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    Passado

    Azrael

    Aconteceu logo após sair do palácio. Enquanto caminhava pela floresta atrás do castelo, Ophelia Zenunim apareceu em meu campo de visão. Mesmo de costas, eu poderia reconhecê-la facilmente. Ophelia parecia estar colhendo algumas ervas, então logo me aproximei.

    “Ophelia. Bom dia!”, eu disse, notando o olhar surpreso que ela demonstrou ao perceber minha presença.

    “Oh? Azrael.”

    Fiquei surpreso por encontrá-la tão perto do palácio. Afinal, sua casa ainda estava longe, e ficar tão próxima poderia lhe causar problemas devido à regra de Belial, onde ninguém deveria adentrar a floresta atrás do palácio.

    “Que surpresa. Imaginei que você não viria para tão perto do palácio.”

    Contudo, Ophelia apenas sorriu sem jeito. “Palácio? Parece que me perdi em meus pensamentos e acabei andando bastante.” Ela então recolheu a erva medicinal e a colocou no cesto em sua mão. “De qualquer forma, já estou voltando. Quer me acompanhar?”

    Como já estava indo até sua casa, aceitei acompanhá-la com felicidade. O caminho pela floresta parecia mais longo que o convencional. Enquanto caminhava, não pude deixar de me preocupar com Mana no castelo. Amanhã ela entraria em um sono profundo e teria que esperar até que uma cura fosse encontrada, mas eu não conseguia me sentir confortável com essa situação. Não conseguir ajudá-la e ter que ficar de braços cruzados enquanto observava sua situação era como um veneno mortal. A sensação de impotência era corrosiva. Mas Mana se mantinha forte. Quando me ofereci para ficar com ela o resto do dia, Mana apenas sorriu e me pediu para sair do palácio e visitar Ophelia e Eisheth.

    “Algum problema? Você continua com essa expressão estranha enquanto caminha. Tem algo lhe incomodando?”

    Não pude deixar de suspirar. Não conseguia esconder de Ophelia o que estava sentindo e ela conseguiu me ler como um livro. “Mana… Amanhã será o dia em que ela entrará em sono profundo. Segundo Samael, seu corpo só suportará até hoje,” eu disse com desânimo.

    Ophelia então colocou a mão em minha cabeça, como se quisesse me motivar. “Deve ser difícil…”, sua voz era reconfortante, assim como sua mão em minha cabeça.

    “Eu queria poder ajudar de alguma forma, mas Mana tem se mantido distante na última semana.”

    Sei que seu corpo está no limite e o veneno da besta divina se tornou mais intenso. Contudo, eu queria estar ao seu lado e ser o irmão com quem ela poderia contar.

    “Talvez ela apenas não queira te preocupar… Sabe, Azrael? As mulheres têm uma forma diferente de demonstrar suas emoções.”

    As palavras de Ophelia ecoaram em minha mente. “Não queira te preocupar…” Como se fosse possível não me preocupar. Cada batida do meu coração era uma batida de agonia, uma lembrança constante do tempo que se esvaía. Cada segundo que passava, eu me sentia mais distante da minha irmã. A ideia de não poder fazer nada, de estar impotente diante do sofrimento dela, me consumia como um incêndio incontrolável.

    Olhei para Ophelia, tentando encontrar algum consolo em seus olhos, mas mesmo a sua presença calorosa não conseguia dissipar as nuvens de preocupação que pairavam sobre mim. Mana, minha Mana, estava enfrentando uma batalha que eu não podia lutar por ela. Cada sorriso que ela me oferecia era como uma adaga cravada no meu peito, um lembrete da sua força e da minha fraqueza.

    “Eu deveria estar lá,” murmurei, mais para mim mesmo do que para Ophelia. “Deveria estar ao lado dela, segurando sua mão, mostrando que não está sozinha. E se… e se ela não acordar?” A última pergunta saiu mais como um sussurro, carregada de medo e desespero.

    Ophelia apertou minha mão, seus olhos brilhando com uma mistura de compaixão e determinação. “Ela vai acordar, Azrael. Nós vamos encontrar uma cura. Mas, por enquanto, o melhor que você pode fazer é ser forte por ela, assim como ela está sendo por você. Mana precisa saber que você acredita nela, que você tem esperança.”

    Esperança. A palavra soava vazia em minha mente, um eco distante de algo que parecia inalcançável. Mas, ao olhar para Ophelia, percebi que ela estava certa. Eu precisava ser forte, precisava acreditar, mesmo que isso me destruísse por dentro. Porque, no final das contas, Mana merecia isso. Ela merecia tudo o que eu pudesse dar, mesmo que fosse apenas a minha fé inabalável em sua recuperação.

    Respirei fundo, tentando acalmar o turbilhão de emoções que me consumia. “Você tem razão, Ophelia. Eu preciso ser forte. Por ela.”

    Ophelia sorriu, um sorriso encorajador que me deu um vislumbre de esperança. “E nós estaremos aqui, Azrael. Todos nós. Não está sozinho nessa luta.”

    Não pude deixar de me sentir grato por conhecer Ophelia e Eisheth. O último ano foi de alguma forma confortável, tanto para mim quanto para Mana. Receber o carinho dessa família era algo que eu não poderia agradecer. Mesmo no palácio, onde minha família estava, não sentia que estava em casa. Conviver com Belial, Alice, Ex e Lilith foi uma experiência diferente, mas de alguma forma eu estava distante de todos.

    Talvez por esse motivo eu saia quase diariamente do castelo, às vezes visitando as cidades da capital e às vezes a floresta.

    “Oh? Acabei de lembrar… Eisheth comentou que estaria na cachoeira, poderia encontrá-la? Vou preparar uma refeição enquanto espero por vocês.”

    Foi quando senti meu estômago revirar. Ophelia era muito habilidosa com diversas coisas, mas cozinhar não era uma delas.

    “Que tal eu encontrar Eisheth e em seguida cozinhar? Você pode deixar esse trabalho comigo e descansar um pouco.”

    Contudo minhas palavras a deixaram confusa. “Você não precisa se preocupar. Eu farei algo especial.”

    É exatamente isso que me preocupa… Pensei.

    “De qualquer forma, apenas deixe o preparo da refeição comigo. Você poderia preparar um chá. Logo Eisheth estará em casa,” eu disse, correndo em direção à cachoeira sem ao menos ouvir sua resposta.

    Continuei meu caminho até a cachoeira, o som de água corrente logo ficou audível enquanto me aproximava cada vez mais do local onde Eisheth estava. Não demorou muito para encontrar sua figura sentada na beira da água. Com seus pés imersos na água, Eisheth parecia pensativa enquanto contemplava o arco-íris formado na água.

    Me aproximei silenciosamente para não assustá-la, mas me surpreendi ao ouvir sua voz. “Sabe, Az? Você iria me encontrar em uma situação bastante constrangedora se eu não soubesse que você estava vindo.”

    Como sempre, suas palavras pareciam não fazer sentido, contudo eu apenas sorri enquanto sentava ao seu lado.

    “Sério? Me desculpe por isso então,” eu disse com um sorriso olhando em sua direção.

    “Não se preocupe, a culpa seria minha por fazer algo assim ao ar livre, onde as pessoas poderiam passar,” disse ela com o rosto púrpura, parecendo constrangida com algo que nunca aconteceu.

    “É melhor tomar mais cuidado na próxima vez,” eu disse de forma sarcástica, ao qual recebi uma resposta no mesmo tom.

    “Você estaria realmente bonito enquanto me observava com o rosto envergonhado…” foi então que algo pareceu fazer sentido para ela. “Ah! Pensando bem, Az, você não quer sair por alguns minutos e voltar depois? Eu quero ver a sua expressão pessoalmente.”

    “Eu recuso.”

    “Imaginei hehe.”

    Enquanto conversava com Eisheth, notei que meus pensamentos eram leves, diferentes de momentos atrás, como se, quando estava com ela, meu mundo fosse diferente do habitual.

    “Az, você vai começar o seu treinamento amanhã?” ela perguntou com um olhar curioso.

    “Sim. Samael me disse que, assim que Mana entrar em sono profundo, vamos começar nosso treinamento,” eu disse, sem querer esconder nada.

    “Então hoje é o último dia em que você vai nos visitar, certo? Quero dizer, até o treinamento acabar…”

    Eisheth parecia triste, mas não parecia ter a intenção de demonstrar.

    “De qualquer forma, estou ansiosa por nosso próximo encontro. Digamos que dez anos de treinamento é um tempo considerável.”

    “Dez anos? De onde você tirou esse tempo?”

    “Quem sabe? De qualquer forma, estou ansiosa para conhecer Legion.”

    Não pude deixar de suspirar com suas palavras sem sentido, contudo, ao ver meus suspiros, Eisheth jogou água em minha direção com os pés, o que me surpreendeu um pouco.

    “Isso é por deixar uma dama esperar por tanto tempo,” seu sorriso agora lembrava o de uma criança travessa. “Vamos? Ou a mamãe preparará a nossa refeição,” ela disse, levantando-se.

    “Sim.”

    ***

    “Az, como você se tornou tão incrível em tão pouco tempo?”, perguntou Eisheth enquanto saboreava sua refeição com uma expressão de felicidade radiante. Seus olhos brilhavam como se estivesse degustando algo estranhamente irresistível.

    “Observei os cozinheiros enquanto preparavam a refeição para minha fa— Hum, de qualquer forma. Notei que determinados ingredientes tinham sabores diferentes quando combinados. Foi então que comecei a fazer alguns testes.”

    Em poucos meses, consegui criar uma comida aceitável, ao ponto dos cozinheiros da família real comentarem sobre a minha habilidade. Desnecessário dizer que isso pouco me importava, uma vez que nem mesmo precisava saber cozinhar.

    “Sua família tem muita sorte por desfrutar de uma refeição como essa todos os dias”, comentou Eisheth enquanto servia mais comida em seu prato.

    “Sim, realmente. Você é excelente na cozinha… digamos que aprendeu tudo o que eu ensinei”, disse Ophelia com um toque de sarcasmo e uma ponta de inveja evidente.

    Após terminar sua refeição, Eisheth cuidou dos pratos e saiu para se dedicar às suas flores. Enquanto isso, eu e Ophelia nos dirigimos para a varanda, contemplando a jovem com um sorriso enquanto ela cuidava das plantas.

    “Por quanto tempo você ficará fora?”, indagou Ophelia curiosa.

    “Ainda não decidi…”, respondi honestamente, observando-a.

    “Este lugar ficará tão silencioso sem a sua presença. Acho que já me acostumei com suas visitas”, ela disse, observando Eisheth. “Ela também se sentirá solitária. Quem diria que até mesmo os plebeus sentiriam falta da visita de um príncipe? Somos realmente egoístas, não é mesmo?”

    Fiquei surpreso com suas palavras. Mesmo após um ano, nunca mencionei a Ophelia que era um príncipe.

    Percebendo a surpresa em meu rosto, Ophelia sorriu. “Pensou que eu não soubesse? Oh, Az. Existe uma regra estrita que proíbe até mesmo os mobres de vagar pela floresta atrás do castelo”, ela disse, observando minha reação.

    Certamente seria estranho, já que os demônios seguem rigorosamente as regras quando se trata da floresta. Nem mesmo os guardas encarregados da segurança da família real ou a própria família real se aventuram ali.

    “Quem mais além de um membro da família real pensaria em adentrar a floresta? Na verdade, a resposta é bastante óbvia”, comentei, percebendo que não havia mais razão para esconder minha identidade. “Parece que não sou o único ‘louco'”, acrescentei, desta vez, observando a reação de Ophelia.

    Ela respondeu com um sorriso constrangido enquanto fitava sua filha. “Certamente. Eu posso ser um pouco ‘louca’, mas não exatamente dessa maneira, pois… Belial criou essa lei para me proteger.”

    Suas palavras trouxeram clareza à minha mente. Era como se a resposta estivesse diante de mim o tempo todo, mas eu nunca havia parado para considerar.

    “Você estaria disposto a ouvir minha história, Vossa Majestade?”, seu tom sarcástico envolto em verdades ocultas.

    Foi então que Ophelia começou a falar.

    Segundo ela, era uma guarda no palácio real, uma maga extremamente habilidosa escolhida para proteger a mãe dos demônios, Lilith. Durante a rebelião, quando a guerra eclodiu, Ophelia defendeu a família real com todas as suas forças.

    “No entanto, nem tudo ocorreu como planejado”, começou Ophelia, sua voz carregada de um peso invisível. “Enquanto protegia a rainha Lilith durante um ataque feroz, acabei sofrendo um grave acidente. Meu corpo foi mortalmente ferido e, incapaz de continuar, precisei ser retirada do dever por um tempo para me recuperar.”

    Notei a sombra de dor em seus olhos, um reflexo dos momentos sombrios que ela enfrentou. “Foi durante esse período de recuperação que engravidei,” ela continuou. “O pai da minha filha foi um homem que conheci durante a guerra, um guerreiro valente que deu sua vida por nossa causa. Sua morte foi um golpe que quase me destruiu, mas a notícia da gravidez me deu uma razão para continuar lutando.”

    Ophelia parou por um momento, olhando para sua filha que brincava à distância. “Mas a alegria da gravidez veio acompanhada de desafios ainda maiores. Por ser a principal guardiã da rainha Lilith, tornei-me alvo de vários atentados. Inimigos da coroa viam em mim uma ameaça e uma oportunidade de desestabilizar a família real. Houve muitas vezes em que quase morri, escapando por pouco da morte.”

    “Foi quando o rei Belial interveio. Ele sabia que eu não poderia continuar nesse ritmo, não com uma vida inocente crescendo dentro de mim. Para me proteger, ele me retirou do posto oficial de guardiã e criou uma casa escondida na floresta, longe dos olhos inimigos. Uma casa onde eu poderia viver em paz e segurança, longe dos perigos que me cercavam no palácio.”

    “Quando minha filha nasceu,” continuou Ophelia, um sorriso suave iluminando seu rosto ao lembrar do momento, “Belial instituiu uma nova lei. Ele decretou que ninguém, sob nenhuma circunstância, deveria entrar na floresta atrás do palácio. A floresta tornou-se um santuário, um refúgio impenetrável criado para proteger a mim e a minha filha.”

    Olhei para Ophelia, impressionado com a coragem e a determinação que ela demonstrara ao longo de sua vida. “Então, foi assim que tudo aconteceu,” disse eu suavemente. “Você sacrificou tanto para proteger a rainha e a família real, e em troca, o rei garantiu sua segurança e de sua filha.”

    Ophelia assentiu. “Sim. E agora, vivemos aqui, escondidas dos perigos do mundo exterior, mas ainda próximas o suficiente para sentir a presença do reino que tanto amamos e protegemos. Essa floresta é nosso lar, e aqui, estamos seguras.”

    Senti uma onda de respeito e admiração por Ophelia crescer dentro de mim. Sabia que o sacrifício dela era imenso e que a coragem dela não tinha limites. “Obrigada por compartilhar sua história,” disse eu finalmente, sentindo a profundidade do vínculo que começava a se formar entre nós. “Prometo que farei o possível para proteger este lugar e a paz que você tanto merece.”

    Ophelia sorriu, grata. “Obrigada, Az. Saber que você está aqui nos dá um pouco mais de segurança. E quem sabe, talvez um dia, Eisheth possa conhecer o mundo lá fora.”

    “Assim espero,” respondi, olhando para a floresta ao redor, percebendo a beleza e a serenidade que ela oferecia, um contraste com a dureza do mundo lá fora. E com essa esperança, ambos nos voltamos para observar Eisheth, uma figura de luz e inocência, brincando despreocupadamente entre as flores.

    Não demorou muito para que meu tempo se esgotasse. Tinha muitas responsabilidades a cumprir, especialmente considerando que Samael estaria no palácio em breve. Enquanto me preparava para sair, direcionei meu olhar para Eisheth.

    “Eisheth, poderia se aproximar um momento? Tenho algo para lhe oferecer”, convidei, retirando algo do bolso. Com a aproximação de Eisheth, posicionei-me atrás dela, colocando delicadamente um pequeno colar em seu pescoço, o que a deixou surpresa.

    “Oh? É lindo, exatamente como eu vi”, ela exclamou, admirando a pequena joia que lembrava uma flor dourada adornada com pedras preciosas minúsculas. Sabendo do gosto delicado de Eisheth, optei por algo mais sutil.

    “E eu? Sinto-me solitária quando não recebo um presente. Como espera conquistar a mão da minha filha sem antes honrar a mãe com um mimo?”, brincou Ophelia, seu sorriso vívido acompanhando o brilho nos olhos da filha.

    Sem hesitar, retirei uma pequena pulseira de ouro e segurei a mão de Ophelia. Com ternura, coloquei a pulseira em seu pulso, observando-a com gratidão. “Isso será passado de geração em geração na minha família”, comentou, apreciando o sarcasmo leve em suas palavras. “Agora, você pode se casar com minha filha sem nenhuma objeção.”

    “Me desculpe, mas temo que não consiga atender às suas expectativas”, respondi, pensando que o casamento não deveria ser uma preocupação no momento.

    “Não se preocupe, mamãe. Quando me casar com Az, serei a pessoa mais feliz do mundo no futuro”, afirmou Eisheth com determinação, surpreendendo a todos.

    “Oh? Está vendo, Az? Parece que nossa Eisheth está antecipando um futuro verdadeiramente radiante. Não consigo esperar tanto tempo, mas quero ser a primeira na fila quando isso acontecer”, disse Ophelia, radiante com as palavras da filha.

    Não pude conter um sorriso ao perceber que a família já estava planejando um casamento sem o meu consentimento. “Hmm… Claro, vou garantir que isso aconteça.”

    Nesse momento, o olhar de Eisheth ficou distante, como se recordasse algo desagradável. “Não se preocupe, mamãe. Vou me tornar alguém capaz de mudar o seu futuro, para que você esteja ao meu lado no dia do meu casamento.”

    Para Ophelia, que abraçou Eisheth com lágrimas de felicidade nos olhos diante das palavras da filha, Eisheth parecia falar como uma criança, o que a deixava feliz, mas…

    Para mim, houve uma sensação estranha ao ouvir suas palavras, como se algo estivesse errado.

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