Capítulo 11: Anêmonas (Parte III)
Nos últimos dias, o doador compatível com minha mãe finalmente chegou ao país. Passou por uma bateria de exames para garantir que estava em condições ideais para o procedimento.
Tiago, trinta e seis anos, saudável, dono de um sorriso fácil e um jeito cativante. Entrou no banco de doação depois de perder uma tia para a mesma doença que agora ameaçava minha mãe. Era um homem nobre, altruísta e, devo admitir, absurdamente bonito — e solteiro.
Mas na época, isso era irrelevante. Minha única preocupação era minha mãe.
O transplante de medula óssea foi um sucesso. Mas as horas dentro daquela sala de espera foram exaustivas. Eu rezava, andava de um lado para o outro, mal conseguia me sentar. Cada segundo parecia se arrastar, o ponteiro do relógio avançava a passos míseros, como se zombasse da minha angústia. Meu coração pulsava tão forte que chegava a doer. O café que tomei mais cedo agora se revirava no estômago, misturado ao pavor da incerteza.
Quando finalmente o médico apareceu, seu semblante calmo foi minha primeira fagulha de esperança. “A cirurgia foi um sucesso”, ele disse, e naquele instante, todo o peso que carregava nos ombros desabou de uma só vez.
O procedimento em si não foi simples: a medula de Tiago foi coletada através de punção na região pélvica, sobre anestesia geral, e então infundida na corrente sanguínea da minha mãe como se fosse uma transfusão. Agora, a nova medula precisava encontrar seu lugar, se multiplicar e começar a produzir células saudáveis. Mas o pós-operatório era crítico. Risco de infecção, rejeição, efeitos colaterais… O médico disse que ela precisava de monitoramento constante, mas que a resposta inicial era promissora.
Quando pude vê-la, o alívio veio como uma avalanche, esmagando toda a tensão acumulada nos últimos meses. Eu desabei. Chorei sem vergonha, sem medo, sem conseguir me conter. Segurei sua mão e senti o calor da sua pele — ainda fraca, sim, mas viva. Meu coração, que por tanto tempo parecia carregado por uma sombra constante, finalmente encontrou luz.
Tiago precisou ficar no país por mais alguns dias para sua recuperação. Oferecemos nossa casa, era o mínimo que podíamos fazer. Ele hesitou no início, mas acabou aceitando. E foi assim que começamos a nos conhecer melhor.
Soube que ele era farmacêutico e dono de sua própria farmácia em Évora, uma cidade charmosa em Portugal. Era culto, espirituoso, sempre tinha uma resposta inteligente na ponta da língua. Aos poucos, nossas conversas deixaram de ser apenas sobre a recuperação da minha mãe e se tornaram algo mais… íntimo. Trocamos histórias, confidências, risadas.
Minha mãe parecia gostar dele — e ela não gostava de muita gente. Isso, por si só, já queria dizer algo.
Talvez eu ainda não soubesse exatamente o que era. Mas algo começou a mudar.
***
Com tudo o que havia acontecido nos últimos meses, não tive tempo de visitar Ren nem de passar na floricultura. A vida se tornará uma sucessão de compromissos inadiáveis, e qualquer resquício de normalidade parecia um luxo distante. Mas agora, três meses depois, as coisas pareciam finalmente se reorganizar.
Senti um impulso quase nostálgico de voltar à Lótus Azul. Talvez eu comprasse uma planta para casa, algo que trouxesse vida ao ambiente. E claro, queria ver Ren. Depois de tudo o que aconteceu, da forma como ela me acolheu nos meus piores momentos, podia considerá-la uma amiga.
Quem sabe até tomar chá com ela de novo?
Mas, ao chegar lá, um arrepio gelado subiu pela minha espinha. Algo estava errado. A placa da floricultura havia desaparecido. A porta de madeira, antes rústica e charmosa, agora parecia ainda mais velha e castigada pelo tempo, como se ninguém a tivesse tocado em anos. As vitrines, que costumavam transbordar a vida com flores vibrantes, estavam vazias. Um silêncio opressivo pairava no ar, e o cheiro fresco das plantas dava lugar ao odor seco de poeira esquecida.
Engoli em seco e empurrei a porta. Ela cedeu com um rangido longo e queixoso, um som que fez minha pele se arrepiar.
Ao atravessar o limiar, meu coração vacilou.
O lugar era… diferente. Não apenas vazio, mas completamente transformado. O espaço continuava do mesmo tamanho que por fora, as paredes brancas e lisas pareciam sem vida, frias. Nenhuma janela, exceto uma pequena e retangular voltada para o beco. Não havia vasos, flores ou o menor indício de que ali funcionava uma floricultura.
O chão estava coberto por uma fina camada de poeira, como se ninguém pisasse ali há muito tempo. Meus passos ecoavam de um jeito estranho, como se o lugar fosse menor do que deveria ser — era como se a Lótus Azul nunca tivesse existido.
Meu peito apertou. A sensação de deslocamento era sufocante, como se eu estivesse presa em um sonho lúcido, onde tudo parecia real, mas errado.
Foi então que notei a única coisa naquele vazio absoluto. No centro do balcão empoeirado, repousava um buquê. As flores eram de um colorido vibrante e incomum, pétalas finas como seda, um perfume delicado, mas inebriante. Algo exótico, desconhecido.
Me aproximei hesitante, estendendo a mão para tocar as pétalas macias. E foi só então que percebi. O buquê estava fresco. Como se tivesse sido colocado ali agora mesmo.
***
Na época, tudo me pareceu surreal. Era como se Ren e a floricultura nunca tivessem existido.
A princípio, tentei racionalizar. Talvez ela tenha apenas mudado de local e esquecido de avisar os clientes. Mas quando comecei a perguntar aos comerciantes vizinhos, a resposta foi unânime — e inquietante.
Aquela loja nunca existiu.
Eles garantiam que aquele ponto estava abandonado havia décadas, e que ninguém conseguia alugá-lo por algum motivo. Falavam com naturalidade, sem qualquer hesitação, como se fosse um fato inquestionável.
Comentei o ocorrido com minha mãe, mas sua reação me deixou ainda mais inquieta. Ela desviou o olhar, desconfortável, e disse que eu devia ter imaginado tudo. Como todos os outros, me tratou como se eu estivesse louca.
Mas eu não estava. Eu sabia que Ren era real. Minha mãe também a tinha visto, até conversado com ela. Quando insisti, sua resposta me desarmou:
— Eu não me lembro muito bem daqueles dias… Os remédios me deixavam sonolenta.
A explicação parecia plausível, mas no fundo, algo não se encaixava. Como se um pedaço importante da história tivesse sido apagado.
Com o tempo, desisti de questionar, e guardei aquela memória só para mim, como um segredo precioso.
***
Naquele dia, minha mãe saiu para um exame de rotina com Tiago. Eu me ofereci para levá-la, mas ele insistiu — disse que já tinha compromisso na cidade e poderia aproveitar para resolver tudo de uma vez.
Algo nele estava diferente ultimamente. Havia comentado sobre abrir uma farmácia na cidade, uma ideia que no início me pareceu insana. Mas Tiago era teimoso, então apenas desejei que desse certo.
Com a casa vazia, decidi aproveitar o tempo para fazer uma faxina. Enquanto tirava o pó da estante, peguei o vaso que havia trazido da última visita à floricultura para limpá-lo e renovar a água das flores. Foi então que um pequeno cartão caiu de entre as folhas.
Eu não lembrava de tê-lo colocado ali.
Abaixei-me para pegá-lo. Na frente, uma ilustração da mesma flor do vaso, acompanhada de uma inscrição:
“Anêmona: Simboliza a persistência e a perseverança. Originária da Grécia, carrega a mitologia do deus do vento, Ánemos, demonstrando força e resistência diante das adversidades”
Virei o cartão, o coração acelerado. Atrás, havia outra mensagem. Mas essa era diferente. A caligrafia era apressada, tremida, quase desesperada:
Quando você receber essas flores, eu não estarei mais aqui. Mas, como elas, sei que você é forte o suficiente para enfrentar qualquer adversidade em seu caminho. Poucas pessoas teriam coragem de passar pelo que você passou e continuar de pé.
Cuide da sua mãe. Espero que ela valorize e reconheça a filha maravilhosa que tem.
Eu queria ter ficado mais tempo, mas preciso partir agora. Então, apenas lhe desejo uma boa vida.
Quem sabe nossos caminhos se cruzem novamente… se não nesta vida…. quem sabe a próxima.
Quando terminei, uma lágrima caiu sobre o papel. Depois outra. E outra. Mas não era tristeza. Não era alegria. Era como se uma parte de mim que eu nem sabia que estava presa tivesse sido libertada. Minha alma se sentia leve, limpa e renovada.
— Isa, está tudo bem?
Dei um pulo, virando-me para a voz surpresa de Tiago. Minha mãe estava logo atrás, os olhos arregalados.
— Filha, por que você está chorando? O que aconteceu?
Não respondi. Apenas os puxei para um abraço apertado. Eles hesitaram por um momento, trocando olhares confusos, mas logo retribuíram o gesto. Ficamos assim por longos segundos, sem palavras. Apenas sentindo o calor um do outro.
Quando finalmente falei, minha voz saiu firme, sem hesitação:
— Não se preocupem. Estou bem. Nunca me senti melhor.
Tiago e minha mãe ainda tentavam entender a cena, mas no fim desistiram de perguntar. Apenas continuaram me abraçando. E, pela primeira vez em muito tempo, eu realmente me sentia em paz.
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