Dhaha

    O garoto se viu no meio dos companheiros, Mirena havia salvo sua vida mais uma vez. Seus olhos agora cravados no urso, seu corpo imenso e robusto o tornava um inimigo forte, e a criatura sabia disto.

    Cicatrizes cobriam o corpo da criatura, como se estivesse lutando a vários dias.

    Dhaha não se preocupava tanto com o tamanho dele, havia enfrentado um gigante muito maior. O que o preocupava estava em sua boca. O braço de Mirena, seu braço metálico.

    Em meio ao ataque surpresa de antes, a garota conseguiu tirar Dhaha do alcance da besta, mas não conseguiu sair dele. Ela agora estava do outro lado da clareira, encostada em uma árvore. Sua mão pousava onde seu bíceps mecânico deveria estar.

    “Ele quebrou um braço de aço como se não fosse nada”, pensou o douradiano.

    O urso avançou sobre o grupo, derrubando e pisoteando sobre os aventureiros, ainda surpresos. 

    — Roaaaaar! — rugia ele, atacando desenfreadamente. Suas garras atravessavam as armaduras como manteiga.

    Dhaha conjurou um martelo lucerno, enfraquecido pela falta de cântico, e golpeou o lado da criatura. Ele girou com o rebote, golpeando o rosto do monstro em seguida.

    — Aventureiros, em formação! — Roger gritou, saindo do transe da surpresa. — Guerreiros ao redor da besta, arqueiros em terreno elevado, magos o mais afastado possível!

    Obedeceram. Em instantes, o círculo de pessoas se formou ao redor do urso e de Dhaha.

    A clareira virou um campo de guerra outra vez. Dhaha saltou para trás, desviando das garras prateadas que abriram um rasgo no chão onde ele estava. A besta rugiu de novo, seus olhos faiscando com uma fúria que parecia consciente.

    — Tá bravo agora, é? — Dhaha estalou o pescoço. Seu braço sangrava, mas ele nem sentia mais. O calor da batalha aquecia seu corpo como brasas vivas.

    A criatura girou sobre as patas traseiras e desferiu um golpe com a pata direita, arremessando dois aventureiros que tentavam flanquear. Um deles gritou, o som abafado pelo impacto contra uma árvore.

    — [Metalóxis]! — sussurrou Dhaha, puxando o ar.

    A washizaki voltou às mãos, mas ele sabia que não bastava apenas atacar. A prata sugava o carma com o toque, e o bicho parecia ter mais densidade do que qualquer lobo antes. Precisava pensar, e rápido.

    A arma cortava o ar, mas mal fazia arranhões no pelo grosso. O urso girava, imparável, rasgando o solo com golpes monstruosos.

    Dhaha desviava como podia. Era rápido, talvez o mais ágil ali, mas até a velocidade tem limites quando se está cercado.

    — Vai precisar de mais que isso pra me pegar! — gritou o douradiano, recuando.

    O urso cravou as patas dianteiras no chão, e um rugido agudo ressoou da garganta. Era como se estivesse chamando a própria floresta para a luta.

    E a floresta respondeu.

    Um tremor leve percorreu o solo — não era um novo inimigo, mas a própria pressão do carma se esvaindo na região, sufocando outros dois magos. Um deles caiu de joelhos, ofegante.

    — Essa coisa tá deformando o carma do lugar! — gritou a outra maga.


    Mirena

    Do outro lado da clareira, Mirena mordeu os lábios para conter o grito. Seu braço terminava em um monte de engrenagens rachadas, placas retorcidas e sangue, seu braço era ligado firmemente à carne. 

    “Concentra… concentra…”.

    Abaixada atrás da árvore, respirou fundo.

    “Calma… O plano com os lobos funcionou… Isso é só mais uma peça”.

    Ela rasgou um pedaço da própria blusa e amarrou firme em volta do ombro, estancando o sangramento e prendendo o que restava da ligação com o braço mecânico.

    “Ele… Ele tá sozinho… deve ter se afastado do bando… Então é só um”.

    Roger se aproximou dela entre uma esquiva e outra, se fazendo de vanguarda para a mulher.

    — Você consegue atirar ainda?

    — Com uma mão? Hm… — ela testou a corda do arco com a perna. — Se me der cobertura, posso. Mas tenho uma ideia melhor.

    — Quase… — sussurrou a ardenteriana, enquanto preparava uma flecha,, uma das últimas que ainda carregava consigo, imbuindo-a com carma comprimido. Ela apoiou o arco contra o solo, usou o pé para manter firme e mirou com a única mão livre.

    — Dhaha! Recuo lateral, lado esquerdo!

    Ele entendeu no mesmo instante.

    Desviou do urso com uma cambalhota lateral, deixando a fera exposta de perfil.

    — Vai! — berrou ele.

    A flecha cortou o ar como um raio, explodindo ao contato com a pata dianteira esquerda do urso. Não chegou a quebrá-la, mas abriu uma fissura sangrenta entre os ligamentos prateados.

    Absorver o carma não o impedia de se manifestar.

    A criatura urrou de dor.

    Roger aproveitou a abertura, correndo em zigue-zague, e cravou sua espada entre as costelas do monstro.

    O douradiano correu logo atrás. A washizaki se dissolveu, dando lugar a um novo formato.

    — [Metalóxis]!

    Uma lança de duas pontas surgiu, como uma serpente de aço em espiral. Dhaha a fincou direto no flanco da criatura, perfurando por entre a fenda aberta pela flecha de Mirena.

    O urso se contorceu e jogou os dois para longe com um giro desesperado.

    Dhaha rolou pelo chão, tossindo sangue.

    Roger caiu de costas, sua espada cravada na terra.

    — Mantenham a formação! — gritou o líder, mesmo deitado.

    Uma salva de flechas caiu sobre a criatura, que se manteve inabalável como uma fortaleza.

    A garota puxava mais uma flecha, mas seu braço tremia. A pressão no ar estava aumentando.

    “Ele tá puxando o carma pra dentro… ele vai… vai soltar alguma coisa.”

    E então o urso se ergueu. Literalmente sobre as duas patas.

    A floresta parou. Os guerreiros congelaram. Um urso de prata em pé era um monólito de músculos, dentes e garras.

    Com as patas erguidas, o monstro bateu no próprio peito e urrou.

    O carma em seu redor oscilou. Uma aura opaca, prateada e distorcida, surgiu ao seu redor, como se a criatura estivesse sugando a pressão ao seu redor. Era sufocante.

    — Mirena, Atira!!! — berrou Dhaha. — Agora!!!

    Seu corpo tremeu, aquela silhueta imensa a causava calafrios.

    “Não… ele não é aquilo… respira… é só um urso…”.

    Ela puxou com o pé, mordeu a corda com os dentes e usou a força da mandíbula para manter a tensão.

    A flecha voou, atingiu o olho esquerdo. O urso caiu de joelhos, rosnando. Era a chance.

    Dhaha correu, seu corpo coberto por carma como brasas pulsantes.

    — [Metalóxis]! — gritou, sua voz vibrando com a energia acumulada.

    A lança virou uma alabarda, seu cabo se alongando e a lâmina dobrando sobre si mesma como o bico de uma ave.

    Ele saltou.

    No ar, o tempo pareceu parar, e então, como um raio, desceu com a arma girando.

    A lâmina cortou o pescoço do urso, puxada pela sucção de carma da criatura, enterrando-se até metade.

    O silêncio caiu. O monstro ainda respirava, mesmo de joelhos.

    — Fica… — Dhaha apoiou a testa no cabo. — Caído!

    Com o último esforço, puxou a arma em arco.

    A cabeça do urso se soltou do corpo, rolando pelo chão como uma rocha prateada. O corpo tombou para o lado.

    A clareira ficou em silêncio.

    Mirena caiu sentada, no chão. Exausta.

    Os aventureiros explodiram em gritos de vitória e incredulidade, mas tudo que ela conseguiu fazer… foi sorrir.

    Dhaha caminhou até o corpo da amiga, com o olhar arregalado, ainda sentindo os braços trêmulos.

    — Pronto… herói — disse ela, se encostando em uma das pedras.

    — Obrigado…

    E então, Dhaha desabou de costas no chão, respirando pesadamente.


    Dhaha

    O garoto abriu os olhos em um impulso, sua respiração estava lenta e dolorosa. Seu corpo inteiro estava enfaixado.

    Olhou os arredores, não estava mais na clareira, os aventureiros estavam armando acampamento na beira de um lago. 

    Não muito longe dali, Mirena, escorada em uma árvore, se esforçava em usar o braço que restara para reparar o outro. O local onde o braço mecânico deveria estar, estava completamente enfaixado, como um membro amputado.

    Ela tinha um pequeno óculos de engenheiro em sua cabeça.

    Dhaha não hesitou em forçar as pernas a se levantarem, mas a realidade veio como um choque. Uma dor excruciante cobriu todo seu corpo e o levou à maca novamente.

    Seu corpo foi levado ao extremo muitas vezes em pouco tempo, qualquer um precisaria de tempo para se recuperar disso.

    — Argh! — Ele deixou um resmungo escapar, alertando a mulher.

    — Dhaha? — Mirena ergueu os olhos, colocando seu projeto às raízes da árvore.

    Ela se aproximou do garoto, seu cansaço havia sumido após a luta com a criatura, conseguia até mesmo ficar de pé.

    — Você parece… bem. Tem certeza… que perdeu o braço? — disse Dhaha, se estendendo no pano médico..

    — Ah, isso? Sangrou um pouco na hora, mas agora já parou. Ele não estava fundido na minha carne, só muito bem encaixado. — Ela forçou o bíceps, de maneira um pouco vergonhosa. —  Eu já estive bem pior, perder um braço de metal não é nada.

    — Você só pode ta brincando, né? — disse ele, encarando as faixas no braço de Mirena. — Acha que leva quanto tempo pra arrumar?

    — Talvez algumas horas, mas vai estar novinho em folha.

    — E esse… óculos? Veio direto… de alguma feira… de ciências?

    — Eu levo esse óculos comigo, sei fazer uma ou outra engenhoca. Mas e você? Como está se sentindo? — disse Mirena, encostando a cabeça do garoto em um amontoado de panos.

    — Eu to bem… é só essa dorzinha… que tá me incomodando.

    — “Dorzinha”? Você mal conseguiu se mover antes de voltar para o chão. E você está falando como um velho asmatico.

    — Disse a “senhorita” quarentona. — Dhaha fez questão de usar um pouco das forças que restavam para fazer aspas com as mãos.

    “Maldito!”, pensou a garota, se segurando para não fundir o rosto dele ao pano médico no chão.

    — Mas eu to bem, só não… to acostumado a lutar com… lobos e ursos de prata. Eu… não fazia parte do grupo… que exterminava eles.

    — Grupo de extermínio?

    — Sim… São uma praga… no leste.

    — Atenção, pessoal! — gritou Roger, do centro do acampamento. O forte cheiro de comida se espalhou pelo ar. Peixe frito. — Peço para que aqueles que puderem, venham aqui. Levaremos a comida aos que ainda estão machucados.

    Ele continuou servindo pratos de peixe para os que se aproximavam, mas seus olhos eram cerrados e marejados.

    — Eu vou pegar algo para comer. Fica aí, não que você consiga sair do lugar — disse Mirena, cutucando uma das faixas de Dhaha e o fazendo estremecer.


    Mirena

    Não demorou para que a vez de Mirena chegasse. Com dois pratos empilhados, ela se aproximou de Roger.

    — Vocês pescaram eles no lago? — Ela perguntou.

    — Sim… eles precisavam de um pouco de diversão depois de tudo que aconteceu… Mas então, vai querer um prato de peixe frito?

    Roger mostrou um sorriso leve, mas era tão forçado quanto o cheiro do peixe era saboroso. 

    — Você conseguiu… fazer o enterro?

    Abaixou a cabeça e serviu a fritura, seu sorriso tradicional não estava mais estampado, um olhar distante havia tomado lugar.

    — Sim, bem… eu queria fazer algo melhor para eles, eram nossos companheiros, pessoas que eu conhecia… — Respirou fundo, juntando as palavras na garganta. — Sete pessoas, sete companheiros sob meu comando… Eu realmente fiz o meu melhor?

    — Você fez o que pôde, eu sinto muito…

    — Não… ninguém tem culpa, além daquelas coisas. Nós nem sabemos para onde eles foram, e aquilo… aquilo… nem devia estar aqui!

    As palavras de Roger ecoaram na mente da ardenteriana. Aquilo não devia estar aqui?

    — É verdade… Eles deviam estar em migração, não devia haver ursos de prata aqui! — Concluiu ela. — Mas então, por quê?

    — Eu não tenho certeza. Eles são criaturas territorialistas e andam em grupo, eles só deixariam um para trás se ele se perdesse. 

    — Talvez tenha sido isso, mas por quê aquilo se manteria por aqui? Não é meio perto demais da cidade?

    — Eu também achei, mas… parece que isso não impediu aquela coisa… — Roger ergueu a cabeça e estendeu um prato. — Leve isso ao Dhaha e volte para buscar a sua.

    Sem dizer algo, pegou a cumbuca de madeira e voltou até Dhaha. Sabia que nada que falasse o faria se sentir melhor.

    Mal teve tempo para pensar sobre o assunto, se deparou com Dhaha sentado com as pernas cruzadas e com seu braço em mãos.

    — Como você…?

    — É um belo braço… Quem fez isso… sabe muito de ferraria.

    — Consegue mesmo se mover assim?

    — Eu me recupero rápido, carma… é muito útil para… essas coisas.

    — Se você diz. Eu trouxe isso, pega. — Mirena estendeu o prato.

    — Deixa aqui do lado… São cinco… — Dhaha deu alguns tapinhas do lado do pano e voltou a mexer no aparelho.

    — Cinco? 

    — Engrenagens. Aquela coisa… danificou um pouco o revestimento… rompeu cinco engrenagens e… amassou os ligamentos do bíceps.

    A ardenteriana ficou sem palavras. Quando ouviu que o rapaz era de Areia Dourada, esperava que soubesse sobre metais, mas não tanto assim.

    — Eu posso reparar… o revestimento e os ligamentos, mas… as engrenagens são detalhadas demais pro meu [Metalóxis].

    — Você pode fazer isso? Pensei que ia ter que ficar com um “amassado carinhoso” até voltar para a cidade.

    — Você tem as engrenagens?

    — Sim, tem alguns chifres daqueles lobos, mas assim, eu meio que dependo do meu braço… para ter o meu braço.

    — É. Realmente.

    Os dois então começaram os reparos, as pessoas os observavam como se fossem dois ferreiros trabalhando em uma obra prima. Marteladas de um lado, encaixes do outro, um pouco de molde em mais um, e logo o braço estava reparado, antes mesmo do prazo que Mirena esperava.

    — Certo. Deve estar funcionando, tente se mover, Mirena.

    A garota se levantou e esticou a prótese, abrindo e fechando seu punho. O dobrar do cotovelo já não parecia enferrujado, os dedos conseguiam fazer movimentos precisos novamente. Ela terminou dando curtos soquinhos no ar.

    — Isso está muito bom! Você é um exímio ferreiro Dha…

    O garoto havia se encostado na árvore, roncando como uma criança. Seu corpo sofria pequenos espasmos de dor, talvez ele não tivesse se recuperado direito.

    — Falador, gosta mesmo de se exibir… — disse ela, pegando os pratos de Dhaha e levando até a cozinha improvisada.

    Pegou um pouco do peixe frito, seu estômago estava implorando, quase a devorando de dentro para fora. Sentou em uma pedra perto dos outros aventureiros e começou a ouvir suas histórias.

    “Será que aquelas pessoas estão bem? Roger parecia bem abalado…”, pensou, levando o primeiro pedaço de peixe à boca. O cheiro ainda fresco da fritura a fazia salivar.

    Mas ao morder, seus dentes travaram com um som seco e estranho. A textura era esponjosa, porosa, completamente fora do esperado.

    Ela afastou o pedaço com a mão e o observou com atenção. Entre as fibras do peixe, havia um pequeno cogumelo marrom, firme e úmido, como se tivesse brotado ali.

    Franziu o cenho. Aquilo não era normal.

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