bicho me mordeu. — O garoto correu para as costas de Mirena, cobrindo seus pontos cegos.
— Pode respirar, não somos os únicos nessa floresta…
A pequena clareira havia se tornado um campo de guerra, a alcatéia avançava ferozmente, mas o plano de Mirena dava resultados. Aventureiros carregavam seus arcos e disparavam suas flechas de maneira coreografada, mantendo os animais a uma distância segura.
— Reorganizem-se, afastem os magos do fronte! Se essas coisas morderem eles, vão desativar seus carmas — disse Roger, derrubando um lobo e avançando em outro. — A alcatéia é pequena, formem times e evitem que eles se acumulem.
Roger guiava o campo de batalha, como um maestro guia a orquestra. Dhaha se surpreendeu ao ver a confiança que depositavam no líder, não hesitaram em mudar suas formações no meio do campo de batalha.
Agora as formações eram muito diferentes umas das outras, magos eram esmagadoramente o menor número, cada um era cercado por três ou quatro. Esses se dividiam em arqueiros e combatentes.
O número de lobos reduzia gradativamente, as estratégias individuais estavam brilhando. Um grupo avançava seu combatente para derrubar a criatura, e então os arqueiros a incapacitavam. Outro usava seus arqueiros como distração, cercando o lobo com seus combatentes.
Os magos eram sucintos, tendo apenas dois, além de Mirena e Dhaha.
Uma era a garota que antes se gabava sobre o noivo, a qual agora disparava estacas afiadas de seus cabelos. O outro era um garoto que já fora mordido, se contendo ao arco e flecha que carregava consigo.
“Então isso é uma expedição”, pensou Dhaha, antes de ser puxado para a realidade por uma das criaturas saltando em sua direção.
Esmagou o lobo contra o chão, um grande martelo lucerno surgiu em suas mãos.
— [Metalóxis]!
Um sorriso cobriu o rosto, suas veias saltavam de energia. Seu carma voltou como o disparo de um canhão.
Com as flechas de Mirena sendo seu suporte, se jogou nos lobos que recuaram. Sua arma não mais brilhava, mas seu corpo era reluzente como uma estrela.
Mirena
Um por um, o número de lobos foi diminuindo, até que a clareira estivesse sob controle mais uma vez.
A alcatéia havia recuado na mata, os lobos que restaram eram os que foram encurralados.
Dhaha caminhou até um deles, seu martelo se tornou uma washizaki com o recitar do cântico.
— Pragas malditas… Não passam de parasitas! — Ergueu sua espada, pronto para decapitar a criatura.
Os lobos que observavam de longe, esperando a oportunidade para atacar, uivaram para o céu, correndo para o meio da mata que vieram.
“Eles fugiram?”, pensou Mirena. Eles não pareciam sentir medo dos aventureiros, eram criaturas que facilmente ligariam até a morte contra humanos.
O que os fez fugir?
O corpo do último lobo estava repleto de ferimentos, era surpreendente que ainda conseguia se mover.
Num impulso de raiva, a criatura saltou sobre Dhaha, que revidou baixando sua lâmina.
Como um carrasco que encara o executado, Dhaha não hesitou em golpear o pescoço da criatura. Sua cabeça rolou pelo chão.
— Está feito… — O garoto parou acima do cadáver, erguendo o rosto em orgulho.
Eles gritaram em euforia, uma batalha sem baixas, apenas poucos feridos.
Os guerreiros urraram, comemorando e abraçando uns aos outros. Alguns se sentaram ao chão, exaustos.
Mirena apenas observava, ao cortar os chifres de alguns lobos
Era espantoso que tivessem vencido uma alcatéia inteira de lobos de prata, seu plano de usar arcos foi um completo sucesso.
— Parabéns, senhor herói. — Ela brincou, acenando de longe para o amigo.
— Hmph! Foi seu plano que nos salvou! — devolveu ele.
Mirena levantou uma das sobrancelhas, não esperava um elogio tão repentino.
— Quem diria, até você consegue ser gentil de vez em quan…
Tum
Um som pesado veio da floresta.
— O que…? — Dhaha ergueu a espada em frente ao corpo.
Mirena franziu a testa, suas pupilas encolheram é seu corpo tremeu levemente.
— Os lobos fugiram de medo… — disse ela, sua voz trêmula. — Saquem as armas! Ainda não acabou!
Ela correu na direção do garoto, instintivamente sabendo o que se aproximava.
Tum… Tum
— Dhaha!
Tum… Tum… Tum…
Os tremores se tornaram mais constantes, não eram eles que haviam encontrado o inimigo.
Eles que foram encontrados.
Com um salto, a ardenteriana usou seu braço metálico para empurrar Dhaha para trás, o jogando na direção dos outros.
Uma imensa criatura saltou da mata. Seu corpo era grande e robusto, coberto por uma pelagem cinza e uma juba branca. Suas garras eram muito maiores que as dos lobos, seus dentes acompanhavam as garras.
Era muito maior que um lobo, estando no auge dos seus dois metros em quatro patas.
— Roaaaaar!!! — Era um urso de prata.
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