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    O conceito de “Deus” sempre foi abstrato para Eriel. Se não fosse por tudo o que sabia sobre o mundo — a existência de anjos, demônios, deuses e seres místicos —, ela imaginava que provavelmente seria cética. Se ela tivesse crescido como uma humana comum, sem o conhecimento do sobrenatural, certamente não acreditaria na existência de um ser supremo.

    Mas sua vida nunca foi comum. Desde jovem, acompanhava seu irmão na facção, convivendo com figuras mitológicas e seres que transcendiam a compreensão humana. O véu que separava o mundo humano do mundo místico nunca lhe foi desconhecido. Apenas um seleto grupo de humanos, assim como ela, conhecia essa verdade. Para o resto da humanidade, o conceito de Deus era uma ilusão, uma crença distorcida criada por mentes desesperadas em busca de sentido.

    Mesmo convivendo no meio dessas entidades, Eriel recusava-se a acreditar na existência de um único deus soberano. A ideia de que alguém reinava absoluto, observando tudo, decidindo destinos desde o nascimento, causava-lhe um profundo desgosto. Como poderia um ser onipotente ser tão mesquinho? Ela pensava com amargura. Se tal Deus existisse, minha mãe estaria viva. Minha família seria perfeita.

    Mas o destino lhe trouxe uma surpresa: ela conheceu um ser que, segundo dizem, estava destinado a se tornar o próximo “Deus Supremo”. Quando soube disso, Eriel pensou em confrontá-lo, dizer tudo o que pensava. Contudo, ele ainda não era o Deus que ela odiava. E, para sua frustração, suas interações com ele só trouxeram mais perguntas.

    As palavras que ele sussurrou em seu ouvido, quase como uma provocação, ecoavam constantemente em sua mente: “Não confie em suas memórias.”

    Que significado têm essas palavras? Ela refletia enquanto encarava o vazio de seu quarto. Será que ele disse isso só para me confundir? Ela não conseguia imaginar uma realidade em que suas próprias memórias fossem traiçoeiras.

    O olhar de Eriel desviou-se para a espada sobre sua mesa. Era uma lâmina de um branco puro, um presente que se moldava ao seu poder. A espada, encaixada perfeitamente em sua bainha, parecia brilhar levemente.

    “Paradoxo…” murmurou para si mesma, refletindo sobre o nome que poderia dar à espada. O termo fazia sentido para algo tão misterioso, capaz de manipular o tempo, de reverter e avançar os momentos.

    Decidida, levantou-se de sua cama e saiu do quarto. Enquanto caminhava pelos corredores da mansão, a movimentação dos empregados chamou sua atenção. Estavam todos ocupados preparando o salão para a festa que aconteceria naquela noite, uma celebração em honra aos recentes triunfos da facção humana.

    Está tudo tão agitado, pensou Eriel, observando a dedicação com que todos trabalhavam. Não era apenas uma celebração de alianças com outras raças — incluindo demônios e elfos —, mas também uma demonstração da união crescente entre essas forças. Isso, de certa forma, simbolizava esperança para o futuro.

    No meio de seus pensamentos, ela notou duas figuras conhecidas à distância: Alice e Azrael, conversando próximos à entrada do salão. Eles logo perceberam sua presença, e Eriel se aproximou, cumprimentando-os com um leve sorriso.

    “Boa tarde, Alice. Azrael,” disse ela.

    “Oh, boa tarde, Eriel!” Alice respondeu com sua usual animação, parecendo particularmente empolgada para a festa. Seu sorriso era radiante, como se esperasse ansiosa por momentos de diversão.

    “Estava te procurando,” Azrael falou, sua voz carregando um tom mais sério que o de Alice. Ele deu alguns passos em sua direção, sua expressão carregada de uma leve preocupação. “Parece que… ele já chegou.”

    Eriel seguiu o olhar de Azrael, curiosa. Seus olhos se voltaram para a entrada do salão, onde avistou uma figura familiar. Seu coração saltou por um momento. Ethan…? Ela quase não acreditava. Fazia tempo que não via seu irmão.

    Lá estava ele, com seu típico ar despojado. Seus cabelos castanhos estavam arrumados de forma casual, jogados para o lado, e seus olhos azuis ainda transmitiam a mesma energia vibrante de sempre, embora um cansaço sutil se escondesse por trás de seu sorriso descontraído. Vestia uma camiseta simples, diferente da formalidade que sempre exibia quando estava em serviço.

    “Eriel, você mudou um pouco?” Ethan se aproximou com um sorriso amigável, sem perder a chance de brincar.

    “Não penso que seja o caso. Sou a mesma de sempre,” respondeu ela, tentando manter sua expressão firme. Mas havia algo em sua voz que sugeria que até ela não estava tão certa disso.

    Ethan riu suavemente, seus olhos fixos nos dela como se pudesse ver algo que ninguém mais percebia. Ele possuía uma aura imponente, que só quem conhecia sobre mana poderia distinguir. Para os leigos, ele parecia um homem comum. Mas para Eriel, a aura azul-clara que irradiava de Ethan era inconfundível. Ele é o líder da aliança humana, afinal.

    “Verdade?” Ethan a estudava com atenção, como se estivesse enxergando além de suas palavras. “Mas vejo uma mudança significativa.”

    Azrael a olhava como se estivesse analisando cada detalhe de sua presença, seus olhos frios, porém atentos, deslizavam por cada centímetro do corpo de Eriel. Ela o conhecia bem o suficiente para entender aquele olhar; não era mera curiosidade, mas uma análise minuciosa, uma percepção aguçada de que algo havia mudado. Ele percebeu… Eriel tinha certeza de que Azrael notara sua evolução. Sua capacidade de mana havia aumentado significativamente, e seu corpo estava mais preparado. Ela estava mais forte.

    Então, seu olhar se voltou para Ethan. O líder da facção humana, que até então exibia uma expressão casual, agora se tornava sombrio à medida que a tensão entre eles crescia. Seus olhos fixos em Azrael transmitiam um desafio silencioso. A aura de Ethan aumentava de forma assustadora, irradiando poder conforme ele se aproximava. Em resposta, Azrael, como se estivesse provocando, deixou sua própria aura escapar. A energia entre os dois era esmagadora, como uma tempestade pronta para explodir.

    Eles vão lutar? Eriel pensou, seu coração acelerando com a ideia.

    A pressão no ambiente era sufocante. A mana densa que ambos estavam canalizando podia ser sentida por todo o lugar, como um manto invisível cobrindo a mansão. Eriel sabia que, se quisessem, aquele poder poderia destruir tudo ao redor com facilidade.

    “Fufufu… Hahahaha!” Ethan, no entanto, interrompeu a tensão com uma risada inesperada. Ele riu alto, e de repente, sua aura diminuiu, dissipando a atmosfera carregada que havia criado. “Você… não parece ter evoluído tanto.”

    Azrael o encarou, com um leve brilho de diversão nos olhos. “Você não cresceu quase nada.”

    Por um instante, o semblante de Ethan vacilou, e Eriel percebeu o choque em sua expressão. “Eh!? Sério? Não é possível! Eu treinei muito desde a última vez.”

    “Seu progresso foi mínimo,” respondeu Azrael, com frieza.

    Eriel observava os dois, intrigada com a maneira como interagiam. A familiaridade e a rivalidade entre eles eram evidentes, mas havia algo mais profundo ali. Ethan, notando a curiosidade de Eriel, decidiu oferecer uma explicação que a surpreenderia.

    “Conheço Azrael há muito tempo. Nós treinamos juntos na infância.”

    Infância? Eriel franziu a testa. Isso significa que Azrael é tão forte quanto Ethan? O líder da facção humana? Ela sempre acreditou que o poder de Azrael fosse incomparável, mas ver Ethan em pé de igualdade com ele a fez reconsiderar. Quem venceria em uma luta?

    Já havia presenciado o poder avassalador de Azrael nas masmorras, mas Ethan, por outro lado, sempre parecia conter algo de sua força. Nenhum dos dois jamais revelara seu verdadeiro potencial por completo.

    E quem ganharia?

    “Infância?” Ela murmurou, tentando organizar seus pensamentos. Nada fazia sentido. Ethan nunca mencionara Azrael antes, pelo menos não desde que a decisão de sua estadia na mansão fora tomada.

    “Bom, isso é passado agora.” Ethan deu de ombros, desviando o olhar. Ele parecia estar satisfeito com a explicação. “De qualquer forma, quem da facção estará no evento de hoje?”

    Azrael considerou a pergunta por um momento, antes de responder com sua calma habitual. “Acredito que apenas alguns de baixa patente. Não posso convidar os velhos chatos.”

    “Velhos chatos…” Ethan riu, concordando com um sorriso. “Não importa onde esteja, sempre há um conselho de anciãos para estragar a diversão.”

    “Certamente!” Azrael respondeu com um leve sorriso de cumplicidade.

    Os dois começaram a conversar de maneira descontraída, como velhos amigos. Eriel, percebendo que a conversa havia mudado de tom, decidiu se afastar. Embora estivesse curiosa, preferiu dar-lhes o espaço que pareciam estar desfrutando.

    Ela seguiu para o jardim, aproveitando um momento de tranquilidade. No caminho, encontrou Beherit, que a informou que o vestido para o evento daquela noite estava pronto. Eriel assentiu, sabendo que teria que estar impecável para o jantar e o baile que se seguiriam. Ainda havia algum tempo, então, em vez de se preparar imediatamente, decidiu aproveitar o restante do dia.

    Ela pediu aos empregados que preparassem um pequeno lanche e, em seguida, dirigiu-se à biblioteca. Pegou um romance leve, uma fuga momentânea das responsabilidades e tensões que pairavam ao seu redor. O livro falava de uma mulher detetive que liderava um caso de assassinato complicado, onde não havia pistas aparentes. Eriel imergiu nas páginas, tentando escapar um pouco da realidade.

    A trama era envolvente, embora previsível no início. A detetive conhecia um homem misterioso que, ao acaso, fornecia uma dica que parecia resolver parte do quebra-cabeça. Ele é o assassino… pensou Eriel, antecipando o clichê. Era comum em romances desse tipo; o culpado sempre estava perto, observando e manipulando.

    No entanto, conforme a história avançava, ela percebeu que estava errada. O homem não era o assassino, mas o verdadeiro culpado estava deixando pistas de propósito. Era como se estivesse cansado de seus próprios jogos, desejando ser pego. Talvez uma espécie de redenção, ou talvez apenas tédio.

    Eriel se perdeu nas páginas, sentindo-se cada vez mais imersa na narrativa. Quando olhou para o relógio, percebeu que o tempo havia passado rapidamente. Suspirando, fechou o livro com um leve sorriso.

    É hora de me preparar, pensou, levantando-se lentamente. A noite ainda promete.

    “Suspiro… Preciso descansar um pouco…”

    Eriel sentia o peso acumulado em seu corpo, como se cada movimento a exaurisse um pouco mais. A tensão daquele dia parecia ter drenado sua energia, e a ideia de repousar por um tempo soava mais do que necessária — era uma espécie de alívio momentâneo. Seu corpo precisava de descanso.

    Ela voltou ao seu quarto, um santuário de paz em meio à agitação da mansão. Ao entrar, Eriel permitiu que seus ombros relaxassem, o ambiente familiar envolvendo-a como um abraço. Antes de se deitar, informou a uma das empregadas sobre sua decisão repentina de tirar um cochilo. “Acorde-me uma hora depois que os eventos começarem”, instruiu-a com sua voz suave, mas firme. Não havia pressa.

    Afinal, a festa não é minha, pensou enquanto olhava pela janela, o céu já escurecendo. Não tenho obrigação de estar lá no horário certo, e muito menos me empenhar exageradamente para impressionar pessoas que nem conheço.

    A ideia de ter que se preparar meticulosamente para aqueles eventos sociais sempre a cansava, mais do que qualquer batalha. Ela não via sentido em se preocupar tanto com aparências diante de desconhecidos. Não são essas pessoas que importam.

    Com um leve suspiro, Eriel se deitou na cama macia, sentindo o corpo afundar lentamente no colchão. Seus olhos começaram a se fechar aos poucos, e o silêncio reconfortante de seu quarto a envolveu. O descanso era tudo que ela precisava, um momento de paz antes de encarar mais uma noite cheia de formalidades.

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