Kizimu avançava pela floresta densa. A vegetação, de um verde sufocante, crescia de forma desordenada, sem trilha visível. A noite engolia sua visão, tornando quase impossível saber para onde ia. O homem havia mesmo seguido por ali?

    Cada passo o afastava da trilha principal e tornava o caminho mais hostil. Espinhos se prendiam à sua roupa, galhos riscavam sua pele. Foi então que pegadas surgiram entre as folhas. Rastros marcavam as plantas, e gotas de sangue escorriam preguiçosamente pelos troncos das árvores. A raiva explodiu em seu peito — quente, densa, brutal.

    A garota era uma desconhecida. Não conhecia sua voz. Não conhecia sua essência. Apenas sabia que ela morava em sua casa. Nem ao menos sabia o que ela representava naquele lar. Mas queria que estivesse segura.

    Algo jogado no chão desviou seu olhar — uma carta-branca, envolta por um envelope delicadamente dobrado, manchado por sangue borrado. Largada como lixo no matagal.

    “No final da trilha de passos pesados, terá uma cabana. Se entreguem, e a garota não será morta.”

    Fácil demais. Uma armadilha óbvia. Será que o homem achava que todos eram idiotas?

    Discutir mentalmente não adiantaria. A cabana no final da trilha… Era suspeita. Mas mesmo assim, precisava seguir.

    Depois de vencer o trajeto traiçoeiro, Kizimu finalmente avistou a cabana. Sangue escorria até a porta, formando um rastro macabro. Pela estrutura, era simples, mas grande o bastante para conter mais de um quarto, uma sala e uma cozinha.

    A porta da frente estava aberta — um convite cínico. Mas o excesso de cordialidade a tornava ainda mais suspeita. Ao contornar a cabana, notou uma segunda porta, fechada, igualmente estranha. Até onde o homem havia previsto sua chegada?

    Ergueu os olhos. Uma janela alta, larga o suficiente para sugerir um segundo andar. Kizimu pensou em algo fora do comum. Seu corpo não deveria executar tal manobra, mas uma certeza irracional queimava em sua mente.

    Você está influenciando meus pensamentos, certo, Kuzimu?

    Sem resposta.

    Recuando alguns passos, Kizimu correu. Saltou sobre a maçaneta, impulsionou-se na parede e deu um segundo salto, agarrando-se ao peitoril da janela do segundo andar. Se esgueirou com esforço, entrando por ela.

    Atravessou uma porta de vidro de correr e deu de cara com um quarto caótico. Livros espalhados, vinho derramado, uma Bíblia aberta com uma garrafa de vodca servindo de marcador. Roupas jogadas, um quadro quebrado. O ambiente era deplorável, mas estranhamente, não fedia. O cheiro de álcool impregnava o ar, mas havia limpeza no meio do caos.

    Saindo do quarto, ouviu sons metálicos. Correntes.

    AH! AQUELES PIRRALHOS! TODOS VOCÊS SÃO PODRES! EU TENHO QUE CONSERTAR VOCÊS! O MUNDO É UM LUGAR MELHOR SEM GENTE COMO VOCÊS! LIXOS!

    Um baque ensurdecedor — um soco ou chute — ecoou do andar de baixo.

    Da escada, Kizimu avistou o homem. Estava na cozinha. A garota, chamada de Pandora por Aisha, jazia acorrentada. O homem segurava seu queixo de forma grosseira, puxando-o para perto do próprio rosto.

    Rostos bonitos não mudam o lixo que há dentro de vocês. Eu sou a salvação. Eu sou a correção.

    Soltou o rosto dela com desdém. Os longos cabelos da menina se misturavam às correntes, quase como serpentes vivas.

    O homem saiu do local. Kizimu, atento, se ocultou abaixo do peitoril, vendo de relance o vulto do homem desaparecer pelo andar inferior.

    Segundos depois, uma porta bateu com força.

    Kizimu correu para uma janela no segundo andar e espiou — o homem havia entrado na floresta.

    Perfeito. A brecha que precisava.

    Desceu as escadas correndo, atravessou a sala até a cozinha. Pandora ainda estava acorrentada.

    Droga… o que eu vou fazer? – sussurrou para si.

    Os olhos da garota se abriram. Lágrimas brilhavam. Dor e pânico em sua expressão.

    Você está bem? Ele te machucou muito?

    Seus olhos… belos como os de uma boneca. Pupilas negras como carvão. Mas então, mudaram.

    Começaram a queimar — literalmente. Chamas vivas acenderam-se nas íris. Os fios azuis estavam com as pontas reluzindo como se fossem feitas de puro fogo. As chamas azuis dançavam sobre os fios longos que cobriam seu corpo.

    Ela tremia. Medo puro. E lentamente… o fogo se dissipou. Sua aparência voltou ao normal ao reconhecer Kizimu.

    O garoto engoliu em seco. Aquilo não era humano.

    Precisamos fugir.

    Quem é você…?

    Kizimu. Sou o dono da casa em que você mora. Vim te salvar.

    As chamas ameaçaram voltar, mas a voz dele a acalmou.

    Você… acordou? Minne disse que era pra gente lembrar, mas… não sabia que você tinha mesmo acordado. É verdade que perdeu as memórias?

    Conversamos depois. Agora temos que sair daqui.

    Uhum.

    Kizimu procurou como soltá-la. Mas ao seu lado, notou algo — uma criança loira, também acorrentada. Correntes prateadas inclusive em sua boca. Olhos verdes arregalados de pavor.

    Tentou remover as correntes da boca da criança, mas sem sucesso. Ela se debatia fraca.

    Tem que haver uma chave.

    Abriu gavetas, armários… só utensílios. Facas, panelas, comida.

    As chamas azuis… poderiam queimar as correntes?

    Pandora. Me explica sua maldição. Por favor.

    Não me peça algo impossível.

    Quê…?

    Masha — a mulher asquerosa de roupas púrpuras e cabelos cacheados — havia dito que não era fácil identificar maldições.

    Então me diga… o que normalmente acontece?

    Ela pensou.

    Não tem lógica. Às vezes é fogo, às vezes força absurda, às vezes pareço um cadáver, ou viro algo espectral. Depende. Meu corpo muda, minha mente também. Sinto pensamentos que não são meus. Hoje mesmo… perdi o controle e fui parar nessa floresta.

    Você está se controlando agora?

    Acho que sim. Não quero perder o controle.

    Então… por favor, deixa as chamas tomarem conta.

    O QUÊ?! NÃO! Não, não, não, não.

    Ela se revoltou, como uma criança contrariada.

    Mesmo que Minne mandou eu te obedecer, isso não é simples! A maldição machuca! EU NÃO QUERO MACHUCAR NINGUÉM!

    Ela tampou os ouvidos e começou a chorar, e seu corpo brilhou com um aspecto translúcido. Cabelos ficaram loiros, olhos perderam o brilho. Ela soluçava feito uma criança assustada.

    Não me peça algo impossível… eu tentei minha vida inteira controlar isso. Você não tem ideia do quanto tentei…

    Kizimu viu tudo. Queria ajudar. Mas se não podia contar com ela… talvez, poderia contar com si mesmo.

    Kuzimu. Volte.

    Sem resposta.

    Eu sei que está aí. A ideia de subir pro segundo andar… foi sua. Me ajuda. Por favor.

    Sem resposta.

    Não quero nada complicado. Só quero ajudar a todos. Kim, Esme, Aisha, Pandora…

    Sem resposta.

    Sou só uma criança crescida…o que eu posso fazer como líder da casa? O que Minne faria? Ela ajudaria? Claro que ajudaria, quem além de uma maldição não ajudaria.

    “Que insistência. Encoste seu dedo na fechadura.”

    Kizimu arregalou os olhos. Obedeceu. A dor correu por seu braço feito veneno. Mas a fechadura estalou… e se abriu.

    Isso!

    Kuzimu… obrigado.

    Sem resposta.

    O que você fez…?

    Depois explico. Vamos sair daqui.

    Soltou as correntes de Pandora. Depois as da criança. Assim que se libertou, a menina loira correu. Não agradeceu. Só fugiu. Kizimu correu atrás, puxando Pandora consigo. Eles correram pela casa percorrendo a pequena sala alojada. Um sofá rasgado e uma teve de cabo antiga poderiam ser notada.

    Quando a garota chega na porta, ela abre-a bruscamente e…

    E o mundo parou.

    Uma estaca de madeira brutal atravessou sua cabeça. Do lado de dentro da casa. Um mecanismo. Frio. Preciso. Perverso.

    Com sua reação atrasada, ele gritou para ela desviar, apenas quando ela já estava morta.

    Pandora caiu de joelhos. Tapou a boca. Chorava em silêncio. Kizimu também não se moveu. O corpo da criança caiu inerte, o sangue se espalhando pelo chão, encharcando sua roupa, seu cabelo, sua inocência.

    Ora, ora, ora… ratos tentaram fugir, e um morreu.

    A voz. Encorpada. Cruel. Fatal.

    O homem adentrou a casa com um machado nas mãos. Ria da cena. Debochava do terror.

    Uma garota desabada. Um garoto segurando uma mão sem vida. E o corpo de uma criança com a cabeça estourada por um tronco maldito.

    Vocês são lixos. Não deveriam existir. Mas vivos, por enquanto… vão servir melhor.

    O machado subiu.

    Kizimu nem teve tempo de reagir.

    O baque acertado no rosto de Kizimu foi tão forte que o mundo se apagou.

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