Matsura Ren

    Como todas as manhãs, eu me via diante do mesmo dilema: O que vestir hoje? Afinal, depois de tantas décadas percorridas, essa simples escolha tornava-se um desafio. A moda evoluiu, os tecidos mudaram, mas a nostalgia tem garras afiadas. Por mais que eu admire o dinamismo do século XXI, ainda sou profundamente enlaçada pelo charme das eras passadas.

    Para solucionar esse dilema, desenvolvi um pequeno ritual. Sobre minha cômoda repousa uma roleta envelhecida, cujos segmentos marcam as décadas que vivi – desde o ano do meu nascimento até os dias atuais. Um giro na roleta e o destino do meu figurino é selado. Assim, evito cair na mesmice e mantenho um fio de entretenimento em minha rotina imortal.

    Porque, quando não se pode morrer, e a alma está amarrada a uma floricultura mística, há poucas formas de se entreter. Criar pequenos jogos como esse se tornou uma necessidade – uma tentativa de tornar o eterno um pouco menos monótono.

    A roleta desacelera, oscilando levemente antes de parar. Inclino-me para ver o resultado.

    Um sorriso escapou dos meus lábios. Gosto dessa década. Exagerada, vibrante, cheia de ousadia. Caminho até meu closet, deslizando os dedos pelos cabides enquanto considero minhas opções. O que posso montar dessa vez?

    Enquanto analiso os tecidos, lembro-me de como era trabalhoso comprar roupas antes da praticidade das entregas online. Mas há algo de fascinante em reviver cada época, em vestir sua essência como se fosse minha pele. 

    Hoje, eu serei anos 80.

    ***

    Desço as escadas para o térreo. A loja, por alguma peculiaridade mística, é muito maior por dentro do que aparenta ser por fora. Mas há um detalhe que nem mesmo meus visitantes conseguem perceber, pois para eles existe apenas um único andar – o térreo. Jamais enxergam o andar superior, como se estivesse oculto por um véu invisível.

    Descobri isso há muito tempo, observando suas expressões confusas sempre que me viam surgir do que imaginavam ser um simples depósito. O olhar assustado, o breve arrepio antes da razão os convenceram de que apenas haviam se distraído por um instante. Eu me divirto com isso. Há algo fascinante na maneira como os olhos humanos se recusam a enxergar o que não compreendem.

    Meu visual de hoje já estava escolhido — não resisto à vibe dos anos 80, com todo aquele exagero e o caos colorido que simplesmente funciona. Coloquei uma calça vibrante, com listras em azul, amarelo e azul-marinho que se revezavam nas pernas de um jeito quase hipnótico. Pra arrematar, um cinto de listras rosa por cima da faixa amarela da cintura, só pra deixar tudo ainda mais chamativo. O cropped de mangas longas encaixava direitinho nos pulsos, num tom amarelo-pastel cheio de triângulos azul-marinho e rosa-claro, como pequenos fragmentos geométricos de uma era efervescente. Nos pés, meias rosa-choque pra dar aquele toque ousado, e um par de tênis marrons com detalhes brancos — talvez o único respiro de sobriedade no meio desse carnaval cromático.

    Os cabelos, pintados de rosa na última semana, estavam parcialmente trançados na frente, presos por chuchinhas coloridas que pareciam doces de goma espalhados entre os fios. Meus olhos traziam uma maquiagem intensa, sombras fundindo-se em um arco-íris vibrante, enquanto um brilho prateado cintilava próximo aos cílios, como se houvesse um pequeno universo reluzindo ali. Isso criava um contraste marcante com meus olhos verdes, realçando ainda mais sua intensidade.

    A cor do cabelo, no entanto, não era apenas uma escolha aleatória. Era outro dos meus passatempos – um pequeno ritual pessoal. Todos os meses, eu tingia os fios para combinar com o jogo de chá que usaria ao servir meus clientes. Ou melhor, aqueles de quem eu realmente gostava.

    Era um detalhe que ninguém nunca percebia. Mas eu sabia. E isso bastava.

    ***

    O aroma suave das ervas se espalhava pelo ar enquanto eu preparava a infusão do meu chá verde. O som delicado da água fervente preenchia o ambiente, criando um momento de tranquilidade quase meditativa. Então, a porta da floricultura se abriu.

    Meu corpo enrijeceu instantaneamente. Isso não deveria ser possível.

    Não havia removido os escudos que ocultavam a loja dos olhos curiosos. Ninguém deveria sequer perceber que este lugar existia, a menos que eu permitisse. Quem, então, teria conseguido entrar?

    Lentamente, me virei, avançando com passos cuidadosos em direção à entrada. Mas, ao ver quem estava ali, minha surpresa se transformou em um choque profundo.

    Diante de mim estava uma mulher de cabelos castanhos escuros, porte médio e olhos da mesma tonalidade. Sua presença emanava um tipo de elegância calculada, cada detalhe meticulosamente alinhado para transmitir uma imagem impecável. Vestia uma saia vermelha justa ao corpo, que descia até os joelhos, acompanhada por um salto baixo preto, amarrado delicadamente ao tornozelo. Um cinto de couro preto com uma fivela prateada marcava sua silhueta, e a blusa branca com decote em V trazia um equilíbrio entre sofisticação e naturalidade. Sobre tudo isso, um longo casaco azul, que ultrapassa a barra da saia, adornado com discretos botões nas laterais. Na mão direita, segurava uma pequena bolsa de alça.

    Quem a visse naquele instante a tomaria por uma empresária poderosa, talvez uma CEO de sucesso. Mas poucos enxergavam além da fachada. Poucos sabiam o que realmente se escondia sobre aquela aparência meticulosamente planejada.

    Ela era a mulher que, anos atrás, me ofereceu este “trabalho”. A responsável por todas as habilidades que agora eu carregava, pelo destino ao qual me via presa. Ainda assim, nunca compreendi completamente suas razões. Por que me escolheu? O que exatamente esperava de mim? Seus verdadeiros objetivos permaneciam tão insondáveis quanto sua presença era imponente.

    — Yrskandur, a Que Carrega os Fios.

    Fiz uma reverência contida. Apesar do gesto meu tom não saiu o que eu chamaria de amigável. Mesmo assim, vi seus lábios se curvarem em um sorriso. Eu, porém, continuei a encará-la com desconfiança.

    Eu não conseguia parar de me perguntar o que a trazia até aqui. Não era do feitio dela aparecer pessoalmente. Sempre enviava “outros” para tratar de qualquer assunto. Se estava aqui agora, algo extraordinário certamente teria ocorrido.

    A última vez que a vi, ainda fluía fresca em minha memória… foi no dia em que morri.

    — Helena — enfatizou com um toque dramático —Já disse para me chamar de Helena, o nome pelo qual os mortais me conhecem — fez um beicinho fingido, embora sua expressão revelasse mais humor do que verdadeira irritação. — Você é sempre tão formal comigo. Também trata seus clientes assim?

    — Como se você não soubesse — retruquei, cruzando os braços. — Mas é difícil imaginar que o destino teria um nome tão mundano… ou essa aparência. Aposto que os humanos jamais suspeitariam.

    — Seria um escândalo e tanto, eu diria.

    Ela riu, os olhos brilhando com um divertimento que nunca consegui decifrar.

    — Estou terminando de preparar um bule de chá verde. Quer me acompanhar?

    — Os seus chás são os melhores. Estava só esperando o convite. 

    Ela caminhou graciosamente até a mesa junto à janela, acomodando-se com a mesma naturalidade de alguém que se sentia dono do ambiente. Eu a observei por um instante antes de buscar as xícaras, um pouco de adoçante e alguns biscoitos que havia assado no dia anterior. Organizei a mesa com calma, retirando os utensílios que não seriam mais necessários.

    Somente então me sentei diante dela, sentindo no ar o peso de sua presença e a certeza de que aquela visita não era meramente uma cortesia.

    ***

    — Imagino que você não veio até aqui apenas para tomar chá.

    — Sim, você está certa — ela pegou um biscoito e mordeu com prazer.  — Hmm! Delicioso.

    Revirei os olhos e a encarei com uma sobrancelha levemente arqueada, tentando deixar claro que não estava disposto a brincar com seus jogos enigmáticos. No fundo, porém, eu sabia que era inútil — não obteria nenhuma resposta, a menos que ela decidisse oferecê-la por vontade própria.

    — Pelo visto, as coisas não acabaram bem para sua última cliente. Ela teve uma morte bem dolorosa.

    Seu tom casual contrastava com o peso das palavras. A garota estava morta. Então, eu diria que havia sido um final bem ruim — embora merecido.

    — Eu não faço nada que a própria pessoa não seja capaz de alcançar. Você, sendo a personificação do passado, presente e futuro, deveria saber disso melhor do que ninguém — respondi. Não queria soar rude, mas sentia que ela estava apenas me enrolando.

    — Sim. Você pune aqueles que tentam obter mais do que deveriam… e ajuda quem considera necessário.

    — Como eu disse, não fiz nada que não estivesse ao alcance dos meus clientes. Daniel tinha bons amigos no trabalho, mas sua insegurança o impediu de enxergar isso até ser tarde demais. Ele só precisava de um empurrão para confiar em si mesmo.

    — E quanto a Eleanor Lykaios? Ela estava destinada a morrer nas mãos do namorado, mas você impediu que isso acontecesse.

    — Eleanor se agarrou à comodidade de um relacionamento vazio e confundiu isso com amor. — pausei para tomar mais um gole do meu chá. — No fim, essa ilusão a levaria à morte. Tudo que fiz foi abrir seus olhos antes que fosse tarde. Reguei a semente de dúvida que já existia dentro dela. O destino era dela para mudar. Se, depois da nossa conversa, ela tivesse permanecido com Arthur, sua morte teria sido inevitável.

    — Assim como aconteceu em sua primeira vida.

    — Sim. As almas daqueles três estavam destinadas a se encontrar repetidamente e sofrer o mesmo fim. Mas, desta vez, Elen quebrou o ciclo. Ela finalmente pode viver sua história com Alex, algo que lhes foi negado antes por alguém obcecado demais para aceitar a realidade.

    — E quanto a Antônio? E, principalmente, Ashley? Os dois tiveram finais… interessantes. Você foi mais dura com eles.

    — Antônio não foi o principal culpado pela morte de Matias, mas foi a gota que fez transbordar o vaso — minha voz carregava um peso involuntário. — Naquele dia, ele passou bem em frente à minha floricultura. Quando o vi se afastar, soube que seu destino estava traçado.

    — É sempre uma pena quando pessoas como Matias partem. Mas você não foi imparcial. Levou Antônio até a Lótus Azul de propósito. Não era o destino dele vir aqui. Isso não foi um pouco… pessoal, você não acha?

    — Ele precisava encarar os próprios erros, e eu vi o peso do arrependimento em seus ombros.

    — Ele ainda cometeria muitos erros. A morte de Matias o marcaria profundamente.

    — Não era uma má pessoa, apenas tomou, e continuaria tomando, decisões ruins. 

    — Mesmo assim… já consigo enxergar uma grande mudança em seu caminho.

    — Sério?

    —Parece que aprendeu a lição. Vejo até no futuro ele dando o nome de Matias ao filho.

    — Isso não o trará de volta… Mas fico feliz que Antônio possa seguir em frente. Quem sabe, na próxima vida, eles se reencontrem.

    — Não se preocupe, eles vão. E sinto que pode acabar melhor na próxima vez.

    Sorri com isso. Se era ela quem dizia, provavelmente já havia planejado um reencontro marcante. Mas lembrando de outra questão, perguntei:

    — Por que você mandou aquela pirralha mimada à minha loja? Sabia que ela não tinha mais redenção do que ninguém.

    — Você não se esforçou muito com ela.

    — Eu não gosto de admitir, mas ela já estava perdida. Independente das minhas palavras.

    — Verdade.

    Então ela admitia ter feito de propósito. A questão era: por quê? O rumo daquela conversa começava a me incomodar.

    — Então, qual era o propósito? Queria ver como eu reagiria com pessoas como ela? Esse tipo de garota costuma me irritar… Estava me testando?

    O silêncio foi tudo o que obtive dela. O ar estava preenchido apenas pelo tilintar da xícara contra o pires e pelo estalar dos biscoitos se partindo.

    — Então, eu falhei?

    — Eu não disse isso.

    — Mas também não negou.

    — Para alguém presa a essa floricultura, você não parece tão amarga quanto no início.

    Ela mudou de assunto, e eu não insisti. Sabia que não conseguiria nada se ela não quisesse falar.

    — Aprendi a apreciar a vida de muitas maneiras com os meus clientes. Cada um diferente do outro, com experiências, desejos e ações únicas. Mas, no fim, todos tinham algo em comum. Eram humanos.

    Peguei um biscoito e sorri.

    — E essa é a parte mais bonita.

    Ela também sorriu, mas era um sorriso daqueles de quem já sabe a resposta antes mesmo de perguntar.

    — Serem humanos?

    — Mudança. Assim como as gerberas. Eles são capazes de mudar seu destino através das próprias escolhas. E mesmo com vidas efêmeras, sabem aproveitá-las. Isso é o que mais admiro.

    — Você ficou mais mole com o passar dos anos.

    Isso me tirou uma risada sincera. — Talvez você tenha razão.

    — E talvez esteja na hora de treinar um sucessor.

    — Já quer me aposentar? — coloquei a mão no peito, fingindo uma expressão ofendida.

    — Não. Você foi um dos melhores que já tive.

    — Mas…?

    Ela pousou a xícara no pires e me encarou com seriedade antes de soltar a bomba:

    — A pessoa que você está esperando logo vai chegar.

    A xícara escorregou dos meus dedos, estilhaçando-se no chão. Nem prestei atenção à bagunça. Meu rosto estava em choque. Pela primeira vez em mais de um século, eu não sabia como reagir.

    Como deveria me sentir?

    — V-você… tem certeza? 

    — Sim. Fui informada pelos superiores hoje cedo.

    Com aquela última revelação, senti meu peito afundar. O peso daquelas palavras era esmagador. Respirei fundo, tentando manter a compostura.

    — Preciso descansar um pouco — anunciei, levantando-me.

    Ela não questionou, apenas assentiu. Antes de me retirar, pedi que, ao sair, fechasse a porta e escondesse a floricultura. A Lótus Azul ficaria fechada por algumas horas.

    ***

    No quarto, a penumbra era cortada apenas pelo brilho suave de um lampião esquecido sobre a cômoda. O ar cheirava a terra úmida e pétalas frescas, um perfume familiar, quase reconfortante. Afundei-me no colchão da velha cama de casal, o corpo ainda tenso. Meus pensamentos se emaranhavam, tão desordenados quanto as videiras que crescem do lado de fora da janela.

    Então, senti um peso sobre meu estômago.

    — Salem… — murmurei, reconhecendo imediatamente o toque quente e macio da pelagem.

    O gato preto aninhou-se sobre mim, seu corpo esguio e elegante contrastando com o amarelo intenso dos olhos, duas fendas brilhantes na escuridão. Ele piscou lentamente, como se me estudasse, antes de encostar a cabeça sob minha mão, exigindo carinho.

    — Por onde você andou, menino? Faz um tempo que não te vejo.

    Passei os dedos por sua pelagem sedosa, sentindo o leve tremor do ronronar reverberar sobre minha palma. Salem sempre esteve comigo. Desde a minha morte. Desde que fui deixada nesta floricultura, ele me seguiu. No começo, tentei despistá-lo, mas ele sempre voltava. E ele me entendia, de uma forma que gatos comuns não deveriam.

    Demorei um tempo para perceber que Salem não era um gato qualquer. Depois de dividir um teto por mais de dez décadas, aprendi a reconhecer os pequenos sinais — os olhares carregados de compreensão, as reações à minha voz, os momentos em que parecia saber mais do que deveria.

    Com o tempo, descobri que, assim como eu, ele também carregava segredos. Talvez estivesse cumprindo algum tipo de punição. Ouvi murmúrios sobre isso certa vez, mas Salem nunca confirmou. Apenas me observava com aquela paciência felina, como se estivesse esperando algo.

    Às vezes, eu lhe dava tarefas simples — atrair clientes para a floricultura, por exemplo. Ele nunca falhava. Sempre sabia quem trazer.

    Um miado suave me trouxe de volta à realidade.

    — Não se preocupe, menino. Eu estava apenas… refletindo. Sentiu minha falta?

    Ele respondeu com outro miado, arrastado e preguiçoso. Ri, deslizando a mão por suas orelhas aveludadas.

    — Logo desço e te dou comida. Só… me deixe pensar um pouco no que fazer a seguir.

    Mas pensar era exatamente o problema.

    Esperei por tanto tempo. Por séculos. E agora que este dia finalmente chegou, eu não sabia o que sentir.

    Será que o perdão viria? Eu poderia salvá-la?

    Ou melhor… ela poderia me salvar?

    A verdade é que talvez a Lótus Azul estivesse prestes a dizer adeus depois de tanto tempo em serviço. E, pela primeira vez, eu não sabia se estava pronta para isso.

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