Esse é o começo dos capítulos da série de extras, e não necessariamente se trata de algo canônico. Serão capítulos mais bobinhos e simples, mas terão piadas ácidas do mesmo jeito e serão tão divertidos quanto. Esperamos que gostem!


    A luz do sol entrou pela fresta da cortina e quebrou a escuridão do quarto. Mirena forçou as pálpebras e virou para o lado, talvez conseguisse voltar ao seu terceiro sono da beleza. Ou era o que pensava.

    O som das vozes na entrada era mais alto que o som das máquinas do lado de fora, mas esse não era o pior. O que a manteve acordada foi a visão que teve ao virar para o lado: Um douradiano com os olhos brilhando no escuro, enquanto fazia flexões em bananeira.

    O ânimo de Dhaha logo pela manhã, junto do susto causado pela visão repentina, já era o suficiente para fazê-la permanecer acordada.

    — Você deve ser um monstro, sabia? — murmurou ela, com as mãos sobre o rosto para coçar os olhos. 

    Dhaha flexionou mais duas vezes antes de responder. Ele se sentou no chão como se fosse algo simples.

    — Ah! acordada — Ele passou as costas da mão na testa, limpando o suor que escorria.

    — Com você brincando de pistão hidráulico logo pela manhã, quem não acordaria? — devolveu Mirena, ao se sentar sobre a cama e se espreguiçar. 

    Quando ela ficou de pé, quase bateu com a testa na cama de cima do beliche. Fora obrigada a dormir na cama de baixo por Dhaha, que havia dominado completamente a de cima e declarado seu território como uma besta feroz.

    — Marombeiro desgraçado… — murmurou ela, com um suspiro de insatisfação.

    — Falou alguma coisa? — perguntou o Douradiano, já na porta e caminhando para o refeitório.

    — Nada!

    Ela vestiu rápido seu colete e suas botas. Com uma olhada rápida, viu que eles foram os últimos do dormitório a levantarem.

    “A quanto tempo Dhaha estava treinando?”, pensou ela, mas temia a resposta.

    Ao chegar no refeitório, Dhaha pegou o maior prato que conseguiu e passou pela fila que levava à cozinheira.

    A mulher era uma humana com aparência envelhecida e olhar cansado, deve ter servido muitas refeições ao longo dos anos.

    Os olhos dela cerraram-se e pousaram no garoto, que encarava com cara de cachorro pidão.

    — Você já pegou sua porção da manhã — disse ela, de braços cruzados em protesto.

    — Só mais um pouco, tia! — implorou ele, como uma criança pequena.

    — Foi o que você disse da outra vez.

    — É a última, eu prometo!

    — Esse já é o quinto prato, pra onde vai toda essa comida?!

    Ela ergueu a concha com arroz de carreteiro, despejando sobre o prato junto a um pedaço pequeno de carne.

    — Some da minha frente, Pesadelo do Salário Mínimo — Ela enxotou ele e atendeu o próximo.

    Ele pegou o prato, sentou em uma mesa e começou a comer como um cavalo. Sua bochechas inflavam como as de um esquilo.

    Mirena chegou no refeitório, pegou um prato e passou pela cozinheira. Pegou o café da manhã, agradeceu e caminhou para uma das mesas.

    Ao achar a mesa que Dhaha estava sentado a alguns minutos, sentou e o procurou ao redor, somente para vê-lo novamente na fila com o prato vazio.

    A ardenteriana preferiu apenas observar a pobre cozinheira enlouquecer aos poucos com o buraco sem fundo que chamava de amigo. Tudo isso enquanto saboreava seu carreteiro.

    A cena se repetiu mais duas vezes.

    Após terminar sua refeição, Mirena se apoiou nas costas da cadeira e suspirou. Dhaha estava perto de terminar mais um prato bem em sua frente.

    — Para onde vai toda esta comida? — perguntou ela. Os olhos fitavam a barriga do rapaz, que não engordava por nada.

    — Preciso de… nhom… energia. Ainda mais agora… nhom. — Ele até tentou responder, mas a boca estava tão cheia que a garota entendeu apenas metade.

    Mirena soltou um suspiro, como se todo o corpo estivesse perto de relaxar, mas seu rosto parecia tensionado o suficiente para quebrar uma noz.

    — Você bem? — Dhaha mastigou e engoliu o que tinha na boca, indo de um esquilo para uma pessoa. — Parece que chupou um limão.

    — Hm? Limão?

    — É! Você com a cara torta pra esquerda.

    Ela tocou o rosto sem entender, mas então lembrou que estava falando com Dhaha. Nada seria tão óbvio.

    — Eu apenas… não estou acostumada a ter tanto tempo livre. — Ela respondeu, ao puxar o ar pela boca e soltar em um bocejo.

    Foi então que uma ideia cruzou a mente de Dhaha.

    — Tem algum lugar que quer ir? — soltou ele, espontâneo e animado.

    — Algum lugar…? — Mirena encostou a cabeça na cadeira e encarou o teto. — Talvez uma biblioteca?

    — Aí me complica.

    — Foi você que perguntou! E qual o problema de ir em uma biblioteca?

    — É chato demais… nhom… muito quieto. — O garoto enfiou uma coxa de frango na boca como se não fosse nada.

    — Ah! É verdade… às vezes eu esqueço que você não sabe ler — concluiu Mirena. Ela segurava o queixo, fingindo ter entendido algo óbvio.

    — Ei! Eu sei ler, não viaja.

    — Possuo minhas dúvidas…

    — Não tenha!

    — Então, prove.

    — Você quer que eu prove que eu sei ler?! — Dhaha encarou a amiga com incredulidade nos olhos.

    — Por que não? — Ela ergueu o cenho em um ato de superioridade.

    — Fala “duvido”!

    — Eu duvido…

    Bora pra biblioteca — terminou ele, enquanto levantava em um pulo.

    “Muito fácil”, pensou Mirena, com um sorriso discreto no canto dos lábios.


    O som das engrenagens e máquinas a vapor estava bem mais sucinto que normalmente, o dia inteiro estava mais calmo que o normal. Era como se tudo se encaixasse convenientemente por causa de um roteiro.

    Os dois passeavam pelas ruas, observando as pessoas caminharem tranquilamente em suas roupas formais e pomposas. Alta-Engrenora tinha muitos granfinos na área residencial.

    Dhaha andava a passos pesados, arrependido do desafio que havia aceitado.

    “Não era pra ela dizer ‘eu duvido’…”, pensou ele. Várias formas de tentar escapar da biblioteca passaram pela sua cabeça.

    A voz dos comerciantes cortou o ar e os pensamentos do garoto, os gritos de ofertas e pedidos de atenção encheram os ouvidos da dupla.

    — Parece menos movimentado — comentou Mirena. Ela ainda conseguia ouvir os próprios pensamentos.

    — Ah, não. Eu não… — Dhaha parou sua fala no meio, atingido por uma ideia quase perfeita.

    Se ele conseguisse segurar Mirena no centro comercial, talvez ela perdesse a vontade de ir para a biblioteca. Um plano perfeito para ele.

    — Na verdade, eu quero dar uma olhada sim — completou ele, dando início.

    — Pois bem. Daremos uma olhada então.

    Quando Dhaha se virou com um olhar vitorioso, Mirena o encarou de olhos cerrados e um leve balançar de cabeça.

    “Ele realmente pensa que conseguiria me segurar por aqui para fugir de ir à biblioteca?”, pensou ela, o veneno das palavras escorrendo pelo pensamento.

    — Tão ingênuo… — murmurou ela, baixo o suficiente para que ele não escutasse.

    Na frente de uma barraca de quinquilharias, Dhaha enrolava o máximo que conseguia. Olhava várias vezes o mesmo acessório, sem nem saber para que serviam.

    — Eu vou querer… — Ele repetia vagarosamente.

    — Senhor, por favor, decida logo. — A lojista estava apoiada na mesa, com a cabeça sobre a mão direita. — Faz quinze minutos que o senhor está encarando os relógios de punho, e são todos iguais.

    — Eu tenho que ver bem pra escolher.

    A vendedora levou as mãos para a cabeça e soltou um gemido de desespero.

    — Dhaha, com licença. — Mirena tomou a frente e escolheu um dos modelos.

    — Mas eu…

    — Eu te garanto que todos são iguais, são relógios de punho modelo simples.

    — Mas eles…

    — Todos possuem a mesma aparência, basta notar que são os mesmos modelos. — Ela se virou para a lojista — Por favor, coloque isto em sua conta.

    Antes que pudesse protestar, Dhaha já tinha pago por um relógio que não usaria. Seguiram caminhando.

    “Droga! Eu preciso de outra salvação”. A visão do garoto correu pelas barracas de venda.

    Ele repetiu o plano: parou em uma loja, enrolou o máximo que podia, fracassou, e acabou tendo de comprar algo que não usaria. Não importava o quanto repetisse, ou o que mudasse no plano, Mirena sempre conseguia vencê-lo neste jogo.

    Derrotado, Dhaha se ajoelhou e pôs as mãos sobre o chão. Seus olhos estavam quase tão desesperados quanto suas finanças e seus bolsos cheios de parafernalhas.

    — Por que nada dá certo? — sussurrou ele, em desespero. A ideia de passar a tarde em uma biblioteca era mortal para ele, mesmo que fosse alguém com notas acima da média.

    — Então…? — Mirena se aproximou dele, encarando-o de cima. A sensação de superioridade era notável no olhar vitorioso e no sorriso esnobe. — Pronto para a biblioteca, Dhaha? — A última palavra saiu quase cantarolada.

    O garoto levantou a cabeça, a diferença entre os dois era como uma montanha inescalável. Mirena tinha muito preparo.

    — Eu… me rendo… — desistiu ele. No fim, a negação era realmente o primeiro passo para a aceitação.


    Já longe, a dupla caminhava com calma, mas já conseguiam avistar o prédio literário não muito distante. Era mais um prédio comum, com o diferencial de um livro gigante em sua fachada.

    Quando entraram pela porta de girar, o som fino e agradável de um sino tocou e alertou um dos atendentes.

    — Bom dia, em que posso ajudar? — Era uma gelariana em vestes formais, terno e gravata borboleta.

    — Nós viemos procurar alguns livros — respondeu Mirena, caminhando os olhos pelas estantes que se entendiam biblioteca adentro.

    — Você veio… — murmurou Dhaha.

    — Faça silêncio na biblioteca, Dhaha — cortou Mirena. — Enfim, não se trata de nada grandioso, por hora.

    — Entendo. Caso precisem de algo, estarei à disposição. — A atendente se retirou assim que terminou a fala, novamente para trás do balcão.

    Os dois se sentaram em uma das mesas, rodeados por livros de todos os tipos. Desde livros didáticos, a livros de fantasia.

    Mirena pegou um deles e começou a lê-lo, ela folheava com calma e atenção. Já Dhaha, deitou sobre uma das mesas e começou a roncar. O esperado.

    Mas Mirena não ia se dar por vencida, ela tinha uma carta na manga.

    — Então eu estava certa em duvidar de você? — sussurrou ela, a voz martelando na cabeça do amigo.

    Sem dizer uma palavra, o douradiano se levantou e começou a analisar as estantes. Passou a mão sobre vários títulos, mas nenhum lhe chamava a atenção.

    No fim, voltou para mesa e cutucou Mirena.

    — Tem alguma recomendação? — falou ele, enquanto tentava esconder que não entendia nada de livros. 

    “Ele não entende nada de livros…”, pensou ela, com um acerto em cheio.

    — Bem, deixe-me pensar… — Ela coçou o queixo por alguns segundos, mas logo abriu os olhos em esclarecimento. — Na verdade, possuo sim uma recomendação.

    Ela estendeu o braço e pegou um dos livros, de capa marrom cor de bronze, e entregou ao amigo.

    — “Karmagó”? — perguntou Dhaha, com uma sobrancelha erguida.

    — Leia Karmagó. — Ela respondeu como se fosse óbvio, como quem diz que a água do mar é salgada.

    — É sobre o que?

    — Uma coletânea de contos, alguns envolvem o Karmagó, o Grimório da Primeira Maga.

    Ao ouvir a palavra “contos”, a atenção de Dhaha se fixou. Gostava de contos, e muito.

    Ele sentou-se à mesa e começou a ler.

    Começou folheando as páginas com baixas expectativas, lia devagar e sem ânimo. Mas isso durou pouco.

    Após as primeiras três páginas, seus dedos aceleraram, seus olhos se fixaram com curiosidade. O desenvolvimento era bom, acima da maioria, os personagens eram marcantes e vividos, agiam como pessoas reais. O garoto estava preso no que lia, completamente imerso naquele mundo de alta fantasia.

    “Eu preciso terminar de ler isso”, pensava ele, com uma concentração surreal.

    Mirena o encarou por alguns segundos, um sorriso surgiu no canto da boca. Ela voltou a ler seus livros, com a alegria parecida com a de uma irmã mais velha que convenceu o mais novo.

    Os minutos foram passando, até que se tornaram horas. O sol já havia se escondido por trás das casas, os dois permaneceram na mesa quase o tempo todo, apenas com uma pausa para o almoço.

    Quando Dhaha terminou o livro, já estava escuro e a biblioteca se preparava para fechar. A realidade o atingiu como um soco: ele tinha lido por mais de horas.

    Ele se levantou em um salto, virando a cabeça de um lado ao outro agitado. Do balcão, a atendente gesticulou para que ele não fizesse barulho.

    — Por quanto tempo…? — Ele começou a pergunta, mas foi cortado por Mirena.

    — Cerca de sete horas — disse ela, sem tirar os olhos do livro em mãos.

    — Sete?!

    — É. Eu mesma não esperava que você fosse gostar tanto assim de livros — Com o fechar do livro, ela levantou da cadeira e se aproximou de uma estante.

    Todos os livros que antes estavam enfileirados pela mesa agora estavam organizados por gênero e autor, e recheavam as prateleiras do local.

    — E então? Gostou do livro? — perguntou ela.

    “Eu amei!”, pensou Dhaha.

    — Eu achei legal — disse Dhaha.

    — Fico contente. Podemos voltar em nosso próximo dia de folga.

    “É claro que eu aceito!”, pensou Dhaha.

    — Pode ser legal — disse Dhaha.

    — Mas agora… — Ela apontou para a atendente, que começava a juntar suas coisas e procurar suas chaves — Temos que evitar sermos enxotados.


    As ruas haviam escurecido, quase não se via pessoas andando pelos caminhos de tijolos e bronze. Os postes de lamparinas lutavam para manter o chão visível.

    O interior da guilda estava iluminado, tanto pela forte luz amarela do forno aquecedor, quanto pela alegria dos aventureiros. Eles festejavam sempre que tinham motivos, e quando não tinham, procuravam motivos para festejar.

    Mirena não perdeu tempo e foi para o meio dos beberrões, dois canecos grandes de cerveja em suas mãos e um sorriso de orelha a orelha.

    Dhaha observava ela de uma das mesas, rodeado por pratos cheios de comida. Ele mordia um pedaço de carne e já colocava uma colher de arroz para dentro. Quando parecia engasgar, bebia uma caneca média de água.

    — Esta festa é divertida, não é? — Mirena se aproximou da mesa, um dos canecos já tinha esvaziado e ela permanecia sóbria.

    — Demais! Nhom… — Entre uma mordida e outra, Dhaha virava seus olhos para a amiga.

    — Ei! Dhaha! — berrou um dos aventureiros, um gelariano de roupas vermelhas e cabelos prateados. — Eu te desafio!

    — Qual o jogo? — Dhaha levantou e alongou os membros no mesmo instante.

    — Queda de braço.

    — Cai dentro!

    Rapidamente uma mesa foi colocada no centro de toda a festa, Dhaha de um lado e o aventureiro do outro.

    — Eu não sou a Anitta, mas prepara… — Dhaha posicionou o braço no centro da mesa, os olhos ferviam com uma determinação surreal.

    — Quem é “Anitta”? — perguntou o desafiante.

    — Tenho a menor ideia! — Com o fim da frase, o grito de início foi dado.

    Eles forçaram os braços, um tentando derrubar o outro. As pessoas berraram ao redor, torcendo e vaiando os competidores.

    — Esmaga esse prodígio louco! — gritavam alguns.

    — Mostra com quantos paus se faz uma canoa! — gritavam outros.

    Mirena observava do meio da multidão, todo aquele caos era reconfortante. Podiam ser pessoas malucas, mas se tornaram seus companheiros. Podiam ser situações inconvenientes, mas eram momentos valorosos para ela.

    — Não acho ruim ter uma folga de vez em quando… — murmurou ela, virando o restante do caneco e pedindo mais um.

    Aqueles dias podiam ser dias corridos e sem controle algum, mas eram os dias de paz que eles tinham… e que eles queriam.

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