Índice de Capítulo

    Uma Batalha Sem Armas – Parte IV


    Desde o início daquele dia, a Corte de Inquérito estava repleta de sinais de que tempos difíceis se aproximavam. Embora Yang tivesse decidido enfrentar praticamente qualquer coisa, o Presidente Oliveira, da Universidade Central de Governança Autônoma, talvez levado pelo entusiasmo acadêmico, começou a dar-lhe uma palestra sobre a razão de ser da guerra. Segundo ele, as opiniões negativas sobre ela não passavam de um produto da hipocrisia e do sentimentalismo.

    “Almirante, o senhor é um bom homem, mas ainda é jovem. Parece que ainda não compreende claramente o que é realmente a guerra.”

    Yang não respondeu, mas a sua atitude não diminuiu em nada a vontade do homem de dar uma palestra para uma audiência cativa.

    “Ouça-me: a guerra é fruto da civilização e também o método mais sensato para resolver conflitos internacionais e domésticos.”

    Yang queria dizer: “Quem disse? Quem no mundo já reconheceu tal coisa?” Mas ele não discutiu; achou que perguntar seria um esforço inútil. Oliveira, aparentemente interpretando o silêncio de Yang de uma maneira favorável a si mesmo, expôs sua teoria favorita com orgulho.

    “O ser humano é um animal que pode facilmente cair em desgraça. Em particular, a paz e a liberdade — duas coisas que carecem de um sentido de urgência — levam naturalmente as pessoas a cair na complacência. É a guerra que dá origem à atividade frenética e à disciplina ordenada. A guerra em si impulsiona a civilização, torna as pessoas mais fortes e as melhora tanto física quanto espiritualmente.

    “Uma opinião esplêndida”, respondeu Yang sem um pingo de sinceridade. “Se eu fosse alguém que nunca tivesse tirado vidas ou perdido familiares na guerra, talvez até quisesse acreditar nisso.”

    Quando Yang estava com disposição, ele podia ser muito sarcástico, mesmo com altos funcionários do governo. Ele só estava se contendo porque suas chances de fazer isso eram muito poucas — e, acima de tudo, as consequências certamente seriam um incômodo. A essa altura, porém, Yang havia acumulado uma quantidade crítica de agressividade.

    A resistência e o silêncio não eram necessariamente virtudes em todas as circunstâncias. Suportar o que deveria ser insuportável, não dizer o que precisava ser dito — isso permitia que os egos opostos se inflassem sem controle e os levava a pensar que seu egocentrismo era aceitável em qualquer situação. Mimando governantes como se fossem crianças pequenas, deixando-os pisar em si — nada de bom resultaria disso.

    “Naturalmente”, continuou Yang, “essa ideia provavelmente tem o seu encanto para pessoas que se aproveitam das guerras e tentam construir a sua própria fortuna com o sacrifício dos outros. Você sabe, o tipo de pessoa que se envolve num amor pelo país que não sente nem um pouco, a fim de enganar o público.”

    Foi então que a raiva surgiu pela primeira vez no rosto de Oliveira. “Está dizendo que o nosso patriotismo é uma farsa?”

    “Estou dizendo que, se é realmente tão vital como dizem que é que estejamos dispostos a defender a pátria e a fazer sacrifícios por ela, por que não fazem isso vocês mesmos em vez de dar ordens a todos os outros?”

    O tom de Yang estava quase despreocupado agora.

    “Por exemplo, vocês poderiam reunir todos os políticos, burocratas, intelectuais e financistas pró-guerra e formar algum tipo de ‘Regimento Patriótico’. Então, quando o império atacar, vocês poderiam liderar o ataque. Mas primeiro, todos vocês precisariam se mudar das zonas seguras, como a capital e vir morar na linha de frente em Iserlohn. O que acham? Temos muito espaço para vocês.”

    O silêncio sepulcral que tomou conta da sala quando Yang terminou de falar estava carregado de hostilidade e hesitação. Era impossível apresentar uma contra argumentação eficaz, então o intervalo sem palavras continuou a se prolongar. Yang sabia que eles não teriam resposta. Ele atacou novamente, com força, com uma continuação: “De todas as coisas que os seres humanos fazem, sabem qual é a mais descaradamente desprezível? É quando pessoas com autoridade — e aqueles que as bajulam — escondem-se em locais seguros, cantando louvores à guerra; impõem uma mentalidade patriótica e sacrificial ao povo; e depois enviam-no para o campo de batalha. Se alguma vez a paz vai chegar a esta galáxia, devemos erradicar primeiro parasitas malignos como esses, em vez de perpetuar esta guerra sem sentido com o império.”

    Era como se o próprio ar tivesse empalidecido. Ninguém no tribunal de inquérito imaginava que o jovem almirante de cabelos negros iria vomitar veneno a tal ponto. Até mesmo Huang Rui estava olhando para Yang com uma expressão surpresa.

    “Por ‘parasitas’, refere-se a este tribunal de inquérito?”, perguntou Negroponte. Ele estava fazendo um bom trabalho em permanecer calmo e composto, mas havia uma ondulação irregular em sua voz.

    Yang respondeu, certificando-se de que soasse o mais desrespeitoso possível: “Pareceu que eu me referia a outra pessoa?”

    Explodindo de raiva, Negroponte inchou como um sapo, pegou o martelo e começou a bater violentamente na mesa.

    “Insultos infundados! Impertinência além do limite! Parece que não temos outra escolha a não ser questionar a sua própria natureza, Sr. Yang. Este inquérito terá de ser prolongado ainda mais.”

    “Objeção…”, começou Yang, mas o resto da frase foi abafado pelo som contínuo do martelo batendo na mesa.

    “Está terminantemente proibido ao inquirido falar!” 

    “Com que autoridade?”

    “Na minha autoridade como presidente deste tribunal de… não, espere. Não vejo necessidade de responder. Você se submeterá à ordem deste processo.”

    Yang colocou as duas mãos na cintura e mostrou uma expressão e postura tão desafiadoras quanto pôde. Ele já havia decidido que iria explodir em algum momento e agora parecia que tinha chegado a hora certa.

    “Não podem simplesmente me mandar sair da sala? Porque, francamente, não consigo suportar mais o som das suas vozes nem os seus rostos. Expulsem-me porque não paguei a entrada ou algo do gênero. Porque a minha paciência está no limite…”

    Foi então que um sinal soou em algum lugar perto da cadeira do Comitê de Defesa e fez Yang fechar a boca.

    “Estou? Sim, sou eu. O que se passa?”

    Ainda olhando para Yang, Negroponte falou ao telefone com uma voz extremamente irritada, mas então uma única frase do outro lado da linha pareceu deixá-lo em choque total. Os músculos do seu rosto ficaram visivelmente tensos e ele falou várias vezes, pedindo confirmação de certos detalhes.

    Quando finalmente desligou, olhou em volta da mesa com uma expressão em pânico e disse em voz aguda: “Vamos fazer um intervalo de uma hora. Senhores membros do tribunal, por favor, retirem-se para a sala ao lado. Almirante, aguarde onde está.”

    Era óbvio que alguma situação complicada havia surgido. Yang observou sem emoção enquanto os membros do conselho saíam apressadamente da sala. Talvez uma revolta política? Ele se perguntou. Ou melhor ainda, e se o Presidente Trünicht tivesse morrido…

    Não era fácil chamar Yang de cavalheiro quando ele tinha pensamentos como esses.


    Na sala ao lado daquela onde Yang esperava, rostos pálidos estavam alinhados em fila, com Negroponte bem no centro. “Invasão maciça do corredor de Iserlohn” — esse relatório foi o martelo invisível que derrubou brutalmente os inquisidores.

    “O que temos de fazer é bastante óbvio”, disse Huang Rui, o único que mantinha a compostura. “Nem vale a pena considerar. Suspendam esta investigação, tragam o Almirante Yang de volta a Iserlohn e peçam-lhe — não, ordenem-lhe — que repila as forças imperiais.”

    “Mas não podemos simplesmente dar uma volta de 180 graus assim! Até agora, ele estava sob investigação!”

    “Bem, então vamos manter o nosso plano original e continuar? Até que a Marinha Imperial venha atacar diretamente este planeta?”

    Um silêncio desconfortável se estendeu pela sala. “De qualquer forma, parece que não temos escolha”, acrescentou Rui.

    “Mas não podemos decidir isso por nossa própria conta”, disse Negroponte. “Temos de perguntar ao Presidente Trünicht o que ele pretende fazer.”

    Com olhos que o compadeciam, Huang virou-se para olhar para as feições tensas de Negroponte. “Bem, então vá em frente. Não vai demorar mais do que cinco minutos.”


    Yang tinha contado até cerca de quinhentos quando os membros do conselho voltaram para a sala. Ele podia sentir um clima completamente diferente do que existia pouco tempo atrás. Ele se preparou mentalmente e, então, o Presidente do Comitê de Defesa falou com ele: “Almirante, surgiu uma situação de emergência. A Fortaleza de Iserlohn está enfrentando a possibilidade de um ataque total da Marinha Imperial. Por mais inacreditável que pareça, o inimigo aparentemente acoplou dispositivos de propulsão a uma fortaleza espacial e levou tudo para lá, juntamente com uma grande frota de naves de guerra. É preciso enviar reforços imediatamente.”

    “Então, está dizendo-me para ir?”

    Após dez segundos de silêncio sepulcral, Yang repetiu a pergunta. A sua voz e a expressão no rosto eram, na verdade, gentis. 

    Negroponte estava visivelmente envergonhado, mas de alguma forma conseguiu recompor-se o suficiente para dizer: “Claro que sim! Você é o Comandante da Fortaleza de Iserlohn e da Frota de Patrulha. Tem o dever e a responsabilidade de impedir a invasão inimiga, não tem?”

    “Infelizmente, porém, estou longe da linha de frente e sob inquérito. Além disso, tenho uma atitude ruim, então posso acabar sendo demitido. O que vai acontecer com este tribunal de inquérito?”

    “Está cancelado. Almirante Yang, como Presidente do Comitê de Defesa e seu superior hierárquico, ordeno-lhe que se dirija imediatamente a Iserlohn, assuma o comando das defesas e contra-ataque. Entendido?”

    Ele falou com voz feroz, mas um tremor na pergunta “Entendido?” expôs a inquietação que se escondia em seu coração. Legalmente falando, ele certamente era o oficial superior de Yang. No entanto, se Yang ignorasse suas ordens e Iserlohn caísse, então os fundamentos legais que o colocavam acima de Yang entrariam em colapso, assim como a essência de sua autoridade.

    Negroponte finalmente percebeu que estavam brincando com fogo ao lado de um paiol de pólvora. Ele só podia desfrutar de autoridade porque uma nação segura estava apoiando-o. Ele podia desfrutar do seu domínio apenas porque os outros estavam dispostos a obedecer-lhe. Nem ele nem ninguém na Corte possuía qualquer poder que fosse simplesmente seu por natureza.

    “Sim, senhor. Voltarei para Iserlohn imediatamente…”

    Negroponte soltou um profundo suspiro de alívio ao ouvir as palavras de Yang.

    “Afinal, tenho subordinados e amigos lá. Pode garantir a minha autoridade para agir livremente, certo?”

    “Claro. Está livre para fazer o que quiser.”

    “Bem, nesse caso, se me dá licença.”

    Quando Yang se levantou, um dos inquisidores chamou-o. Era um homem no fim da mesa, cujo nome Yang tinha esquecido assim que o ouviu. O tom de bajulação na sua voz era inconfundível.

    “E então, Almirante, temos hipóteses de vencer? Claro que sim. Afinal, o senhor é o Miracle Yang. Tenho a certeza de que irá corresponder às nossas expectativas.”

    “Farei tudo o que puder.”

    O tom de Yang era indiferente. Ele não tinha nem o desejo nem a intenção de juntar um monte de palavras grandiosas e impressionantes apenas para satisfazer os membros deste tribunal. Ele poderia virar todos os bolsos e não encontrar uma única razão para responder tão gentilmente como tinha feito, mas não era só isso; neste momento, ele realmente não tinha nenhum plano claro para lidar com este novo ataque.

    Eram os membros do tribunal de inquérito, naturalmente, que deveriam ser responsabilizados por permitir que esta situação ocorresse. Ainda assim, não adiantava negar que esta tática da Marinha Imperial tinha apanhado Yang completamente de surpresa. Chamem-no de ingênuo e ele não contestaria, mas ainda assim, havia limites para o poder de imaginação das pessoas.

    Uma fortaleza para combater uma fortaleza. Colocar dispositivos de propulsão nela e fazê-la voar. Na verdade, isso era uma variação da ortodoxia do “navio grande, arma grande”; dificilmente uma tática chocantemente nova como parecia à primeira vista.

    Ainda assim, o fato é que isso causou um sério golpe psicológico às autoridades da Aliança — e, no processo, fez um favor a Yang, libertando-o da sua pequena farsa.

    Yang sempre imaginou que, se alguma nova tecnologia revolucionária pudesse um dia alterar o equilíbrio do poder militar entre as duas nações, seria o desenvolvimento de um meio de viajar distâncias ultra-longas de 10.000 anos-luz ou mais. Se algo assim se tornasse realidade, a Marinha Imperial seria capaz de ignorar o Corredor de Iserlohn e enviar grandes frotas e todos os suprimentos necessários diretamente para o coração do território da Aliança. Um dia, os cidadãos de Heinessen olhariam para cima e veriam enxames de naves de guerra escondendo o sol. Eles ficariam a olhar para elas sem compreender, paralisados no lugar. As autoridades não teriam outra escolha a não ser fazer um “juramento pela muralha do castelo” — o tipo de juramento que se faz quando se está encurralado — e render-se incondicionalmente.

    O que ele faria então era algo que Yang nunca tinha sequer pensado. Essas circunstâncias estariam além da sua capacidade de lidar com a situação. Se tentassem responsabilizá-lo mesmo numa situação como aquela, ele simplesmente não aceitaria. O espírito de funcionário público de Yang o levaria a pensar: “Não me pagam o suficiente para fazer isto!”.

    Yang colocou a boina do uniforme de volta, sacudiu a poeira das roupas com deliberação óbvia e, com passos largos, começou a caminhar em direção à saída.

    “Oh, espere, quase me esqueci de algo importante”, disse ele, parando mesmo à frente da porta. Virou-se e dirigiu-se à corte com uma reverência que beirou a insubordinação. “Estou ansioso por finalmente ouvir uma explicação sobre quem foi responsável por escolher o momento exato da invasão do império para me chamar de Iserlohn. Isso presumindo que Iserlohn não caia, é claro. Agora, se me dão licença…”

    Yang deu meia-volta e saiu da sala onde fora forçado a suportar aqueles dias miseráveis e sem sentido. Ele teria gostado muito de observar os inquisidores de perto e ver como o fluxo de sangue em seus rostos mudava com sua frase de despedida, mas isso significaria permanecer naquele espaço opressivo ainda mais tempo do que já havia feito, algo que Yang não tinha a menor intenção de fazer.

    A porta se abriu e fechou novamente, deixando nove pares de olhos fixos nela. A derrota estava estampada em um rosto, a inquietação em outro; outro ainda estava pálido de raiva. Alguém resmungou em voz baixa: “Quem esse novato insolente pensa que é?”

    A pintura tinha descascado, expondo a maldade que havia por baixo.

    “Se bem me lembro, ele é o herói que salvou o nosso país”, respondeu Huang Rui num tom cheio de sarcasmo. “Se não fosse por esse ‘novato insolente’, já teríamos nos rendido ao império ou, na melhor das hipóteses, estaríamos a apodrecer em celas como prisioneiros políticos. Certamente não teríamos o luxo de passar o tempo brincando de tribunal num lugar como este. Ele é um benfeitor de todos nós. Que tipo de gratidão temos demonstrado, intimidando-o aqui durante dias a fio?”

    “Mas não achas que é desrespeitoso a atitude dele para com os seus superiores?”

    “Superiores? Os políticos são mesmo criaturas tão impressionantes? Não é como se contribuíssemos com alguma coisa para a sociedade. Temos a responsabilidade de recolher de forma justa e utilizar eficientemente os impostos pagos pelos cidadãos; é isso que fazemos, é para isso que somos pagos. E isso é tudo o que somos, na verdade. Na melhor das hipóteses, não passamos de parasitas que vivem da máquina da sociedade. Se parecemos impressionantes, é apenas uma miragem criada pela publicidade. De qualquer forma, em vez de discutir sobre isso…” (aqui, o brilho nos olhos de Huang tornou-se ainda mais irônico) “… temos outro incêndio para apagar que está um pouco mais perto de casa, então que tal lidarmos com isso agora? Como disse o Almirante Yang, quem vai assumir a responsabilidade de tirá-lo da linha de frente logo antes do império partir para a ofensiva? Será necessária uma carta de demissão. Não do Almirante Yang, é claro.”

    Vários olhares convergiram para Negroponte. As bochechas grossas do Presidente do Comitê de Defesa tremeram. A ideia de convocar Yang para a capital não tinha sido sua. Não inicialmente. Ele estava apenas a seguir os desejos de outra pessoa. Embora não passivamente, é certo.

    Na mente dos homens que o rodeavam, a palavra “ex-” já tinha sido acrescentada ao seu título.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota