Esse é um dos capítulos da série de extras, e não necessariamente se trata de algo canônico.
Extra 2: E se… Karmagó fosse uma escola
O frio da manhã dominava o recinto, um quarto escurecido pelas cortinas blackout. Os feixes de luz amarela lutavam para atravessar a barreira de poliéster, mas não passavam além dos pequenos vãos entre a cortina e a parede.
O ronco de Dhaha era a única coisa competindo com o silêncio do quarto, ele era estrondoso, grave, cheio de si igual ao dono. Mas não demorou para seu reinado acabar, tomado por um som repetitivo e estridente.
Era o despertador, disparado do gaveteiro no outro lado do quarto. Dhaha era inteligente, sabia que colocar o despertador próximo da cama era má ideia, os últimos dias de aula perdidos o ensinaram bem.
O garoto se levantou em um pulo, correu até o despertador e o desligou com um golpe de cima para baixo. Eram cinco e meia da manhã.
Ele abriu as cortinas e as janelas, o clima da manhã tomou conta do quarto. Uma das maiores vantagens do verão era que não estava escuro, o lado de fora estava nítido e pleno.
O quarto do garoto era bagunçado como um ferro-velho, mas ele jurava que tudo estava em seu lugar. Halteres de dez quilos jogados no canto, pôsteres de super-heróis tortos nas paredes e, contrariando o resto, roupas perfeitamente dobradas no canto da cama.
Era uma bagunça organizada, ele acreditava fielmente nisso.
“Não tô atrasado, já é lucro”, pensou ele, ao trocar a roupa casual por um uniforme de verão.
Os trajes eram formais e pouco ergonômicos, mesmo para o clima quente. Pretas, de mangas médias e botões dourados.
Ele desceu as escadas com rapidez, saltando de dois em dois degraus. Na cozinha, o cheiro dos mistos quentes tomava o ar, era seu pai preparando o café da manhã.
— Bom dia, filhão. Acordou na hora, aí sim — disse o mais velho, ao colocar um dos mistos para o garoto. — Mas bem em cima dela, corre com esse pão!
— Bom dia, pa… — Antes que o garoto terminasse, o misto quente já estava em sua boca.
O pai do garoto não disse uma palavra, apenas jogou a chave reserva para ele e deu um sorriso caloroso.
Dhaha pegou sua mochila, jogada no sofá, e correu para a porta. Tudo isso, apenas para ser barrado por um par de mãos pequeninas que seguraram a barra de sua calça.
— Num tá esquexendo nada? — falou sua irmãzinha enquanto fazia biquinho.
— Digulpa, Aisha. Bem cá. — devolveu ele, com o misto ainda na boca.
Ele abraçou a garota enquanto fazia cócegas em suas costelas, o que desarmou completamente a criança.
Aproveitando o momento de liberdade, Dhaha avançou até a porta, pegou sua bicicleta do lado de fora e pedalou pela rua. Aisha apenas o observou com os olhos cerrados e a fúria de uma criança de dez anos.
Terminou o misto quente em alguns segundos, seu estômago era quase sem fundo.
O garoto pedalou até estar longe de casa, quando desacelerou e lentamente seguiu. Uma voz ecoou em suas costas, calma, mas carregada de riso:
— Bom dia, senhor Atleta de Triathlon — disse Mirena, ao surgir de trás da bicicleta. — Está apressado para o que? Você nem mesmo apareceu durante a última semana.
Sua fala era forte e clara, marcada pelo sotaque alemão que possuía.
Ela estava vestida em seu uniforme branco e marrom, com uma saia indo até os joelhos e uma gravata caindo do pescoço ao busto.
— Eu tive problemas… com meu sono! Sim, isso mesmo! — Dhaha tentou se defender, mas era um péssimo mentiroso.
Para Mirena, Dhaha era como um livro aberto, ela o conhecia desde o fundamental e o acompanhou até que ele chegasse ao ensino médio.
— Acredito… — insinuou ela. — você mente igual uma porta.
— Shiu! Se reclamar, eu desenho na sua prótese — ameaçou o garoto, rabiscando o ar com os dedos.
— Você não teria essa audácia…
A garota afastou o braço direito e o tapou com o esquerdo. Era uma grande prótese, simples com a aparência de um braço comum.
— Testa se eu não tenho, testa!
Antes que pudessem continuar a discussão, um par de braços envolveu os dois em um abraço, eles sentiram os músculos rígidos e definidos.
— Bom dia para vocês também! — Era Roger, o capitão do time de futebol. Seu corpo era grande para a idade, alto, bronzeado pelo sol e de cabelos negros que chegavam até o meio das costas.
— Bom dia… Argh… Roger — disse Dhaha, enquanto tentava tirar o braço do amigo de seu ombro.
— Como você tá, Dhaha? — A animação na voz do atleta era contagiante, mas um pouco brilhante demais. — Sumiu a última semana toda, tava treinando pra entrar na seleção da Karmagó?
— Já disse que não vou entrar, Roger — Dhaha conseguiu desfazer o aperto do amigo. — Não tô interessado em esportes.
O amigo abaixou a cabeça em aceitação, mesmo com um tom de decepção.
— Tá bom, tá bom… — Roger abaixou o tom, em uma fala arrastada. — Mas é um desperdício, não é qualquer um que consegue aquele domínio de campo!
— Dhaha é um prodígio, ele consegue fazer coisas incríveis — falou Mirena, com pequenos toques no braço de Roger. — Mas você pretende me agarrar por mais quanto tempo?
Ele a soltou em um pulo, estendendo as mãos para o alto em rendição. Dhaha olhou para aquilo enquanto segurava o riso, Roger não era dos melhores em lidar com garotas.
Os três continuaram em direção a escola e jogaram conversa fora durante o caminho. Roger volta e meia comentava sobre o campeonato estadual, suas mãos tremiam de excitação.
Ao chegarem nos portões, Mirena desviou seu caminho para outro prédio de classes.
— Ué… onde cê tá indo? — Dhaha falou baixo, mas alto o suficiente para que ela ouvisse.
— Eu estou no terceiro ano, e não no primeiro. Você realmente se esqueceu disso? — A garota ergueu o cenho, nitidamente sem entender a lógica por trás do amigo.
— Rapaz. É verdade, né? — O garoto fez a maior cara de tacho que podia.
Nisso, o grupo se separou em direção a suas respectivas salas.
A sala de Mirena era uma das mais afastadas, no final do corredor. Caminhando sozinha, ela reparava os olhares curiosos sobre seu braço, era como andar em uma passarela de moda do desconforto.
“Desse jeito, os olhos de vocês irão cair”, pensou ela, com uma das bochechas infladas em indignação.
Ao abrir a porta da sala de aula, o silêncio tomou conta dos murmúrios alheios. Era uma sala grande, mas pouco populosa.
Da entrada, conseguia ver cerca de dez pessoas, o que já era um número bem grande para uma sala do terceiro ano. A peneira, carinhosamente batizada de “seleção natural” pelos alunos, era bem rigorosa.
Sentou-se em sua cadeira e organizou seu material. Quando pensou que teria alguns segundos de respiro, um grito eufórico explodiu em sua orelha.
— Mi… re… na!
A garota quase caiu da cadeira.
A dona do grito era uma garota alta e de cabelos loiros e extremamente claros, ela mostrava a pele pálida e o corpo definido através das partes descobertas do uniforme. Era Syndona.
— Eu já não possuo um braço, e agora você quer que eu não tenha um dos ouvidos também? — falou Mirena, ao recuperar o fôlego perdido no susto.
— Vamos lá, não precisar ser chata. Hahaha! — A loira esbanjava um sorriso.
Um leque de papel atingiu a nuca de Syndona no mesmo instante.
— Você precisa aprender a se controlar, Syn. — Uma voz doce, mas controlada, soou atrás dela.
Era outra terceiranista, dessa vez uma garota de pele preta, com cabelos escuros trabalhados em dreads, além do distintivo do conselho estudantil. Era Thalwara.
— Não precisa me bater com leque assim! — Syndona exagerava a reação, com as mãos atrás da cabeça.
Mirena tentou muito segurar seu riso, mas ele escapou pelo nariz, junto de um sutil sorriso.
As outras duas puxaram cadeiras e sentaram ao redor da primeira, jogando conversa fora em assuntos descontraídos. Elas não sabiam exatamente quando, mas o assunto se tornou os clubes que cada uma frequentava.
— Como tem estado o time de boxe, Syndona? — Mirena foi a primeira a perguntar.
— Estar bem, eu não perdi nenhuma partida desde a peneira — disse Syndona, ao jogar o corpo na cadeira e testar as leis da física. — A gente ter uma nova competição esse fim de semana, apareçam lá!
— Não vamos faltar, e você vai trazer o título pra casa — Thalwara completou calmamente, como se conseguisse medir cada palavra que saía de sua boca. — E o clube de história, Mi?
— Hm? Cof cof… — Ela fora pega de surpresa, estava virando uma garrafa de meio litro de água goela a baixo. — Tudo tem estado nos conformes, a professora Vera tem nos ajudado.
Ao terminar a fala, ela voltou para a garrafa, Thalwara encarava a cena incrédula.
“Como ela consegue beber tanta água de uma só vez? Ela nem é uma atleta!”, pensou ela, não querendo a resposta.
— Mas e você? — falou Mirena.
— Eu? — Thalwara ergueu a sobrancelha.
— Sim. Sobre aquela competição de corrida no final da semana passada.
— Ah… Eu venci.
O silêncio tomou a sala.
— Você venceu?! — gritou Mirena estupefata com a falta de tato da amiga.
— Sim — respondeu ela.
— E você não nos contar?! — Agora foi a vez de Syndona gritar.
— Vocês estão gritando muito, a aula já vai começar.
— Mas, mas… — Mirena tentou falar, mas a frase morreu na garganta.
As duas silenciaram-se e encararam Thalwara. Ela sempre tratou o esporte apenas como um hobby, às vezes até demais, mas sempre foi muito boa nele.
— Muito bem, todos nos seus lugares! — A voz rouca e gasta do professor Halvar chamou a atenção de todos quando ele entrou pela porta.
Os menos de quinze alunos restantes arrumaram as cadeiras que pegaram e voltaram a seus lugares. Syndona sentada enquanto rabiscava em seu caderno, e Thalwara revisando suas anotações, a seriedade no rosto de ambas era notável, mas por motivos diferentes.
— Hoje falaremos sobre inequações… — disse ele, dando início a mais uma aula exaustiva.
As horas foram passando, e as palavras do professor de matemática se tornavam mais pesadas a cada segundo. O recreio já havia passado, e agora Dhaha desejava apenas sair daquele lugar.
“Eu quero ir pra academia…”, pensou ele, com pequenas repetições de levantamento de lápis.
Pela janela, conseguia ver Roger e Thalwara juntos dos outros times de esporte. Eles tinham a grande vantagem de pular a última aula.
— Eles podiam liberar mais cedo… — murmurou ele.
Foi então que sentiu algo atingir sua cabeça, rápido como uma pedrinha: era um giz de cera.
O medo tomou conta de seu corpo, aquilo era um sinal. Sua distração foi seu declínio, não ouviu as palavras do professor Halvar, e agora tinha uma maldição em suas mãos.
— Senhor Dhaha… — A voz do professor soou como as trombetas do apocalipse. — Pode responder minha pergunta?
O garoto levantou a cabeça devagar, seu corpo tremia como se estivesse diante de uma zumbi gigante.
— Eu… errr… eu… — gaguejou ele.
— Sim, você. — Ele caminhou até o garoto. — Você pareceu bem animado com o mundo exterior a sala, então claramente deve saber a resposta.
Dhaha trancou tanto que não passava nem wi-fi. Tentava falar alguma coisa que, ao menos, soasse inteligente, mas as palavras morriam na garganta.
— Eu… errr… eu…
— Se tornou um disco riscado? — debochou o professor.
Em meio a sua crise existencial, Dhaha procurou salvação ao olhar pelos lados da sala, e então viu o anjo divino: uma garota segurando uma folha de caderno escrito “Trinta e sete”.
Era Amnara, a garota da cadeira ao lado.
— Trinta e sete! — falou ele, com a maior confiança do mundo.
— Errado! — respondeu o professor, ao jogar outro pedaço de giz. — Amanhã, você deverá entregar as respostas de toda a folha.
— Droga! — Dhaha murmurou.
Tinha sido traído pelo anjo da salvação, ou simplesmente Amnara não era boa em matemática.
Mesmo que tenha sido enganado, ver o sorriso travesso no rosto da garota o reconfortava. Seu rosto deu uma leve corada.
— Você me paga… — sussurrou ele, para ela.
— A sua cara foi impagável, Dha — devolveu ela.
O garoto prestou mais atenção ao final da aula, na curta espera de ir embora. Com o tocar dos sinos, foi o primeiro a sair, mas não sem antes dar um aceno de despedida para Amnara.
O sol já não estava mais a vista, apenas o brilho alaranjado de seu pôr. Ao chegar no portão, avistou que Mirena o esperava com toda a paciência do mundo.
— Cheguei a pensar que você ia morar com o professor — esbravejou ela.
Ou quase toda.
— Eu atrasei cinco minutos, ele segurou a sala toda, cara!
— Acredito… — Mirena colocou a mão metálica sobre a boca como se insinuasse algo. — Você estava era falando com a Amnara, fu fu fu!
A risada era falsa e estava lotada de escárnio.
— Como você…?! — O rosto do garoto se tornou o tomate mais vermelho da vizinhança.
— Eu possuo meus métodos.
— Argh! — Ele se aproximou da garota e sua voz se tornou um sussurro. — Só fica quieta, Mirena… Vai que ela escuta, caramba…
— Então eu estava correta? Hahaha!
O rosto de Dhaha avermelhou-se ainda mais. Ele foi pego no pulo, enganado como um patinho.
— Droga! Só vamos embora — terminou ele, de cabeça baixa ao sair do portão.
Derrotado pelas duas garotas, ele apenas aceitou calado. Durante todo o trajeto, Mirena o perturbou com as perguntas mais vergonhosas e específicas possíveis.
O garoto permaneceu em silêncio, o silêncio mais vergonhoso de sua vida. O trajeto de sempre parecia imensamente maior agora.
Mas isso era apenas a segunda-feira.
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