Capítulo 74 — Mentiras
Baal
Observando a graciosa presença de cabelos cor de aço-íris, não pude conter um sorriso. Ela parecia um tanto perplexa enquanto estudava o corpo quase sem vida estendido no chão à nossa frente.
Meus olhos se voltaram para o corpo de um dos membros da Aliança. Seu rosto estava desfigurado, a respiração frágil e instável. Mesmo que eu tentasse, era uma tarefa árdua aplicar qualquer forma de cura no estado em que ele se encontrava.
“Pegue isso”, disse Ziz, estendendo-me seu lenço.
Aceitei o lenço com gratidão e comecei a limpar minhas mãos que estavam manchadas de sangue.
“Vamos, tenho que comunicar as informações ao deus da guerra”, comentei, iniciando meus passos em direção à saída. No entanto, Ziz me deteve.
“Espera um momento”, pediu ela, afastando alguns respingos de sangue do meu rosto. “Pronto.”
Enquanto caminhávamos, notei o olhar distante nos olhos de Ziz. Ela tentava disfarçar, mas depois de anos juntos, eu conseguia perceber sua preocupação com facilidade.
“O que está te incomodando?”, perguntei, expressando minha preocupação.
Ziz suspirou profundamente, me olhando. “Leviatã… Ela está com o Azrael.”
Desviei o olhar para o teto do corredor, relembrando nosso último encontro. Azrael não tinha Leviatã como aliada na ocasião, então algo havia mudado entre aquele encontro e o ocorrido ontem.
“Tenho certeza de que o deus da guerra possui informações”, comentei, buscando tranquilizá-la.
No entanto, a presença de Leviatã ao lado de Azrael complicava as coisas para Ziz. Era evidente que ela não teria uma batalha fácil caso tivesse que enfrentá-los.
Finalmente, chegamos a uma sala espaçosa com um trono imponente no seu centro. Olhares curiosos se voltaram para nós quando adentramos, mas rapidamente as pessoas deixaram a sala a pedido do deus da guerra.
“Baal, então? Como foi?”, inquiriu o deus da guerra.
“O resultado foi diferente do esperado. O cristal não conseguiu neutralizar Azrael e o Shinigami que enviamos foi derrotado”, respondi, sem perder tempo.
Era uma mentira, é claro, já que eu mesmo testemunhei o funcionamento do cristal. No entanto, nossos planos foram arruinados por Eriel, que conseguiu dominar sua magia do tempo.
“É uma pena. Parece que o cristal destinado a conter o poder de um híbrido entre anjo e demônio não teve sucesso…”
Me pergunto qual seria a reação dele se descobrisse que o cristal funcionou, não apenas com Azrael, mas também com Leviatã.
“De qualquer forma, descobri que você executou seu companheiro de equipe. Posso saber o motivo?”
“Ele tentou intervir na batalha do Shinigami e quase revelou nosso esconderijo durante o confronto.”
Ares estava ciente de que se nossa localização fosse revelada, Azrael poderia nos capturar, pois mencionei o poder devastador que observei em primeira mão em meu relatório.
“O motivo que me levou a executá-lo foi o seguinte: ele testemunhou o sucesso do cristal e não poderíamos permitir que ele revelasse isso.”
“E os membros que enviamos?”, perguntou Ares.
“Foram capturados por Samael e o Rei dos Vampiros.”
Ares não demonstrou emoção diante do sacrifício dos companheiros, limitando-se a levar a mão à testa.
“Nossos planos foram frustrados novamente…”
Ele parecia relembrar a guerra infantil que ocorreu no planeta dos caídos.
“Eu o alertei no passado sobre o uso inadequado do filho de Lúcifer.”
Confiar em uma criança imatura e fraca fez com que Ares precisasse intervir e se revelar. Era de conhecimento público que os anjos caídos de segunda e terceira geração eram fracos a ponto de serem comparados a vermes.
Dependendo apenas de seus poderes e sem treinamento adequado, era de se esperar que fossem derrotados, pagando o preço por sua arrogância e falta de conhecimento em batalha.
“Mas ainda não posso me livrar dele… Em um futuro próximo, ele causará a derrocada do Anjo da Morte.”
Notei o treinamento que o deus da guerra estava realizando com o caído, mas não acredito que ele conseguirá atingir o nível de Azrael.
“Você planeja usá-lo novamente, mesmo após o fracasso?”
A guerra foi favorável para os caídos, em parte devido aos Cavaleiros do Apocalipse não terem recebido ordens para exterminá-los rapidamente e estarem brincando.
Com base no que ouvi e posso supor, Azrael, que perdeu o controle, foi um problema maior do que o exército dos caídos.
“E se Azrael perder o controle novamente? Você já pensou em alguma solução?”
De acordo com os relatórios que recebi, explicava que o tio Ex chegou em um bom momento e conseguiu conter Azrael de alguma forma, mas é improvável que a mesma tática funcione novamente.
“Não se preocupe. Azrael não é um problema.”
“Ele não é?”, perguntei. “Você esqueceu o motivo pelo qual ele é temido até pelos deuses?”
Azrael certamente possui habilidades assustadoras, a supernova pode ser uma das mais poderosas, mas não me preocupo, visto que ele precisa de tempo para reunir mana.
A habilidade mais aterrorizante é sua espada, capaz de ferir um imortal, e sua capacidade de apagar algo da existência.
“Vamos, não quero continuar com esse assunto sem sentido. Você estará partindo em breve.”
“Qual é a nova missão?”
Ades me entregou uma pequena folha de papel com as informações. Minha surpresa ao ler todo o conteúdo foi inevitável, já que a tarefa exigiria habilidades excepcionais.
“Isso é sério? Você enlouqueceu?”
“É hora de trazer Zariel para o nosso lado.”
Maldito idiota!, pensei.
“Farei conforme for ordenado.”
Deixando a sala, Ziz me observou preocupada enquanto caminhávamos, sem trocar palavras. Foi então que ela soltou um suspiro suave e utilizei minha mana para transmitir minha voz de forma que apenas Ziz pudesse ouvir.
“Ziz, quero que envie uma mensagem para Alice. Diga a Belial para entrar em contato com Azrael. Informe que em três meses, libertaremos Zariel do Tártaro. Mas faça isso anonimamente, para que não descubram que a informação veio de nós.”
Não era o momento de revelar que estávamos compartilhando informações ainda.
“Oh? Poderia dizer a Belial que o amo e sinto saudades?”, brincou uma presença cuja beleza era avassaladora.
Foi nesse momento que a figura apareceu ao meu lado, irradiando uma aura poderosa.
“Lilith…”
Lilith estava sob o efeito de uma magia extremamente poderosa e antiga, mas com a ajuda de Ziz, conseguimos trazê-la de volta. No entanto, ela precisava continuar fingindo por mais algum tempo.
“Peço desculpas. Imagino que você esteja sentindo falta de casa.”
“Na verdade, não é um problema real, mas tenho certeza de que minhas crianças devem estar preocupadas.”
Diferente da maldição que afetou Lilith, a maldição que recaiu sobre a mãe de Eriel era um pouco diferente. Ela tinha liberdade e raciocínio, mas nunca poderia trair o Deus da Guerra. Por mais poderosa que Ziz fosse, essa maldição não pôde ser quebrada.
“Continue com o plano, Ziz, mas avise para não envolver Azrael. Ele só traria problemas, e eu não acho que conseguiria lutar contra ele.”
“Mas você acha que pode enfrentar Belial?”
Lilith sorriu. “Belial pode ser um guerreiro, mas ele me ama profundamente. Ele nunca tentaria me matar, não importa o quão forte eu seja.”
Eu entendia o que Lilith queria dizer. Embora Azrael fosse seu filho, ele não hesitaria em feri-la se isso significasse capturá-la novamente. E como Lilith não estava mais sob o efeito da maldição, ela hesitaria em atacar seu amado filho, o que resultaria em sua própria derrota.
“Vou fazer como você pediu”, confirmou Ziz.
Estamos com uma corda no pescoço, precisamos fazer tudo perfeitamente.
***
Olhando para baixo, eu podia ver as pessoas que me observavam com medo. As mesmas pessoas que haviam destruído minha felicidade agora estavam amedrontadas? Isso não poderia ser permitido. Elas precisavam compreender a dor que eu estava sentindo. Será que apenas eu era destinado a sofrer? Essa ideia estava completamente errada. Meus olhos se voltaram novamente para as criaturas vulneráveis que me encaravam. Todo o planeta tinha pecado, todos eram responsáveis por minha angústia.
“Azrael!”
A voz de Alice me chamou, e virei para olhá-la enquanto ela derramava lágrimas.
“Irmão, por favor, acalme-se.”
Ex estava ao lado dela, segurando Eisheth, sem vida, em suas mãos. Meus olhos fixaram-se mais uma vez em minha amada, e por um momento, pensamentos sombrios passaram pela minha mente.
“Alice, Ex, ouçam minha ordem: voltem para o palácio.”
Com minha ordem absoluta, os dois retornaram ao palácio no reino demoníaco, deixando-me para trás diante da multidão que me observava, enquanto o poder em meu corpo crescia insaciavelmente. Minha mana havia ultrapassado a de Belial, e meu corpo parecia se adaptar à força em ascensão. Homens, mulheres, crianças… todo o planeta deveria pagar.
Enquanto eu conjurava um orbe de magia das trevas, os habitantes do planeta começaram a correr desesperadamente. A magia destrutiva estava prestes a ser lançada, e eu não queria que uma única alma sobrevivesse quando a orbe atingisse o solo. Quando a lancei, a última expressão que vi foi a de uma criança chorando, observando a sua aniquilação se aproximar.
A explosão foi mais poderosa do que eu esperava, mas ainda assim, eu não estava satisfeito. O planeta foi reduzido a destroços, e só poeira flutuava no espaço que antes era habitado. Não senti remorso pelas vidas que tinha ceifado, mas tampouco senti alegria.
Minha visão começou a ficar turva, enquanto sentia gotas de lágrimas caírem dos meus olhos. Não havia esperança. Eisheth estava morta. Ela fora morta por malditos mercenários.
“Não estou satisfeito.”
Minha voz saiu, soando estranha, como se as palavras não fossem minhas. Não era minha intenção expressar aquelas palavras.
“O que devo fazer agora?”, mais uma vez, as palavras saíram da minha boca sem a minha intenção.
Olhei para o lado, e minha mente ficou em branco. Como se estivesse observando através de outros olhos que não os meus, minha mão se ergueu contra minha vontade, e uma rajada de magia foi liberada, destruindo planetas e estrelas. A magia era tão poderosa que drenou metade da mana do meu corpo, que parecia infinita.
Aquele já não era mais eu. Era como se outra pessoa estivesse controlando meu corpo.
Era o que eu estava pensando antes de perder completamente a consciência por alguns segundos.
Quando finalmente abri meus olhos, deparei-me com Samael me observando com um olhar jubilante. Cinco anos haviam se passado, e durante esse tempo, eu havia perdido completamente o controle. Com minhas próprias mãos, havia destruído o material mais resistente do universo, algo capaz até mesmo de partir estrelas ao meio. Minhas adoradas espadas estavam reduzidas a destroços por minha própria fúria, e agora só restavam pedaços do que um dia foram as lendárias lâminas.
Desprovidas de suas almas, olhei para as duas lâminas vazias, sem as presenças que me acompanharam por quase toda a minha vida.
“Ei, garoto, já chega,” uma voz misteriosa soou enquanto me puxava para o seu lado.
Olhei na direção da voz e me deparei com uma sombra negra observando-me. Dessa vez, seu habitual sorriso malicioso havia desaparecido. Em seu lugar, uma expressão séria e preocupada.
“Z?”
Foi nesse momento que olhei ao redor. Uma árvore colossal se estendia diante de mim, cobrindo todo o universo. Suas folhas e raízes pareciam absorver algo vital da existência. Cada folha emitia uma suave luminescência, preenchendo o espaço ao redor com um brilho etéreo. As raízes, entrelaçadas com constelações distantes, irradiavam um poder antigo e indescritível.
“Eu sei que fui eu quem te trouxe até aqui, mas você não deveria estar buscando conhecimento nesse lugar.”
“Onde estamos?” perguntei, confuso.
Z colocou a mão atrás da cabeça enquanto contemplava a imensa árvore.
“Bem-vindo aos Registros Akáshicos,” disse ele, sua voz ecoando como se fosse uma parte intrínseca desse lugar majestoso.
Símbolos e padrões cósmicos, revelando histórias que transcenderam o tempo. Enquanto eu observava, cenas de vidas passadas e eventos cósmicos se desdobravam diante dos meus olhos, como páginas de um livro gigantesco que continha a narrativa completa da existência.
Z se aproximou da árvore e tocou uma das folhas brilhantes. Imediatamente, a folha reagiu, emitindo um brilho ainda mais intenso e projetando imagens em movimento no ar circundante. Eram vislumbres de memórias, momentos cruciais da história do universo, e até mesmo eventos pessoais que pareciam ecoar com significado em minha própria jornada.
“Este é o lugar onde todas as experiências, passadas e presentes, são registradas e preservadas,” explicou Z. “É uma biblioteca viva de conhecimento cósmico, acessível apenas para aqueles que buscam com intenções puras.”
Percebi que estava diante de algo transcendental, uma encruzilhada entre o conhecido e o inexplicável.
“Mas você não tem permissão para observar demais. Samael ficaria irritada se você descobrisse mais do que o necessário,” disse Z, desviando o olhar para o norte. Um leve sorriso brincou em seus lábios, como se reconhecesse algo além do horizonte. “De qualquer forma, vá logo. Ela está te esperando há mais de quatrocentos anos.”
Segui o olhar de Z em direção ao norte, e meus joelhos fraquejaram. Um impulso irresistível me dominou, e eu me lancei em uma corrida desesperada em direção à figura que me observava à distância. Meus instintos gritavam para que eu corresse o mais rápido possível e me aproximasse do ser que parecia um farol na escuridão.
Deixei Z para trás, movido por uma força que parecia transcender o tempo e o espaço. Parei diante da pessoa que emanava uma aura tão familiar e acolhedora. Um doce sorriso adornava seu rosto, enquanto seus olhos negros como a noite pareciam carregar a sabedoria de eras. Seus cabelos negros estavam amarrados em um rabo de cavalo simples, e suas roupas brancas emanavam uma sensação de pureza.
“Como é bom te ver novamente, meu querido irmão,” sua voz suave e melodiosa ecoou, trazendo-me de volta à realidade enquanto meus olhos se encontravam com os dela.
Lágrimas escorreram de meus olhos sem restrição, as palavras dela carregando um peso avassalador. Enquanto eu enxugava as lágrimas de meu rosto, um sorriso sincero se formou em meus lábios. “Você está tão bela quanto sempre, Mana.”
Sua presença irradiava uma sensação de conforto, uma lembrança de tempos mais simples e esperançosos. Nossas almas estavam entrelaçadas de maneira profunda e eterna, transcendendo as tristezas e as provações que o tempo nos trouxera. Era como se, naquele momento, eu tivesse encontrado um refúgio em meio às tempestades que assolaram minha jornada.
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