Daniel Belmonte

    Daniel caminhava distraidamente por uma rua afastada do centro da cidade. Seus passos eram mecânicos, quase sem propósito, enquanto sua mente vagava pelos eventos recentes que o trouxeram àquele estado de desânimo. Ele estava cansado — não apenas fisicamente, mas de um jeito que parecia corroer sua alma.

    A lembrança da demissão injusta ainda o atormentava. Foi acusado de algo que não fez, um erro do supervisor que acabou caindo sobre suas costas. Ele tentou se defender, mas as palavras se dissiparam como fumaça, impotentes diante da decisão inflexível. A humilhação de ser dispensado o acompanha desde então, como uma sombra indesejada.

    Perdido nesses pensamentos, percebeu que havia saído de sua rota habitual e agora se encontrava em um beco estreito. As paredes de tijolos gastos e trepadeiras retorcidas pareciam pulsar em um silêncio expectante. Ao levantar o olhar, notou que não reconhecia o lugar.

    Alarmado, considerou voltar pelo mesmo caminho. Contudo, um aroma suave e inebriante tomou conta do ar, envolvendo-o como um chamado silencioso. O perfume era doce, quase familiar, mas carregava algo etéreo, algo que ele não conseguia nomear. Como se sua alma reconhecesse um sussurro esquecido. Sem perceber, suas pernas se moveram por conta própria, ignorando os protestos de sua mente racional. 

    No fim do beco, encontrou uma loja de médio porte. Acima da entrada, uma placa de madeira esculpida com delicadeza exibia o nome: Lótus Azul.

    Havia algo na simplicidade do lugar que o intrigava. A fachada estava bem cuidada, mas exalava um magnetismo peculiar, um misto de serenidade e mistério. Ele hesitou. Mas, no fundo, o que mais tinha a perder?

    Ao atravessar a porta, foi envolvido por uma névoa perfumada, uma fusão etérea de chá recém-preparado e pétalas orvalhadas. O ar parecia vibrar com um sussurro antigo, como se segredos repousassem entre folhas e galhos. Seus olhos levaram alguns instantes para se ajustar à penumbra acolhedora. Vigotas de madeira entrelaçadas sustentavam uma cascata de heras e glicínias, que desciam em véus verdes e lilases, sussurrando histórias ao toque da brisa.

    A loja parecia se expandir além de suas paredes, como se contivesse um fragmento de um tempo esquecido. Prateleiras entalhadas abrigavam vasos de cerâmica desgastados pelo tempo, repletos de flores dispostas em um caos harmonioso, onde a natureza reivindicava sua própria ordem. Do teto, cestos pendiam como relicários botânicos, e o chão de tábuas antigas rangia sobre seus passos, ecoando memórias de eras passadas. Era como cruzar um limiar invisível para um mundo onde o tempo fluía em um ritmo próprio, embalado pelo sussurro das folhas.

    — Olá! Como posso ajudá-lo, caro cliente? 

    Daniel deu um leve sobressalto. Não havia percebido que não estava sozinho. No fundo da loja, uma mulher estava sentada em uma mesa redonda. Sobre a qual repousava uma bandeja com um bule de chá azul e duas xícaras combinando, ambas preenchidas com o líquido fumegante.

    Ele piscou, desconcertado, tentando recuperar a compostura.

    — Ah… desculpe, eu… não sabia que tinha alguém aqui. Esse lugar é… incrível.

    A jovem sorriu de leve, um sorriso que parecia conter segredos. Seus olhos brilhavam com uma intensidade calma enquanto ela tomava um gole de chá antes de responder

    — Não precisa se desculpar. Meu nome é Ren. Gostaria de se juntar a mim para uma xícara de chá?

    Ele hesitou. A proposta era estranha, e não sabia como reagir. Mas, havia algo nela. Um magnetismo sutil, uma gentileza que parecia genuína. Contra sua própria lógica, assentiu e se aproximou, sentando-se à mesa.

    Agora que estava mais perto, observou Ren com mais atenção. Seus cabelos pretos com reflexos azulados caíam em ondas suaves, emoldurando um rosto que parecia saído de outra época. Seu vestido vitoriano roxo, com babados brancos e luvas delicadas, era algo que ele só havia visto em filmes. Até o chapéu, adornado com uma rosa e um véu transparente, parecia cuidadosamente escolhido para compor aquela imagem singular.

    Quem se veste assim hoje em dia? Esse foi seu primeiro pensamento ao vê-la de perto, enquanto lutava para não encará-la por tempo demais. Uma tarefa na qual acabou falhando ao ser encarado de volta — o que resultou em um desvio de olhar envergonhado, sentindo as bochechas esquentarem.

    — Está tudo bem? — perguntou, com um sorriso divertido. — Pareço muito estranha para você?

    — N-não, de jeito nenhum! Só… não estou acostumado com… bem, com isso tudo.

    Ren apenas observou enquanto ele gesticulava para o ambiente ao redor, envergonhado. Ela riu baixinho e serviu a outra xícara, com movimentos precisos e elegantes.

    — Tome, experimente. Acho que vai gostar.

    Daniel pegou a xícara e deu um gole. O sabor era rico, equilibrado. Ele sentiu o corpo relaxar instantaneamente.

    — Uau… Isso é incrível. O que é?

    — Uma receita especial — deu um sorriso enigmático. —  Os Chás têm o poder de acalmar a mente e clarear os pensamentos, sabia? E você parecia precisar disso hoje.

    Daniel levantou o olhar, surpreso. Como ela poderia saber? Será que ele foi tão óbvio assim?

    — Talvez você esteja certa… 

    E talvez seja a primeira pessoa a acertar isso em dias.

    A conversa fluiu de forma inesperada. Reen falava com paixão sobre flores e seus significados. Algo que Daniel nunca havia considerado antes. Ele se pegou admirando não apenas suas palavras, mas, a maneira como ela falava — como se cada frase carregasse um pedaço de sua alma.

    — É incrível ouvir você falar sobre o que ama — levou a xícara aos lábios e tomou outro gole de chá. — Eu queria ter essa paixão pelo que faço.

    Ela o observou por alguns segundos, inclinando a cabeça levemente.

    — E o que você faz?

    Ele piscou, surpreso pela pergunta. Havia algo no tom dela que o fazia querer ser honesto, mesmo sobre coisas que preferia evitar.

    — Bom, eu trabalho……. trabalhava com vendas. Mas, para ser honesto, nunca foi algo que me deixasse realizado. Acho que o que mais gostava era ajudar os outros. Pequenas coisas, sabe? Como reabastecer o café para as manhãs frias ou garantir que tudo estivesse organizado. Não parece grande coisa, mas… gostava de ver os dias das pessoas ficando um pouco mais fáceis.

    Ren abriu um sorriso. Um sorriso gentil que parecia aquecer o ambiente. Já Daniel se sentiu envergonhado, por se sentir empolgado com algo tão simples.

    — Isso é maravilhoso. Pequenos gestos têm mais impacto do que você imagina. Não subestime o valor do que faz.

    Aquelas palavras, tão simples e sinceras, mexeram com ele. Fazia tempo que ninguém o fazia se sentir valorizado, nem mesmo ele próprio. Antes que pudesse agradecer, ela se levantou e foi até os fundos, voltando com um buquê de margaridas frescas.

    — Aqui está. Um presente.

    — Obrigado, mas, não posso aceitar sem pagar.

    — Não se preocupe. É meu presente para você. Considere isso como um símbolo de um novo começo.

    Daniel segurou o buquê com cuidado, quase como se temesse quebrá-lo. Ao sair da loja, sentiu algo que não experimentava há tempos: Esperança.

    Talvez, apenas talvez, a vida ainda guardasse surpresas para ele.

    ***

    Nove dias haviam se passado desde sua visita à Lótus Azul. O tempo parecia arrastar-se em um torpor inquietante, e, apesar de ainda não ter conseguido outro emprego, ele se agarrava à esperança com unhas e dentes, mesmo quando ela ameaçava escapar por entre seus dedos como areia fina. Era como caminhar por uma névoa espessa, onde cada passo poderia levá-lo a um abismo desconhecido.

    Na tarde do nono dia, o tilintar do telefone rompeu o silêncio sepulcral do apartamento. O som reverberou em seu peito como um trovão distante. Com um sobressalto, agarrou o aparelho e franziu a testa ao ver o nome de Richard, um de seus antigos colegas de trabalho. O que ele queria? Uma dúvida gélida se instalou em sua espinha.

    — Richard? — Sua voz saiu mais fraca do que esperava, como se o ar lhe faltasse.

    — Daniel, você está sentado?

    A pergunta veio cortante, carregada de algo que ele não conseguia decifrar: um misto de urgência e alívio.

    — Estou… O que houve?

    Um arrepio percorreu sua nuca, e um silêncio incômodo se alongou do outro lado da linha, seguido por um suspiro tenso.

    — Depois que você foi demitido, começamos a desconfiar. Não fazia sentido, não parecia algo que você faria, entende? — Richard fez uma pausa, como se escolhesse as palavras com cautela. — Então pedimos uma vistoria surpresa.

    O coração de Daniel disparou no peito, batendo contra suas costelas como se quisesse escapar. Suas mãos ficaram suadas, o telefone escorregando levemente entre seus dedos.

    — E? — a palavra saiu quase sem fôlego, uma prece desesperada.

    — O supervisor… Ele foi pego em flagrante — sua voz agora soava firme, como um juiz proferindo uma sentença irrevogável — A pressão o fez confessar tudo na delegacia. Ele admitiu as manipulações, as falsas acusações, o golpe que armou contra você… Daniel… 

    Richard inspirou fundo antes de dizer o que mudaria tudo:

    — Seu nome está limpo.

    Por um instante, o mundo parou.

    Daniel fechou os olhos com força, como se precisasse absorver cada palavra, fixá-las em sua mente antes que desaparecessem como um sonho ao amanhecer. Seu peito subia e descia em um ritmo desenfreado, as emoções se atropelando dentro dele.

    — Eu… eu não sei o que dizer… 

    — Não precisa dizer nada. Eu só achei que você deveria saber.

    A chamada se encerrou com um estalo seco, deixando Daniel imóvel, o telefone ainda colado ao ouvido. Uma onda avassaladora de emoções o dominou: alívio, gratidão, raiva pelo que sofreu, e, acima de tudo, uma força renovada.

    A injustiça foi desfeita, e a verdade, enfim, emergiu da escuridão.

    ***

    Três dias depois, Daniel Belmont foi chamado ao escritório. O nervosismo ainda roía suas entranhas, mas havia algo diferente desta vez — uma determinação firme, quase palpável. Ele não estava ali apenas para ouvir. Estava ali para se afirmar.

    Ao atravessar os corredores familiares, sentiu o peso do passado tentando alcançá-lo, mas se recusou a ceder. Seu antigo chefe o recebeu com um olhar desconcertado, o desconforto transparecendo no modo como mexia os dedos sobre a mesa. Quando estendeu a mão para cumprimentá-lo, o aperto foi firme, mas não o bastante para mascarar a hesitação na voz.

    — Daniel, eu… — ele respirou fundo, desviando o olhar para a janela, antes de se virar novamente. — Quero começar pedindo desculpas. O que aconteceu foi uma injustiça tremenda.

    Ele não respondeu de imediato. Deixou que o silêncio se estendesse, esticando-se como um fio fino, enquanto o homem à sua frente parecia murchar sob o peso de suas próprias palavras.

    O chefe tentou, em vão, se recompor, passando a mão pelo rosto antes de continuar:

    — Queremos que você volte para a empresa. E não só isso. Vamos corrigir esse erro oferecendo um aumento significativo e… — fez uma pausa, observando a reação de Daniel com atenção — Um cargo de liderança.

    Daniel sentiu os músculos do rosto se apertarem, os olhos se estreitando ligeiramente enquanto absorvia as palavras. Cada sílaba parecia pesar, mas não de maneira que o abalasse. Quando respondeu, sua voz soou calma, mas inabalável.

    — Aceito o aumento, mas não o cargo.

    O olhar do presidente se estreitou, a surpresa se espalhando por seu rosto como um flash. Por um momento, parecia não entender.

    — Posso perguntar por quê?

    Daniel sustentou o olhar, sua expressão carregada de convicção.

    — Quero subir de cargo pelos meus próprios méritos, e não como uma compensação. Além disso… — fez uma breve pausa, escolhendo as palavras com precisão. — Esses últimos dias me mostraram algo importante, eu amo o que faço. Amo as pequenas contribuições que agrego à empresa, o dia a dia do meu trabalho. Não quero perder essa conexão.

    O chefe permaneceu em silêncio, o olhar fixo em Daniel, e, após o que parecia uma eternidade, assentiu lentamente, como se fosse ele quem tivesse feito a escolha.

    — Respeito sua decisão.

    Ao sair do escritório, Daniel sentiu o ar entrar mais leve em seus pulmões. Como se, enfim, tivesse se libertado de algo invisível, mas esmagador. Como se, pela primeira vez em muito tempo, estivesse exatamente onde deveria estar.

    ***

    Chegando em casa, ainda absorvia os acontecimentos do dia. A cozinha estava banhada pela luz dourada do fim da tarde, e tudo parecia mais acolhedor do que antes. Sobre a mesa, as margaridas no vaso se erguiam vibrantes, como se refletissem seu próprio estado de espírito — delicadas, mas resilientes.

    Aproximou-se, passando os dedos suavemente pelas pétalas macias, sentindo o frescor das flores. Foi então que notou algo diferente. Um pedaço de papel, parcialmente oculto entre os caules. Franziu a testa, pegando-o com cuidado e o desdobrando. Era um pequeno cartão. Na parte frontal, uma ilustração singela de uma margarida. Abaixo, uma descrição poética:

    “Margarida: Representa a esperança. Por isso, é a opção ideal para presentear alguém que esteja precisando de apoio ou incentivo. Aliás, é dito que ela também representa um segredo entre amigos.”

    Por um instante, apenas ficou ali, absorvendo aquelas palavras. Uma risada baixa escapou de seus lábios enquanto balançava a cabeça.

    — Ren. Você realmente sabe como tocar uma pessoa, não é?

    Havia algo genuinamente puro naquele gesto. Não era só o presente ou a mensagem, mas o que estava por trás de tudo. A atenção aos detalhes. O entendimento silencioso. A capacidade de enxergar além das palavras.

    Guardou o cartão de volta entre as flores, como se quisesse preservar aquele momento. O sorriso permaneceu, suave, quase involuntário. Pequenos gestos realmente podem mudar vidas. E Ren havia feito isso — não com grandes discursos, mas simplesmente ouvindo.

    Sem julgamentos.

    Olhando para as margaridas, sentiu uma paz inesperada tomar conta de si. A esperança, percebeu, era como as tempestades. Voraz, imprevisível, mas, no fim, sempre deixando espaço para a calmaria.

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