Capítulo 22 — Festa
Após pular o jantar, Eriel caminhou pelo vasto corredor em direção ao salão principal da mansão, suas botas fazendo um som suave no piso de mármore. O peso da ausência no jantar pesava levemente sobre ela, mas, ao mesmo tempo, havia uma sensação de desapego crescente. Era como se a distância entre ela e Ethan, seu irmão, estivesse se alargando de uma maneira sutil e, ao mesmo tempo, inevitável.
Ao entrar no salão principal, ela o encontrou facilmente entre a multidão. Ethan estava impecável como sempre, vestido com o uniforme elegante da facção humana: um terno azul-escuro perfeitamente ajustado, com detalhes brancos e uma gravata vermelha que parecia destacar seu posto de autoridade. Ele conversava de maneira casual com alguns rostos conhecidos, mas, ao notar a chegada de Eriel, afastou-se do grupo com uma leve inclinação de cabeça.
“Falta apenas um mês para as inscrições na facção,” Ethan começou, observando-a de perto. “Você vai fazer o teste?”
A pergunta pairou no ar, carregada de significado. Eriel havia se preparado para aquele momento, cada treinamento, cada teste de suas habilidades, levando-a até ali. Ela sabia que tinha as capacidades necessárias, mas uma ponta de dúvida sempre a rondava, como uma sombra persistente.
“Farei o teste,” respondeu ela, sua voz calma, mas com um traço de incerteza. “Mas peço que não tenha grandes expectativas.”
Ethan arqueou uma sobrancelha, um leve sorriso tocando seus lábios. “Minha irmãzinha está sem confiança em suas habilidades?”
O comentário fez Eriel respirar fundo antes de responder. “Tenho confiança em minhas habilidades, mas o destino… é sempre incerto.”
Havia algo no destino que ela não podia controlar, uma verdade que Eriel conhecia bem. Mesmo com suas habilidades impressionantes, o inesperado sempre poderia surgir e mudar tudo. A certeza absoluta era um luxo que ela não podia se dar ao luxo de ter.
“Azrael comentou sobre seu treinamento,” disse Ethan, desviando o olhar por um momento, como se lembrasse de algo. “Ele elogiou seu crescimento. Se ele tem confiança em você, Eriel, talvez devesse fazer o mesmo.”
As palavras de seu irmão ressoaram em sua mente. Azrael… O nome trouxe uma mistura de emoções conflitantes, mas antes que pudesse processá-las completamente, um homem acenou para Ethan, chamando sua atenção. Ele parecia ser alguém influente dentro da facção, e, pela expressão de Ethan, seria indelicado ignorá-lo.
“Parece que vou ter que ir agora,” disse ele, um pouco relutante. “Mas voltaremos a falar sobre sua inscrição.”
Eriel assentiu. “Tudo bem. Aproveite a noite.”
Ela observou enquanto Ethan se afastava, imerso novamente nas conversas formais e nas intrigas políticas que sempre envolviam essas reuniões. Ele parecia mais distante a cada encontro, mais preso às responsabilidades e às expectativas que seu papel impunha.
Decidida a deixar seu irmão aproveitar a festa sem interrupções, Eriel caminhou até uma das mesas laterais, onde as bebidas estavam dispostas em fileiras de taças brilhantes. O salão estava lotado, muito mais do que ela havia imaginado. Ela esperava um evento mais íntimo, mas parecia que a maioria dos presentes eram figuras desconhecidas – executivos, membros da facção humana, e uma porção de convidados cuja presença parecia desnecessária para um evento casual.
Enquanto pegava uma taça de vinho, sentiu algo. Uma sombra. Um movimento rápido e imperceptível, como se alguém tivesse passado por ela. Uma voz sussurrada ressoou em sua mente, quase como um aviso distante.
“Tenha cuidado com Azrael.”
Eriel congelou por um instante, seu coração acelerando levemente. Olhou ao redor, mas não havia ninguém por perto. Apenas a movimentação habitual da festa. Seus olhos percorreram o salão, tentando identificar de onde aquela voz poderia ter vindo, mas tudo parecia normal.
“Foi minha imaginação?” murmurou para si mesma. A voz era desconhecida, e, por mais que tentasse, não conseguia associá-la a ninguém que conhecesse. Uma sensação incômoda de inquietação se instalou em seu peito.
Antes que pudesse mergulhar mais fundo em seus pensamentos, uma voz suave e familiar a tirou de seu devaneio.
“Eriel, está tudo bem?”
Era Alice. A jovem, com sua aparência angelical, aproximou-se com sua habitual leveza. Ela tinha um olhar preocupado, como se sentisse a inquietação de Eriel antes mesmo que ela a expressasse.
“Estou um pouco cansada, só isso,” respondeu Eriel, tentando afastar a sensação estranha que ainda a assombrava.
Os olhos de Eriel se voltaram instintivamente para o outro lado do salão, onde Azrael estava sentado em uma cadeira imponente, quase como um trono. Ele não parecia estar se divertindo. Na verdade, sua expressão sugeria que estava em outro lugar, distante de toda a festa, como se aguardasse por algo. Seu sorriso era apenas uma fachada, uma máscara social que ele usava para não despertar suspeitas.
“Azrael parece… distante,” comentou Alice, percebendo a direção do olhar de Eriel.
“Ele sempre está,” Eriel murmurou, os olhos fixos no demônio, que parecia mais uma estátua no meio do caos da festa. “Algo o incomoda, mas ele não mostra.”
Alice sorriu com uma leveza que parecia contrastar com a atmosfera pesada que se instalara entre elas. “Oh? Ethan não está conversando com você? Ele mencionou que passaria a noite ao lado de sua querida irmã.”
Eriel suspirou levemente, lembrando-se do breve encontro com seu irmão. “Um membro da facção chamou sua atenção.”
Ao mencionar Ethan, os olhos de Alice brilharam com uma fagulha de emoção. Ela estava particularmente encantadora naquela noite, vestida com um refinado traje branco que realçava sua delicada beleza. Embora sua aparência fosse infantil, havia uma maturidade em seu comportamento que fazia com que todos no salão a notassem.
“Você e Ethan se conhecem há muito tempo?” perguntou Eriel, com uma curiosidade sincera.
Alice corou ligeiramente, um sorriso tímido surgindo em seus lábios. “Sim… conversávamos muito quando ele era mais jovem.”
“Imagino,” respondeu Eriel, tentando visualizar um Ethan mais jovem ao lado da pequena Alice.
“Ele sempre visitou Azrael ao longo dos anos,” continuou Alice, sua voz carregada de lembranças. “Acho que Ethan nunca quis perder a amizade que construiu com ele.”
Eriel sabia que seu irmão tinha um lado misterioso, um que muitas vezes escondia sob o papel de líder da facção humana.
Eriel sentia o peso da desconfiança crescendo cada vez mais dentro de si. Desde que havia se aproximado de Azrael e sua família, pequenos detalhes começaram a saltar aos seus olhos. O comportamento de Alice, sempre cauteloso e evasivo, e as breves menções sobre sua mãe, despertavam dúvidas que ela não podia ignorar.
“Vocês se conhecem desde quando?” A pergunta escapou sem que Eriel realmente quisesse ouvir sobre o passado de seu irmão. Contudo, algo no tom despreocupado de Alice fazia com que aquela pergunta parecesse mais relevante do que nunca.
“Oh? Desde que Ethan nasceu, eu acho. Sua mãe pediu para o Azrael treinar Ethan, então vocês sempre estavam na mansão.” Alice parecia distraída enquanto falava, os olhos movendo-se para Noir e Sonne, que se aproximavam para cumprimentar Ethan. Ela parecia apenas meia presente na conversa, o que não ajudava a aliviar as suspeitas de Eriel.
“Então você conheceu a minha mãe?” Eriel perguntou, tentando parecer casual, mas havia uma tensão em sua voz que era impossível disfarçar.
“Claro. Ela era uma mulher muito bonita e inteligente—” Alice começou a falar, mas sua expressão mudou rapidamente, como se tivesse dito mais do que pretendia. Ela tentou corrigir-se com um sorriso forçado. “Quero dizer, foi isso que ouvi. Sou apenas uma criança, não posso lembrar da sua mãe…”
Eriel percebeu imediatamente a inconsistência. Alice estava escondendo algo. Talvez fosse para protegê-la, ou para proteger algum segredo maior. Mas quanto mais tempo passava ao lado dessa família, mais Eriel sentia que sua intuição estava certa: Azrael não era uma pessoa comum, talvez nem mesmo fosse humano.
A descoberta de runas antigas, que Azrael a ajudara a ler, só reforçava essa suspeita. Elas estavam escritas em uma língua demoníaca, e Azrael parecia entender cada símbolo com uma naturalidade assustadora. Não era comum para humanos terem tal conhecimento, especialmente quando os laços entre humanos e demônios eram recentes. Se Azrael fosse, de fato, um demônio, faria sentido ele ter conhecido sua mãe. Os demônios tinham vidas longas, e Alice, apesar de parecer jovem, poderia muito bem ser mais velha do que Eriel imaginava.
Esses pensamentos a consumiam enquanto Alice tentava disfarçar o desconforto crescente.
“Alice… ” Eriel murmurou, vendo que a mulher notava seu olhar perscrutador. Ela não planejava pressioná-la agora, mas sentia que precisava descobrir a verdade. Qual a real ligação entre Azrael e minha família?
Por um momento, Alice pareceu hesitar, mas então suspirou, visivelmente aliviada quando Eriel afastou a conversa com um sorriso educado.
“Não é nada…” Eriel murmurou, observando Alice suspirar de alívio. Ela sabia que Alice conhecia a verdade, mas optara por não julgá-la naquele momento.
Afastando-se de Alice, Eriel dirigiu-se à saída. Seus olhos encontraram os de Azrael ao longe, e por um breve instante, algo inconfundível passou entre eles. Ele havia percebido. Ela sabia que podia confiar nele para vir ao seu encontro.
No jardim, o ar fresco aliviou a tensão em seu peito enquanto esperava. E como previra, não demorou muito para que Azrael aparecesse. Seu andar era calmo, mas havia algo sombrio em sua expressão que a fazia sentir um arrepio.
“Está entediada?” Ele perguntou, com um toque de ironia na voz, embora sua postura fosse séria.
“Festas assim são chatas.” Eriel respondeu com sinceridade. Ela nunca fora fã de eventos sociais; seu tempo em isolamento na cidade lhe tirara o gosto por situações formais.
Azrael a observou por um momento antes de suspirar, como se já soubesse o que viria a seguir.
“Presumo que você tenha algo para me dizer, certo?”
Eriel respirou fundo. Era agora ou nunca.
“Azrael… você teve alguma ligação com minha mãe?” Sua pergunta saiu direta, sem rodeios, deixando claro que ela não queria mais meias-verdades.
Azrael ficou em silêncio por um instante, seus olhos fixos nos de Eriel, como se medindo até onde ela sabia.
“Sim… eu a conheci desde muito nova.” Sua resposta foi curta, mas direta, e isso já era mais do que Eriel esperava.
“Oh? Você não esconderá isso?”
“Adianta? Você já entendeu o suficiente apenas com as palavras de Alice, certo?”
Azrael estava diferente agora. Sua voz estava fria, o olhar sombrio. Não havia mais o ar amigável ou brincalhão. Ali estava o verdadeiro Azrael, aquele que carregava segredos pesados demais para serem ignorados.
“Então você ouviu… ” Eriel sussurrou, processando a resposta dele. O alcance de sua audição parecia muito além do normal, e a distância em que estava antes fazia a afirmação ainda mais impressionante.
“Minha audição é ótima.” Ele disse com um toque de ironia.
Eriel riu, mas não era uma risada de diversão, e sim de nervosismo.
“Não posso chamar isso apenas de ‘ótima’.”, ela respondeu, tentando aliviar a tensão, mas o peso da conversa não podia ser ignorado.
Por fim, Azrael revelou o que ela temia ouvir, mas precisava saber.
“Sua mãe era uma boa pessoa. No dia do acidente, ela te protegeu até o último momento… Quando cheguei, não havia nada que eu pudesse fazer. Ela já estava morta.”
O mundo de Eriel pareceu parar por um momento. Azrael estava lá, no dia do acidente. Ele testemunhara os últimos momentos de sua mãe.
“Então, você estava no dia do acidente…” A voz de Eriel saiu baixa, quase um sussurro, enquanto tentava absorver a informação.
“Sinto muito, Eriel…” Azrael parecia chegar ao seu limite, a dor em sua voz indicando que aquele assunto também pesava nele.
Eriel soube que não podia pressioná-lo mais. Não agora. Talvez não ainda.
“Posso escutar sua história depois. ” Disse ela, virando-se para sair, sem olhar para trás.
Enquanto caminhava para longe, sentia-se aflita. A verdade sobre sua mãe e seu passado agora parecia mais próxima do que nunca, mas, ao mesmo tempo, ainda fora de alcance. Ethan nunca falava sobre sua mãe, e ela sabia que não poderia simplesmente perguntar. Havia muito mais para descobrir, e Azrael era a chave para isso.
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