Capítulo 35 - Visão Apocalíptica

Ikaris permaneceu imóvel.

“Você não parece estar surpreso com esta revelação.” A velha xamã sorriu amargamente.

Concentrando-se nos olhos da moribunda, o menino respondeu factualmente:

“Malia parece cruel e indiferente, mas na verdade ela tem um bom coração. Ela responde às nossas perguntas, deu um pouco de carne para mim e para Ellie e também correu grandes riscos para conseguir os Morangos Coração que você precisava para se curar. Ela pode ter visto meu potencial como um ameaça, mas ao contrário de outros aldeões minhas intenções nunca foram hostis. Não entrei em nenhum esquadrão, nem interagi com ninguém além do estritamente necessário. A menos que ela seja paranoica e fundamentalmente má, a alegação de que o Rastejante foi jogado contra minha tenda intencionalmente não é falsa.”

“Eu pensei por um tempo que era a carne da Besta Demoníaca em minha posse que fez o Rastejante entrar na minha tenda, mas em retrospecto não fazia muito sentido. Afinal, eu não era o único com comida. Ellie e talvez alguns dos outros aldeões que escondiam seus suprimentos também tinham. Eles não foram atacados por isso.”

“Então, o que te avisou?” Grallu grunhiu curiosamente.

Ikaris zombou. Que nervo!

“Sério? Você não tem ideia?” Ele zombou em voz baixa. “Percebi a diferença entre você e Malia no dia em que te acompanhei ao ritual na ausência de Malia. Malia não fala muito, mas sempre pergunta o primeiro nome dos recém-chegados. Mesmo que seja apenas cortesia, ela se esforça memorizar seus nomes, sabendo muito bem que a maioria não sobreviverá.”

“No dia em que você a substituiu, você não perguntou o nome de ninguém. Era como se esses prisioneiros já estivessem mortos ou pelo menos gado dispensável que não valia a pena conhecer melhor. Naquele momento, eu sabia que seu coração estava frio como pedra.”

“É justo, hehe.” A xamã cacarejou em sua cama, mas logo se transformou em um ataque de tosse.

Coff, coff, COFF!

Um borrifo de sangue escorria de sua mão e a velha olhava para seu sangue com relutância e remorso. Seus olhos brilhavam levemente, sua linhagem se manifestou para mantê-la viva por mais algum tempo.

“Mas há uma coisa que eu ainda não entendo.” Ikaris retomou, ignorando seu rosto pálido e ofegante.

“O que é?”

“Naquela noite, você queria que eu morresse ou estava tentando me morder, ou me contaminar por uma daquelas criaturas?” Ele perguntou gravemente.

Grallu não respondeu de imediato desta vez.

“Você não percebe o quão dotado você é com a magia.” Ela timidamente confessou depois de um tempo. “Você é uma anomalia. Você estava ferido e esquelético para começar, e sua Centelha Divina é uma das mais fracas que eu já vi. E ainda assim, você lançou seu primeiro feitiço tão facilmente! E foi tão perfeito! Você sabia que quando um feiticeiro novato lança Véu Negro pela primeira vez em alguém, é realmente muito raro cegar… Tendo testado muitos estagiários, na melhor das hipóteses eu vejo alguns pontos pretos obstruindo minha visão e minha visão escurece um pouco como se uma nuvem passasse antes do sol. Mas ainda consigo distinguir o suficiente para me orientar. É somente após a sétima ou oitava tentativa que o Véu Negro deles se torna bom o suficiente para me impedir de ver corretamente. E outras dez tentativas antes que eu não consiga ver nada…”

“No seu caso, seu Véu Negro teve vida curta, mas esta é a primeira vez em minha longa vida que experimentei a escuridão total. Só há uma possibilidade para explicar isso: inteligência excepcional, habilidades de foco e imaginação. Mas o mais importante… uma mente poderosa. Sua Centelha Espiritual deve ser pelo menos dez vezes mais forte que a de um ser humano normal.”

“101 vezes. É 101 vezes mais desenvolvida que o normal.” Ikaris a corrigiu com um sorriso, aproveitando que ela estava prestes a morrer para se gabar um pouco.

Grallu congelou, sua mandíbula desdentada ficou escancarada. Por um segundo, o adolescente pensou que não havia recebido a notícia e sofreu um AVC prematuro. Felizmente, ela começou a respirar novamente e com um longo suspiro desiludido ela proferiu,

“Não é de admirar que a linhagem Escravo Rastejante não afete você. No final, parece que ganhei minha aposta. Então, para responder à sua pergunta, sim, eu queria que você fosse mordido ou arranhado por aquele Rastreador. Eu estava pronta para intervir a qualquer momento, mas mesmo se você morresse, não seria uma grande perda. Só provaria que eu não estava me empolgando com nada. Se tivesse sucesso, Malia e a vila teriam ganhado um poderoso aliado.”

“Mas como você pode ver… foi tudo em vão. A vila ainda foi destruída. E ainda mais cedo do que eu esperava.”

Ikaris permaneceu em silêncio enquanto aprendia a verdade. Dizer que não guardava rancor da xamã seria mentira, mas ele tinha que admitir que o arranhão tinha sido uma bênção disfarçada para ele. Se lhe pedissem para voltar a ser humano agora, ele recusaria veementemente. 

BADUM! BADUM!

De repente, o chão da cabana começou a tremer. As paredes racharam e a palha do telhado desabou parcialmente. O menino protegeu a velha, mas quando encontrou seus olhos, viu seus olhos esbugalhados de terror e desespero. Um cheiro de urina imediatamente invadiu o chalé.

“Ikaris, escute o que vou te dizer, não dá tempo. Fuja para-“

WAAAAAAAAAAAAA!

Um lamento alto e insuportável, em algum lugar entre o rugido de um elefante e o uivo de uma baleia, ressoou nos tímpanos de todos os seres vivos do Arbusto Estéril. Foi o som mais intrigante e inspirador de medo que o menino já ouviu em sua vida.

Ikaris sentiu sua visão embaçar brevemente devido a uma dor de cabeça repentina, mas os sintomas diminuíram quase tão rápido quanto surgiram. No entanto, quando sua visão se restabeleceu, ele viu que a xamã havia desmaiado, o sangue escorria de todos os orifícios faciais.

Quando ele tomou seu pulso, confirmou que ela ainda estava viva, mas mal. Das poucas horas ou dias restantes de vida, tinha apenas alguns minutos restantes.

Enquanto se perguntava o que fazer, ouviu o grito de partir o coração de Malia lá fora. Ele correu para fora e percebeu por que a terra começou a tremer.

Dezenas, centenas de milhares de guerreiros em armaduras brilhantes de todas as origens vindos da Grande Muralha estavam correndo para o norte em total anarquia, pisoteando tudo em seu caminho. Entre eles estavam humanos, elfos, anões, goblins, orcs, kobolds, ogros, onis, hobbits e todos os tipos de espécies diversas que carregavam o brasão e a bandeira do exército ou nação a que serviam.

Ainda mais chocante, ele viu enormes Bestas Demoníacas, ainda mais massivas que o Bisão Alfa, correndo para o norte, alheias aos milhares de soldados fugindo na mesma direção que elas. Ele até pensou ter visto um pássaro tão grande quanto um Boeing voando por eles, batendo as asas implacavelmente para desocupar a área.

O que todos esses soldados e bestas tinham em comum era o puro terror que desfigurava seus rostos e o sangue que escorria dos orifícios faciais de muitos deles. Os que estavam a cavalo ou outra criatura açoitavam suas montarias implacavelmente, estes últimos aceitando o tratamento duro sem vacilar, também com pressa de dar o fora daqui.

“O que…” Ikaris fez uma pausa enquanto observava o estado da vila.

Com exceção do Bisão Alfa, Malia e os de outros mundos, todos os aborígenes, incluindo Krold, desmaiaram, sangue escorriam de seus olhos, narizes e ouvidos como Grallu e aquele exército fugitivo. Ninguém notou sua chegada e, quando viu o que chamou a atenção, ficou tão lívido quanto eles.

A Grande Muralha.

Era um elemento do cenário que Ikaris aprendera a aceitar sabendo que estava fora dos limites. Embora estivesse a dezenas de quilômetros ao sul deles, era tão alta que era visível de qualquer lugar do Arbusto Estéril. Uma parede de 506 metros de altura, perpetuamente em construção.

Agora, uma criatura estava se aproximando do outro lado da Grande Muralha. Metade do corpo dessa monstruosidade se elevava sobre a parede. Tinha uma vaga semelhança com um Rastreador, mas ao mesmo tempo não tinha nada. De tal distância, Ikaris não conseguia ver claramente, mas de repente ele teve uma terrível sensação de perigo.

Badum! Badum!

O solo tremeu novamente e profundas fendas rasgaram a terra, arrancando árvores e alterando os cursos de água. Alguns dos cavaleiros inconscientemente se viraram para olhar para esta personificação do Juízo Final, mas quando viram a abominação abrindo lentamente sua boca cheia de presas e presas, o medo os dominou e eles começaram a galopar loucamente.

Todo o ar de quilômetros ao redor foi inalado em sua boca como se fosse um aspirador de pó gigante, então um som estridente que não tinha nada em comum com o anterior saiu de suas cordas vocais.

“WAAAAAAAAAAAAA!

Desta vez, uma dor de cabeça angustiante devastou o cérebro de Ikaris e ele caiu de joelhos, antes de rolar no chão e arrancar os cabelos de dor.

Mais uma vez, durou apenas alguns segundos, mas quando a dor diminuiu e ele abriu os olhos, foi atingido por uma visão apocalíptica.