Capítulo 7: Medo
Mirena
A colisão com os esqueletos foi rápida e curta, a horda de criaturas ósseas, mesmo que numerosa, não era das mais capazes para manter uma linha de defesa.
— Quem quer que seja, sabe que estamos aqui! Mantenham a guarda alta — gritou Roger enquanto abatia dois inimigos com um arco largo de sua espada.
“Falar é fácil!”, pensou Mirena. “Estamos avançando rápido, mas ainda temos que enfrentar muitos…”.
O ambiente não contribuía para o embate, as paredes eram muito estreitas para realizarem manobras, e a luminosidade era escassa demais para pensarem direito. Era um milagre estarem avançando tão rápido.
Roger gesticulou para que se afastassem, e assim fizeram. Com um brilho pálido e sibilante, o corpo de Roger se cobriu em carma, cortando os esqueletos em um ataque em círculo.
Os outros aventureiros o acompanharam, suas chamas eram consideravelmente menores, mas dividiam os esqueletos com facilidade. Mirena preferiu fortalecer suas flechas, que agora atravessavam os amontoados de ossos ambulantes.
Quando o último esqueleto caiu, se desfez em poeira e um brilho cármico. Não fizeram uma pausa para comemorar, apenas seguiram, não tinham tempo a perder naquele lugar e outra horda já estava a caminho.
— Essas coisas não acabam! — disse a ardenteriana, ao pegar algumas flechas caídas no chão.
— Continuem avançando! Se estiverem cansados… peguem cobertura… em algo ou alguém! — A voz de Roger se tornava cada vez mais lenta. Esteve usando carma desde que desceram o lago, sem parar.
“Ele também não parece que vai durar muito tempo”, pensou a garota, enquanto procurava uma solução enquanto escondida em uma abertura na parede. “Pensa, Mirena, pensa!”.
Foi então que lembrou dos ocorridos na floresta. Após o ataque dos lobos de prata, ela pegou alguns de seus chifres e guardou. Não havia momento melhor para usá-los.
Sacando uma pequena lança prateada e improvisada, ela corria e golpeava os mortos-vivos, que se transformavam em poeira rapidamente.
Vendo os números inimigos caírem, os aventureiros saíram da defensiva e avançaram nos montes de ossos, os reduzindo a pilhas de poeira branca.
— Ótimo trabalho… Mirena! Pessoal, reagrupem! Vamos… seguir pela caverna — gritou Roger, organizando novas fileiras para seguir caminho.
Alguns dos aventureiros estavam feridos, mas por sorte, ou por brincadeira do destino, eram apenas cortes leves e superficiais.
Mirena bateu as mãos na roupa para tirar a poeira, por sorte não havia nenhum ferimento. Entretanto, aquela sensação ruim ainda não havia ido embora, como se algo sombrio estivesse rodeando seu pescoço.
Após alguns minutos caminhando em plena escuridão, uma lamparina surgiu à distância, mas todos sabiam que aquela luz no fim do túnel não significava salvação, e sim um combate iminente.
Outras chamas acenderam-se em sequência, revelando uma gruta imensa. As paredes de pedra úmida se erguiam até o alto, onde estalactites pendiam como dentes antigos. A caverna devia ter mais de quinze metros de altura, e o som dos passos ecoava pelas rochas, devolvido com uma estranha lentidão.
Raízes atravessavam as fendas do teto, pendendo até quase tocar o chão, e o ar carregava o cheiro de terra molhada, mofo e um leve traço metálico, como sangue velho. Havia poças d’água espalhadas e marcas escurecidas no solo, como sinais de arrasto ou tráfego contínuo.
Entre as sombras, pequenos esqueletos caminhavam lentamente, carregando sacos de dormir deformados… pesados demais para parecerem vazios. Do outro lado da sala, uma abertura larga na rocha indicava uma possível saída para a superfície.
Quando pensaram em se reagrupar e organizar um plano, uma voz rouca cortou o ar. Um calafrio subiu dos pés à cabeça da garota, aquela mesma sensação de estar sendo observada voltou como o impacto de um martelo.
— Ora… ora, ora. O que nós temos aqui? — O som de passos sob as pedras ecoou pela sala.
Diante dos aventureiros surgiu um homem alto, vestindo trapos longos que lembravam uma túnica. Porém, agora, estavam rasgados, sujos de uma lama enegrecida, com manchas ainda frescas de sangue escorrendo em pontos.
O tecido cobria quase todo o corpo, preso por cordões e faixas de couro que mais pareciam improvisadas com partes de outros cadáveres. Ao andar, as bordas das vestes arrastavam no chão, exalando um odor pútrido de carne morta.
— Parece que novos cadáveres vieram até meu estoque, isso poupa muito trabalho.
Seus cabelos eram longos, brancos e despenteados. A pele do rosto era acinzentada e esticada demais sobre os ossos. Os olhos não tinham pupilas, apenas uma brancura vazia. um par de orelhas pontudas saíam das laterais do crânio magro, mostrando que um dia aquele ser já foi um ardenteriano, mesmo que agora fosse difícil chamá-lo de ser vivo.
Apesar do corpo magro, o homem exalava uma pressão fúnebre e aterrorizante, junto do cheiro podre de defunto. O estômago de Mirena contraiu e suas pernas falharam, por pouco não a levando ao chão.
— Se… identifique! — gritou Roger, usando a pouca força que restava para erguer sua espada.
— Roger, aquilo não… — Mirena tentou gritar, mas sua voz travou na garganta.
— Você parece… forte. Me diga teu nome, jovem humano. — O homem cruzou os braços e cerrou os olhos, encarando Roger dos pés à cabeça.
— Ara! É noi que faze as pregunta aqui, cinzen… — Um dos aventureiros deu um passo à frente, empunhando espada e escudo.
— Eu não direcionei minha fala a você. — O cinza estendeu o dedo indicador e o dedo médio, ambos cobertos por uma chama negra.
Com o mover dos dois dedos, o sangue do aventureiro voou, cobrindo as paredes e as roupas dos outros. Seu corpo caiu ao chão, totalmente dividido e sem mais reações. Uma morte rápida e indolor.
A mulher havia dado um passo adiante, como se seu corpo soubesse o que aconteceria. Tentou salvar aquele homem, mas tudo que conseguiu foi ver a cabeça dele sendo partida em duas.
Um cheiro podre exalou do corpo mesmo sendo um cadáver fresco. O homem limpou o sangue que respingou em seu rosto, demonstrando apenas uma expressão de desdém.
— Como eu dizia, me diga teu nome.
Dhaha
— Quarenta e oito… quarenta e nove… — Fazia cerca de quinze minutos que todos haviam descido, o garoto agora fazia flexões sob a grama. — Setenta e um… argh… setenta e dois…
Quando soube que não poderia ir para a tal caverna, foi como se um choque tivesse cruzado todo seu corpo dos pés à cabeça. Fosse pelo alívio de não precisar entrar na água, ou pela angústia de não poder ajudar, ele não conseguia mais descansar, estava inquieto como uma criança.
— Noventa e nove… cem!
O corpo despencou no chão, para logo levantar e se alongar. Mesmo completamente enfaixado, ele ainda conseguia se mover razoavelmente bem.
— Agora… são os agacha…
Sua voz morreu ao ver o grande lago no canto dos olhos, repleto daquele azul hipnotizante, mas inundado daquele desconforto. Caminhou forçadamente até a borda e se agachou próximo da água, seus joelhos tremiam.
“Eu consigo!”, sua voz ecoou nos pensamentos.
Estendeu a mão até quase tocar a água, seus membros começaram a endurecer, e sua testa a suar. Era como se estivesse prestes a ser engolido pelo lago, e aquela água o afogaria eternamente.
“Eu… consigo…”.
Como em resposta a seus devaneios, mãos finas e sombrias se ergueram da água, lentas e serpenteadas. A visão do garoto escurecia conforme elas se aproximavam, as veias pulsavam nas têmporas, os olhos estavam arregalados, e as pupilas finas como agulhas.
“Eu…”
Ao toque da primeira mão, um agarrão, e então a falta de ar. Se viu mergulhado dentro de um oásis, com água até o nariz.
Silhuetas de peixes nadavam ao seu redor, mas nenhuma era nítida. Alguns tinham dentes aterradores, outros eram imensos, todos se diferiam.
— Alguém?! — Seus gritos eram abafados pela força das águas, não conseguia sentir o ar entrando nos pulmões, seus pés não tocavam o chão. — Ajuda!
A queda era lenta, contínua, como se o lago fosse infinito. Por fim, se viu esmagado pelo oceano, desistiu de se debater.
Quando voltou a si, saltou para o mais longe que pode do lago. Sua respiração estava pesada e fora de ritmo, se viu acuado como um animal indefeso.
— Eu não consigo! Argh… argh… eu não… consigo… — terminou ele, deitando pelo chão gramíneo e extenso.
Mirena
O corpo estendeu-se pelo chão com a mandíbula separada do resto da cabeça, formando uma enorme poça de sangue. Alguns queriam gritar, mas suas vozes estavam sufocadas pelo medo, outros queriam vomitar, mas seus estômagos estavam ocupados digerindo o que acabou de acontecer.
Nem conseguiram ver o golpe.
— O que foi? Vejo que terei que usar cadáveres sem nome — disse o necromante, erguendo a mão para dar outro golpe.
— Espera! — gritou Roger, com as poucas forças que ainda restavam.
— Então você sabe falar, prossiga.
— Roger! Esse é… o meu nome…
— “Roger”, é…? Eu esperava um pouco mais dos nomes de hoje em dia.
— O que?
— Então? Me digam o motivo de estarem aqui.
— Nós viemos… salvar aquelas… pessoas — disse o líder dos aventureiros. Ele respondia facilmente ao que o necromante perguntava, sentia-se coagido a isso.
— Com “pessoas”, você se refere aos sequestrados de ontem, suponho. — O necromante deu as costas ao grupo e caminhou até o centro da sala.
Mirena apenas observava em silêncio, sabia que seria cortada em duas se dissesse algo. Toda aquela situação era assombrosamente estranha, por quê ele ainda não havia os matado? Por que fazia tantas perguntas? Talvez estivesse se divertindo com isso?
“Anda, se move! A gente precisa fazer algo!”, pensou a mulher, mas seu corpo se negou. Estava paralisada como uma presa acuada pelo predador.
— Sendo assim… creio que vocês estejam atrasados. — O cinzento pegou um dos sacos de dormir das mãos de um esqueleto, e se voltou para o grupo de novo.
Ele arremessou o saco, que atingiu o chão e ecoou o som de metal. Com uma leve olhada, era notável que se tratava de um saco de pertences.
— O que… é isso? — A voz de Roger hesitava entre o cansaço e a descrença.
— Apenas o que sobrou, eu não preciso disso — respondeu o necromante. Suas mãos se ergueram e foram cobertas em chamas negras. — Eu já consegui o carma que queria, meia dúzia de pessoas não farão diferença.
Com o descer de uma mão, as sombras se espalharam pelo chão
— In piedi, [Nekrovia]!
A terra começou a tremer, os esqueletos caíram ao chão desmontados e sem vida, não que antes tivessem muita. A poeira levantou formando um nevoeiro espesso, quase palpável, os impedindo de ver uns aos outros.
A ardenteriana recuperou os movimentos, mas já era tarde demais para atacar o conjurador.
O silêncio veio em seguida. Não havia o som das gotas pingando do teto, não havia o som das pessoas, nem mesmo o som do estalar das pedras.
E então, algo quebrou o silêncio. Um barulho grave e longínquo, como o respirar de uma criatura.
“Não… não…”, pensou a garota, temendo que estivesse certa do que acabou de surgir.
Ela parou outra vez, mas diferente da primeira. Seu coração pulou uma batida, e logo depois duas. Era como se seu corpo estivesse tentando convencê-la a correr para o mais longe possível, mas ela sabia que era inútil.
Seu corpo não saia do lugar, mas a poeira começava a descer.
Primeiro viu uma sombra, e depois uma parede. Essa parede era diferente, branca demais. Não era uma parede.
Uma mão esquelética que beirava os três metros surgiu ao lado do grupo. Imensa, parada, coberta de poeira, pedras e musgo.
O corpo se ergueu em uma dezena de metros, superando facilmente a criatura da noite retrasada.
Ela engoliu suas palavras. Seu corpo tremia, mas não era mais medo do necromante, nem era mais sobre aquela sensação de antes.
— Não… não, não, não… —
Suas pernas recuaram instintivamente. Ela tropeçou e caiu sentada ao chão, indefesa diante daquela monstruosidade colossal. Seus olhos estavam fixos no crânio cadavérico
A mandíbula daquilo se movia, lentamente, como uma montanha viva. Sua respiração era estrondosa, igual ao som de um trovão, e suas costelas descomunais se erguiam cobertas em musgo e presas a pequenos esqueletos que foram pegos em seu despertar.
Era como se a natureza tivesse dado a luz a algo abominável, de proporções incalculáveis, e que agora estava revivido pelo necromante.
A garota queria correr, mas os tremores a impediam de se levantar. Queria se arrastar, mas sabia que não adiantaria de nada, era um mero grão perto daquele colosso.
“Não… por favor, de novo não!”, ela não conseguia gritar, sua voz era abafada pelo olhar da criatura.
— Vá embora… por favor… vá embora… — Mas o som que se seguiu não era o esperado, a criatura abriu seu único olho, que encarava todos do ponto mais alto.
— Tsc! E pensar que acreditei naqueles boatos sobre a página do grimório! — finalizou o necromante ao caminhar pelo túnel no fim da sala. — Estarei esperando em Engrenora, titã. Seja rápido.
A saída se fechou com as pedras que desmoronaram.
E então, com um golpe da mão, três aventureiros foram esmagados contra a parede, seus órgãos se espalharam pelo chão e o sangue deles pintou a caverna. Foi nesse momento que Mirena gritou.
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