Mirena

    “Por quê colocaram cogumelos no peixe? Parece até que não limparam direito”, pensou ela, com mais um pedaço na boca. Não era um pequeno fungo que a impediria de terminar o prato.

    — Você brincando, né? — disse um dos aventureiros com a voz pouco contida.

    As orelhas da ardenteriana se viraram no mesmo instante.

    te dizendo, cara — retrucou o outro.

    — Mas como as pegadas acabam no lago? tá falando que os bichos pararam pra lavar o pé e seguiram pra floresta?

    “As pegadas acabam na água?”, a garota prestava atenção em silêncio.

    — Eu não tenho nem ideia, esqueletos nem cérebro tem. Devem só ter seguido reto e ido pro outro lado.

    As palavras do homem ecoaram na cabeça da garota. Tudo parecia absurdo demais para ser real. Esqueletos feitos de carma sequestrando pessoas, um urso de prata isolado do bando, e disputando território às margens de uma cidade. Havia também os rastros que desapareciam misteriosamente na beira do lago, e, como se não bastasse, cogumelos dentro de um peixe.

    “Aqueles esqueletos foram invocados, e estavam seguindo ordens de alguém, não seriam capazes de pensar sozinhos em limpar os rastros no lago. Mas quem?”, a ardenteriana encarava o nada enquanto terminava seu peixe. “A menos que…”

    Ela se levantou de supetão, largando o prato com as espinhas em cima da pedra. 

    — Vocês viram o Roger? Eu preciso falar com ele! — disse a garota ao grupo de aventureiros, que apenas ficaram de olhos arregalados.

    — Errr… Oi? — respondeu um.

    — Apenas diga se o viu!

    — Alí, na boca da floresta.

    — Agradecida! — terminou ela, indo na direção apontada.

    Os aventureiros ficaram observando, boquiabertos com o ânimo da mulher.

    — Ela não é aquela garota que ajudou na invasão?

    — Pior que é.

    — Ela é bem animada, né não?

    — Bom, é a juventude. O Roger é famoso, de qualquer forma. Hahaha!

    — É verdade! Hahaha!

    Mirena não ouviu a conversa dos dois, já estava longe deles, na boca da floresta.

    A mata era densa e escura, o céu azul que sobrevoava o lago já estava fora de vista. Ela caminhou forçadamente, seu corpo não gostava daquele lugar.

    Avistou Roger não muito longe, ajoelhado em frente a amontoados de pedras. Sete amontoados, sete túmulos improvisados. Não era necessário o uso de palavras, somente a visão já declarava o suficiente. 

    Ele ficava ajoelhado em silêncio, palmas encostadas e olhos fechados. Se levantava, partia para o próximo túmulo, se ajoelhava, repetia o processo.

    — Que Lebkraut guie sua alma, companheiro. — Era possível ver lágrimas escorrendo do canto de seus olhos.

    Se levantou, pronto para repetir novamente, mas Mirena o chamou a atenção.

    — Roger?

    — Ah! Perdão, eu estou um pouco ocupado agora… Se puder voltar mais tarde. — Ele esfregou o antebraço no rosto, tentando apagar os fios úmidos. — Eu só posso fazer isso por eles.

    Ela se aproximou, ignorando o medo que o arredor causava, se ajoelhou, encostou a palma das mãos e fez o que achava mais correto: rezou.

    Lebkraut, o sopro que pulsa nas folhas, abençoe o sangue que corre em nós, e fortaleça o fio desta alma que se foi.

    “Essa reza…”, Roger pensou em interrompê-la, mas seu corpo o impediu. 

    A visão de uma reza honesta era o suficiente para comovê-lo, ela era uma das poucas que tinha se importado. Os dois continuaram, repetiram o ritual até que todos os túmulos fossem devidamente honrados.

    Após alguns minutos, Mirena se levantou e disse:

    — Fico feliz de saber que mais alguém por aqui louve Lebkraut, pensei que apenas nós, ardenterianos, fizéssemos isso.

    — Sim, meus pais tinham esses costumes. 

    — Sério? Eu pensava que os humanos louvassem Stormlen, ainda mais um aventureiro.

    — Eu fui criado em Água-Ardente, não por aqui. Acabei herdando esses costumes. 

    A garota se sentiu menos estressada com todo o redor, ter um conterrâneo era calmante. Entretanto, rapidamente se lembrou de seu objetivo inicial.

    — Ah! Verdade! Precisamos conversar com todos, eu acho que tem algo no fundo do lago!

    — No fundo do lago? Mais essa agora… No que vamos ter que bater, num boto cor-de-rosa?

    — Não. Eu quero dizer que acho que os esqueletos foram para o lago, para dentro dele!

    — Dentro do lago…? Certo, respira e me explica.

    Os voltaram ao lago, para que Mirena pudesse se acalmar e raciocinar corretamente.

    — Certo, vamos do começo. Aqueles esqueletos não são bestas mágicas, alguém os invocou, pois eles estavam organizados demais. 

    — Realmente, eram um mini exército.

    — Também temos aquele urso de prata. Ele provavelmente se separou do bando, mas ele não se manteria aqui sem motivo. Eu acho que ele esteve aqui por uma disputa territorial com alguma das bestas que estão com os esqueletos, talvez aquele gigante do outro dia.

    — Certo… isso parece fazer sentido, mas o que isso tem a ver com o lago?

    A ardenteriana levantou e foi até as sobras do almoço pegar um pedaço de peixe, um estômago com alguns cogumelos.

    — Os rastros daquelas coisas acabam na água.

    — Eles podem só ter atravessado pro outro lado, não? É um lago bem grande.

    — Eu também pensei isso, mas veja — falou ela, entregando o estômago do peixe. — Eu pensei que era apenas uma escolha estranha de temperos, mas não. Isto são cogumelos de cavernas.

    — Cavernas? Então esses peixes comeram cogumelos de cavernas?

    — E sabe o que isto significa?

    — Uma caverna subaquática! — Roger saltou num impulso, estavam cada vez mais perto de finalizar esse inferno. — Aventureiros, reunidos! Achamos nosso próximo ponto de partida!


    Dhaha

    Poucas horas haviam se passado. Os aventureiros andavam de um lado para o outro, enrolando cordas, guardando barracas, lavando as panelas, afiando lâminas. A floresta, antes horripilante e silenciosa, agora exalava vozes e movimentos.

    O barulho martelava os ouvidos de Dhaha, que acordou com a delicadeza de um tijolo caindo. Seus olhos ardiam pela claridade, os ouvidos latejavam e o corpo parecia ter apanhado de uma carroça. O que, tecnicamente, não estava muito longe da verdade.

    “O que tá acontecendo?”, pensou, enquanto se espreguiçava, estalando tudo o que podia estalar. Tocou os pés com as pernas retas, estalou as costas, e deu uns pulinhos de teste.

    — É, tá tudo no lugar… mais ou menos.

    — Ah! Acordou, garoto — disse um dos aventureiros, fechando a última barraca. Era um homem de barba rala e corpo que parecia um barril com pernas. — Se sente melhor?

    — Muito! Já dá até pra vencer umas três quedas de braço seguidas.

    — Hahaha! É assim que se fala.

    — Vocês estão desmontando o acampamento?

    — Sim. Parece que acharam pra onde os esqueletos foram.

    — Sério? Sabe onde está o Roger?

    — Lá na beira do lago, com a moça do braço de ferro e mais um pessoal.

    Mirena e Roger estavam reunidos com outros aventureiros, discutindo ao redor de um mapa improvisado desenhado na areia.

    — Mas como vamos fazer isso? A maioria dos equipamentos vai ter que ficar pra trás — dizia um dos guerreiros, coçando a cabeça.

    — Eles conseguiram chegar lá. Deve ter um jeito — respondeu Roger, encarando a superfície do lago como se ela fosse uma porta.

    — Isso parece uma ideia idiota… Não era melhor voltar e pedir reforço de gente mais forte?

    — Até pensei nisso, mas a nossa sede é pequena, e a mais próxima fica a dias daqui. E não sei se temos todo esse tempo.

    — Talvez… talvez tenha como usar carma — sugeriu Mirena, encarando a palma da mão sem querer parecer impressionante.

    — Sobre o quê vocês estão falando? — perguntou Dhaha, se aproximando com passos cuidadosos.

    — Já tá de pé? Isso é bom — Roger sorriu, surpreso.

    — Já dá até pra lutar com outro daqueles grandões… se for um pouquinho menor.

    Mirena sorriu e deu um tapa leve nas costas do amigo.

    O corpo de Dhaha tremeu na hora. Era como levar um susto e uma lembrança dolorida ao mesmo tempo.

    — Mais um pouco de descanso não te faria mal, acredita…

    — Certo, certo! Só não toca nas faixas de novo, por favor. Elas tão segurando mais do que carne. — Ele respirou fundo enquanto relaxava o corpo rigido. — Mas então, o que houve? Ouvi que vocês descobriram para onde ir.

    — Sim. O problema é o caminho — disse Roger. — Precisamos chegar ao fundo do lago.

    Dhaha parou, literalmente. Os músculos travaram, o rosto congelou.

    — O… fundo do lago?

    — Aparentemente, os esqueletos conseguiram descer, só não sabemos como.

    — Achamos que pode ter sido com carma… algum tipo de manipulação — completou Mirena.

    O suor escorreu pela testa de Dhaha. A imagem de um oásis familiar atravessou sua mente, e com ela, a sensação de que faltava ar.

    “Respira… tá tudo bem… respira” repetia para si mesmo em pensamento, tentando não deixar a tremedeira subir.

    — Dhaha? Você tá bem? — perguntou Mirena, franzindo a sobrancelha.

    — Hein? Sim, sim! É que… só fiquei pensando nessa história de usar o carma. Faz sentido.

    — Acha que tem um jeito?

    — Talvez… Eu treino bastante com compressão, se der pra usar expansão, talvez dê pra criar alguma espécie de… bolha de ar? Ou melhorar a respiração… comprimindo ao redor dos pulmões?

    Ele falava mais para si mesmo do que para o grupo, mas as palavras saíam.

    — “Compressão”? “Expansão”? Achei que carma só servia pra ficar mais forte ou rápido — comentou um dos aventureiros.

    — Eu também — disse Roger, cruzando os braços. O olhar agora estava cravado em Dhaha.

    — Bom, o carma tem três formas principais. Eu não treino elas a muito tempo, sou melhor em só fortificar, mas posso mostrar.

    Dhaha abaixou-se e pegou uma pedra do tamanho da palma da mão.

    — Compressão — disse, enquanto uma chama branca intensa cobria seu braço. Os músculos enrijeceram sob a pele.

    — Canalização. — A energia se moveu da pele para a pedra, envolvendo-a num brilho denso. As bordas ficaram mais afiadas, o brilho parecia proteger e ameaçar ao mesmo tempo.

    — E expansão — e então a pedra explodiu, num estalo seco, virando farelo.

    Os olhos dos aventureiros se arregalaram.

    — E você acha que dá pra usar isso… lá embaixo? — Mirena encarou a palma da mão, pensando se poderia fazer igual se tentasse.

    — Talvez. Comprimir nos pulmões para melhorar o funcionamento… ou expandir o carma pra empurrar a água pra longe… Não sei, mas parece mais promissor do que tentar nadar com armadura.

    Roger encarou o lago e então Dhaha.

    — Bom… só tem um jeito de saber.

    Os outros aventureiros abriram espaço, e o garoto se viu com visão direta da água turva.

    — O quê? Eu?

    — Você é o que mais entende disso — disse Roger, com aquele sorriso encorajador que só serve pra dar mais medo.

    “Droga…”

    O suor escorria, e o lago parecia mais fundo do que antes.

    — Não é melhor a Mirena congelar a água ou algo assim? Hein?

    — Congelar? — Roger se virou para a ardenteriana. — Você pode?

    Mirena hesitou. Pela primeira vez, seu olhar se fechou um pouco.

    — Eu… não exatamente, não agora. Não consigo controlar essa parte do meu poder com facilidade… ou com segurança.

    Dhaha a olhou, confuso. A garota sempre parecia ter uma resposta.

    — Droga — murmurou ele.

    E então encarou o lago. Se não fizesse nada, acabaria junto dos peixes, literalmente.

    Caminhou entre os companheiros, seu corpo estava duro e lento, se forçando a dar meia volta. Seus pés pararam diante do final dos rastros, o reflexo do céu tornava o lago em um completo plano azul.

    Naturalmente, as pessoas veriam aquele lago como algo belo, a se desejar, mas Dhaha não. Quanto mais observava, maior era a pressão em seu peito, a falta de ar sufocava seu corpo e sua mente.

    Seus pés cravaram no chão.

    Mirena encarou o amigo, aquele que quase sempre era bravo e prestativo, agora parecia uma estátua gelariana. Pequenos fulgores de memória vieram à mente, a visão do garoto estático diante do tanque de natação, em Eldon.

    “Ele tem tanto medo assim?”, pensou ela.

    — Dhaha — disse a mulher, se aproximando do lago a passos lentos.

    — Sim? — respondeu ele, já aceitando seu destino.

    — Pode deixar que eu faço o teste, como exatamente eu devo fazer para criar uma bolha de carma?


    Mirena

    Em questão de algumas horas, todos os aventureiros restantes estavam reunidos na borda do lago, apenas esperando o sinal para entrarem e seguirem o caminho

    Mirena terminava de juntar suas coisas, os chifres dos lobos eram pesados, mas nada com que se preocupar.

    Dhaha estava encostado em uma pedra, foi proibido de participar da investida por causa de suas feridas. Mesmo protestando, suas palavras não eram nada perto da exaustão pós-recuperação.

    A mulher se despediu com um aceno, o rosto do de Dhaha estava assustador demais para trocar mais palavras, mas sabia que ele não faria nada.

    Andou até a borda do lago, se desdobrando no meio dos aventureiros, quase espremida. Chegando na frente de todos, Roger a chamou a atenção, olhou para todos e disse:

    — Senhoras e senhores, creio que estejamos todos aqui. — Conforme falava, usava os braços para gesticular. — Após o árduo treinamento, todos já são considerados aptos para descerem o lago com seus equipamentos.

    Eles urraram, estavam animados para seguir viagem.

    — No entanto, — Roger cortou as falas como uma faca de açougueiro. — preciso dizer que não será nada fácil confrontar o que encontraremos lá embaixo. Estamos diante das ações de um mago, e pelo dano causado, imaginamos que não seja um qualquer.

    O silêncio pairou sobre o grupo. Enfrentar bestas mágicas fracas beirava o aceitável, mas um mago capaz de fazer tudo aquilo, isso era além do esperado.

    — Peço que tomem cuidado caso entremos em combate, mas tenho fé em meus companheiros! — Ele deu pequenos tapas nas costas de um dos viajantes. — Tenho plena convicção que conseguiremos superar tudo isso e voltar para a cidade com as vítimas em perfeito estado, pois sabem quem nós somos?

    Seguindo a fala do líder, os aventureiros foram retornando ao ânimo natural. Era impossível negar que ele tinha uma língua afiada e bom tom.

    — Nós somos a Guilda da Folha de Louro! — gritou ele, acompanhado dos gritos dos outros. A moral estava restaurada. — E dito isso, companheiros, concentrem seu carma. Vamos descer!

    Todos se organizaram, formando pequenas filas em direção ao lago. Um silêncio perdurou até às chamas brancas começarem a surgir, cobrindo todas as pessoas.

    Às chamas sibilavam uniformemente, como se formassem grandes bolsões de ar. O conceito era simples, liberar carma para cobrir o corpo, e então prender ele a uma distância.

    A ardenteriana fez o mesmo, seu controle era mais preciso devido ao treino com o braço mecânico, mas ainda era algo que faltava costume. Ao tocar a água, ela se afastou como se a garota estivesse coberta em uma película.

    “Desculpa, Dhaha, mas você não conseguirá lutar assim…”, pensou ela, dando uma última olhada no amigo, ainda sentado na pedra.

    Vendo que o garoto continuava o mesmo, Mirena apenas se virou e voltou para a caminhada.

    Quanto mais fundo chegavam, mais difícil era manter as bolhas de carma. A formação do grupo oscilava lentamente, mas Roger sempre estava lá para mantê-los concentrados. Em menos de meia hora eles já podiam avistar uma caverna subaquática, sustentada por um bolso de ar natural.

    Todos conseguiram entrar com facilidade, terminando em uma pausa para descansar. Controlar o carma não era tão fácil quanto parecia.

    Mirena se sentou próxima a parede enquanto encarava o resto da caverna, ela se afunilava em um buraco de menos de cinco metros, além de exalar um cheiro pútrido por todos os lugares. Algumas manchas vermelhas estavam presas às paredes, não era difícil identificar o que eram, juntas de pequenos rasgos de roupa.

    A mulher sentia uma pressão demoníaca vinda do teto, como se uma criatura os observasse de dentro da escuridão. Seus membros tremiam, seu queixo batia, seus batimentos aceleravam. Engoliu em seco.

    O barulho de ossos batendo veio logo em seguida, ecoando na sala. A ficha caiu, não teriam muito tempo para descanso, estavam na toca de um necromante.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota