Faz três dias desde minha visita à Lótus Azul. Agora, estava no quarto da minha mãe, tentando manter uma conversa com ela. Mas suas respostas vinham lentas, arrastadas, como se atravessassem um mar de cansaço e analgésicos.

    Então, vi uma figura inesperada atrás da enfermeira que abria passagem. Meu coração apertou.

    Era a florista.

    Hoje, ela vestia-se com simplicidade, mas nem por isso sem graça. O cabelo negro caía em ondas macias, os olhos pareciam ainda mais intensos com a maquiagem leve, mas bem contornada. Usava uma calça branca fluida e uma blusa justa de gola alta, cujo tecido se expandia na cintura como um véu, abrindo-se em um corte elegante na frente.

    — Ren?! O que faz aqui? Quero dizer… no hospital e… 

    Ela sorriu, hesitante, completando por mim:

    — Exatamente neste quarto.

    Houve um instante de silêncio. Seus olhos buscaram os meus antes de deslizarem para minha mãe no leito.

    — Eu… eu fiquei sentida pela sua dor e quis vir desejar melhoras à sua mãe — sua voz soou suave, mas um tanto incerta. — Trouxe rosas amarelas. Elas simbolizam apoio e amizade. Achei que poderiam ajudar na recuperação dela.

    Seus dedos afagaram delicadamente as pétalas antes de me entregar o buquê.

    — Obrigada — peguei as flores, sentindo o perfume adocicado se misturar ao cheiro de hospital. — Mas… como soube onde me encontrar?

    Ren ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Você me contou, lembra? No dia em que me visitou.

    Eu havia contado? Meu peito afundou um pouco. Não me lembrava de ter dito nada sobre o hospital. Talvez tenha escapado entre lágrimas naquele dia vergonhoso em que chorei na floricultura. Mesmo assim, algo nela me transmitia confiança. Desde o primeiro momento, não senti necessidade de erguer barreiras. Era estranho.

    — Acho que foi pior do que imaginei — murmurei, dando um sorriso fraco.

    Desviei o olhar para as rosas, retirando as flores murchas do vaso ao lado da cama. Depositei-as no lixo, enchi o recipiente com água e acomodei as novas flores.

    — Olha, mãe. Não são lindas? A mulher de quem lhe falei as trouxe.

    Minha mãe virou a cabeça devagar, seu rosto cansado suavizando em um pequeno sorriso. Então, seus olhos encontraram os de Ren. Minha mãe não disse nada. Mas o olhar dela, um olhar profundo e distante, permaneceu fixo por tempo demais.

    Olhei para Ren e senti um calafrio. Ela estava imóvel, como se o ar ao seu redor tivesse congelado. Sua expressão não era apenas de surpresa, mas de algo mais profundo… algo que beirava o desespero.

    Chamei por seu nome, mas ela não reagiu. Insisti, agora em voz mais alta. Toquei seu braço, e só então ela piscou, como se despertasse de um transe.

    — Ah… me desculpe. Acho que… viajei um pouco.

    — Você está bem?

    — Sim… às vezes acontece. Coisa minha.

    — Tem certeza de que não quer ver um médico?

    Ela forçou um sorriso. — Não precisa se preocupar, Isa. Estou bem. Além disso, já estou de saída. Foi um prazer vê-la e… senhora…

    — Valentina — completei por minha mãe, que apenas observava tudo em silêncio. — Valentina Gonzalez.

    — Foi um prazer, senhora Gonzalez.

    Quando ela se virou para sair, meu celular vibrou no bolso. Olhei para a tela, incrédula. Era uma mensagem do banco de doadores, pedindo que eu entrasse em contato com urgência.

    — Ren, pode esperar um instante? Preciso fazer uma ligação. Enquanto isso, você poderia ficar com minha mãe? Prometo que serei rápida.

    Ela hesitou. Por um momento, achei que recusaria. Mas então, suspirou e assentiu devagar.

    — Claro… eu espero.

    ***

    A notícia me atingiu como um choque elétrico. As lágrimas vieram de imediato, ardendo enquanto deslizavam pelo meu rosto. Do outro lado da linha, a voz da atendente tentava soar serena, mas eu mal conseguia absorver as palavras direito.

    Um doador.

    As mãos trêmulas apertaram o telefone com mais força.

    — Você… você pode repetir? — minha voz saiu embargada, um fio entre o choro e a esperança.

    — Encontramos um possível doador, mas há uma questão… Ele está fora do país. Em Portugal, para ser mais exata.

    Um soluço escapou da minha garganta. — Isso não importa! — interrompi antes mesmo que ela continuasse. — Se ele for compatível… Se ele realmente puder… Eu cubro todos os custos, faço o que for preciso!

    Houve uma breve pausa do outro lado. Meu coração martelava tão forte que tive medo de não ouvir a resposta.

    — Entendemos sua urgência, moça, e já estamos providenciando tudo. Assim que ele chegar, realizaremos todos os exames necessários para garantir a compatibilidade, mas adiantamos que as chances são muito altas.

    Um riso escapou entre o choro.

    — Obrigada… Meu Deus, obrigada!

    A ligação se encerrou, mas eu continuei segurando o telefone contra o peito, como se aquele aparelho fosse a própria âncora para minha nova realidade. O peso esmagador que carreguei nos últimos meses começou a se dissipar, dando espaço para algo que eu mal me lembrava como era sentir — alívio.

    Minha mãe teria uma chance.

    Me levantei do banco onde estava sentada, sob a sombra de uma árvore nos jardins do hospital. O mundo ao meu redor parecia mais vibrante, mais leve. Minhas preces estavam sendo ouvidas. Sem perder mais tempo, corri de volta para o hospital, o coração acelerado, mas agora por um motivo diferente. Precisava contar a ela. Ela precisava saber que ainda havia esperança.

    ***

    Antes de voltar ao quarto, passei por uma mulher no corredor. Ela exalava elegância sem esforço. Os cabelos castanhos escuros estavam presos em um coque baixo impecável, destacando os traços refinados do rosto. Os olhos, da mesma cor, eram afiados, como se observassem o mundo com uma calma controlada. O terno cinza-claro moldava-se perfeitamente ao seu corpo, a camisa branca trazia um toque de sofisticação discreta, e os saltos pretos tilintavam suavemente contra o chão de porcelanato do hospital.

    Ela acenou e sorriu ao me ver. Retribuí o gesto, mas, internamente, fiquei intrigada. Pessoas como ela geralmente não frequentavam hospitais públicos. O que a teria trazido aqui?

    A curiosidade ficou para depois. Meu coração ainda vibrava com a notícia do doador, e nada conseguiria abalar a felicidade que eu sentia naquele momento.

    Ao entrar no quarto, vi Ren sentada ao lado da cabeceira de minha mãe, que dormia profundamente. A cena não era incomum, mas algo me incomodou. O semblante da florista era diferente. Os dedos entrelaçados sobre o colo pareciam tensos, e seus olhos vagavam pelo rosto de minha mãe com um misto de conflito e desconforto.

    O que a deixava assim?

    — Desculpe a demora. — rompi o silêncio, fazendo-a erguer os olhos para mim. — A conversa foi mais longa do que eu esperava.

    Ren piscou algumas vezes, como se estivesse voltando à realidade.

    — Tudo bem — ela sorriu, mas não era um sorriso que chegava aos olhos. — Pela sua cara, suponho que tenha boas notícias.

    Assenti, sentindo a excitação subir novamente.

    — Sim. Quero contar logo para minha mãe, mas acho melhor deixá-la dormir um pouco. Ela tem passado muitas noites em claro.

    — Posso perguntar quais notícias são essas? Apesar de já ter uma ideia, quero ouvir de você, Isa.

    Quando ela dizia meu nome assim, de forma tão gentil, quase maternal, era impossível esconder algo dela. O que tornava tudo ainda mais estranho, considerando que mal nos conhecíamos.

    — Parece que um doador finalmente foi encontrado. — as palavras saíram num fio de voz, mas carregadas de uma alegria quase palpável.

    — Isso é maravilhoso, Isa!

    Ren se levantou tão rápido que a cadeira rangeu contra o chão. Antes que eu pudesse reagir, seus braços me envolveram num abraço apertado. Eu ri, mas as lágrimas vieram de novo, quentes e inevitáveis.

    — Ainda parece surreal… Como se fosse um sonho e eu fosse acordar a qualquer momento.

    — Mas não é — ela segurou meu rosto entre as mãos e enxugou as lágrimas com os polegares. — Isso é real, e sua mãe vai ficar bem. Você tem que acreditar nisso.

    Abracei-a de volta. De novo, me encontrava chorando no colo dela. Eu realmente precisava parar de encontrá-la assim, já estava ficando ridículo. Respirando fundo, me afastei, tentando compor a expressão.

    — Minha mãe é tudo para mim.

    As palavras haviam escapado antes mesmo que eu percebesse. Ren não disse nada, apenas inclinou levemente a cabeça, esperando que eu continuasse.

    — Ela sempre esteve do meu lado, mesmo quando o mundo parecia contra nós. Quando meus pais se separaram, meu pai tentou levar a guarda, insistindo que ela não tinha como cuidar de mim sozinha. Ela lutou por mim com unhas e dentes. Nunca se deixou abalar, nem mesmo quando ele tentou comprar o juiz.

    Engoli em seco, sentindo o peso da lembrança.

    — Eu era só uma criança, mas me lembro de vê-la chorando escondida no banheiro, achando que eu não estava ouvindo. Ainda assim, no dia seguinte, ela sorria para mim e dizia que tudo ia ficar bem. E ficou. Ela venceu.

    Ren manteve os olhos fixos em mim, sua expressão suave, compreensiva.

    — Ela te ama muito.

    — Mais do que qualquer coisa — sorri, melancólica — Quando eu tinha oito anos, uma menina da escola zombou de mim porque meu tênis estava gasto e minha mochila rasgada. Eu tentei ignorar, mas cheguei em casa chorando. Minha mãe não disse nada naquele dia. Mas no dia seguinte… — parei, rindo baixinho ao lembrar da cena. — Ela apareceu na escola com a mochila mais bonita que eu já tinha visto. Fez questão de me entregar na frente da menina e ainda disse: 

    — Quero ver quem tem peito pra falar da minha filha agora.

    Ren riu junto, balançando a cabeça.

    — Ela sempre foi meu porto seguro. Agora é minha vez de retribuir.

    Afastando-se um pouco, Ren pousou a mão sobre meu ombro, apertando-o levemente. — E você está fazendo isso, Isa. Sua mãe tem muita sorte de ter você como filha.

    A emoção voltou a subir à minha garganta, mas dessa vez não chorei. Apenas sorri, sentindo o coração aquecido. Ela estava certa. Eu faria qualquer coisa por minha mãe. E agora, finalmente, havia esperança.

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