Isabel González

    Caminhava sem rumo, perdida em pensamentos. O semblante abatido e a cabeça baixa denunciavam o peso que carregava no peito. O resquício de lágrimas ainda embaçava minha visão, e meu corpo tremia levemente pela exaustão.

    Meus passos eram automáticos, mas minha mente estava longe dali, presa ao hospital onde, horas antes, recebi a notícia que mudaria tudo. Minha mãe precisava de um transplante de medula óssea com urgência. Sem ele, ela não sobreviveria. E, até agora, ninguém compatível havia sido encontrado.

    Essa incerteza me dilacerava.

    Eu a amava mais do que qualquer coisa. Não podia perdê-la. Mas o destino parecia zombar de mim, impondo barreiras a cada tentativa de salvá-la. O cansaço pesava sobre meus ombros com noites em claro, campanhas incessantes na internet para arrecadar dinheiro, ligações para bancos de medula e laboratórios, sempre na esperança de uma resposta positiva.

    Algumas pessoas foram gentis, doaram, ofereceram palavras de conforto. Outras, cruéis, me acusaram de estar mendigando dinheiro. Como se minha dor pudesse ser mercantilizada, como se a vida da minha mãe tivesse preço. Mas nada disso se comparava ao verdadeiro sofrimento. Acompanhá-la nas sessões de quimioterapia, segurando sua mão enquanto a medicação corria por suas veias, deixando-a pálida, debilitada, lutando contra a própria biologia.

    Leucemia mieloide aguda. O diagnóstico soou como uma sentença. Inicialmente, os médicos tentaram o protocolo quimioterápico, mas o câncer foi resistente. Restava apenas o transplante de medula óssea.

    Diferente de um transplante renal, no qual a compatibilidade pode ser parcial, o transplante de medula exige uma correspondência de 100% no HLA, o sistema de antígenos leucocitários humanos. Qualquer desajuste poderia desencadear a rejeição do enxerto ou a temida Doença do Enxerto contra o Hospedeiro (DECH), uma complicação potencialmente fatal.

    A busca por um doador compatível se tornou minha obsessão. Fiz testes, procurei parentes distantes, recorri a cadastros nacionais e internacionais. 

    Nada.

    Eu estava desesperada. Tão desesperada que abandonei minha faculdade de enfermagem para trabalhar em tempo integral. As contas se acumulavam – consultas, exames, viagens. A cidade onde moramos não tem um centro oncológico adequado, então, cada ida ao hospital significava dirigir por duas horas até o município mais próximo.

    Nos últimos dois meses, a situação piorou drasticamente. Minha mãe precisou ser internada indefinidamente, até o transplante acontecer. Ou até que.… A alternativa que me recusava a aceitar. Que o estado dela vem piorando nas últimas semanas. 

    Hoje, os médicos me deram um ultimato:

    — Vou ser direto. Sem um transplante imediato, o tempo dela é curto. Talvez alguns dias, talvez semanas… mas, a cada dia sem um doador, as chances de sobrevivência diminuem.

    Mas eu não consegui ouvir nem metade. Minha mente se fechou, e meu corpo cedeu ao desespero. Lágrimas silenciosas escorriam antes que eu desabasse por completo, paralisada pelo pânico.

    ***

    Saí do hospital para almoçar, ou pelo menos tentar. Meu estômago estava embrulhado, e a simples ideia de comida parecia absurda, mas precisava sair dali. O ar frio da rua me envolveu, um contraste gritante com o calor opressivo da ala hospitalar. Inspirei profundamente, tentando limpar a mente, mas tudo o que encontrei foi o peso esmagador da incerteza. Precisava de ar, de algo que aliviasse a pressão no peito. Precisava rezar, mesmo sem saber as palavras certas, mesmo sem nunca ter sido religiosa. Precisava, acima de tudo, de um milagre, um fio de esperança ao qual pudesse se agarrar antes que tudo desmoronasse de vez.

    Foi então que o mundo pareceu ouvir meus lamentos. Eu havia parado em uma esquina quando notei uma loja diferente. A porta, de madeira robusta — talvez carvalho — ostentava entalhes detalhados de diversos tipos de flores. Acima dela, uma placa do mesmo material exibia a inscrição “Lótus Azul”, pintada com letras elegantes. A fachada lembrava aquelas vendas medievais dos filmes, com um ar nostálgico e misterioso.

    Eu sempre gostei de lugares assim, antiquários e lojas peculiares. Era fascinante observar os objetos antigos, imaginar suas histórias, mesmo sem a intenção de comprar nada. E naquele momento, eu precisava de uma distração.

    Ao atravessar a soleira, senti meu fôlego falhar. O espaço era muito maior do que aparentava do lado de fora. A luz filtrava-se por um vitral colorido, banhando as plantas com um brilho etéreo. O ar era preenchido pelo perfume de flores frescas, e algo indefinível, quase mágico. O chão estava tomado por vasos de todos os tamanhos, e as prateleiras de madeira sustentavam mudas de ervas, flores raras e pequenos bonsais.

    Definitivamente, não era um antiquário. Talvez uma floricultura? Mas algo me dizia que era mais do que isso.

    — Nunca vi um lugar mais mágico… 

    — Fico grata por tamanho elogio.

    O susto quase me fez derrubar um dos vasos ao ouvir uma voz surgir atrás de mim. Eu jurava que estava sozinha. Quando me virei, dei de cara com uma mulher de beleza hipnotizante. Ela parecia ter apenas alguns anos a mais que eu, mas havia algo de etéreo nela, algo que fugia às convenções do tempo.

    Seu sorriso delicado desfez-se em surpresa ao me ver, e por um instante, pareceu perdida em seus pensamentos. Ela segurava uma bandeja de porcelana com um jogo de chá branco adornado com flores vermelhas alaranjadas, como folhas outonais.

    E, por algum motivo, não gostei de vê-la perder aquele sorriso. 

    Seu traje era impecável: calça preta de cós alto com três botões dourados, uma blusa branca de mangas longas ligeiramente bufantes após os cotovelos, presa por um laço negro com um único botão dourado. Em seu pulso, um relógio discreto. E seu cabelo, de um ruivo vibrante como o próprio outono, estava preso em um coque delicado.

    — Você está bem? — perguntei, tentando quebrar o silêncio estranho. — Quer ajuda? Se precisar, posso buscar alguém.

    — Não! — sua voz saiu mais alta do que o esperado, fazendo-me congelar com a mão na porta. — Quero dizer… Não precisa. Apenas me distraí. Lembrei que minha filha viria me visitar… e eu não preparei nada apropriado para ela.

    A explicação pareceu estranha, mas resolvi ignorar.

    — Ah… entendi. Se você diz que está tudo bem. 

    — Sim, deve ser apenas ansiedade da espera — ela caminhou até uma pequena mesa redonda próxima ao vitral e depositou a bandeja com movimentos cuidadosos. — Aceitaria um chá? Você está pálida. Um pouco de açúcar no sistema pode te fazer bem.

    Não sei ao certo o que me impulsionou a aceitar. Talvez fossem aqueles olhos verdes, enigmáticos, que pareciam enxergar além do óbvio. Ou talvez o tom sincero de sua voz, um convite reconfortante. De qualquer forma, quando percebi, já estava sentada, segurando uma xícara fumegante.

    Curiosamente, isso não me incomodava. Pelo contrário, sentia que estar ali era a coisa certa a se fazer.

    — As flores aqui são incríveis, nunca vi nada parecido… Na verdade, todo o lugar tem uma atmosfera especial. Deve ter sido uma reforma e tanto.

    — Deu menos trabalho do que você imagina — ela sorriu, observando as flores com carinho. — Às vezes, acho que me acostumei com este espaço. Mas, quando ouço as descrições dos clientes, sinto como se o visse pela primeira vez de novo.

    — Deve ser uma sensação maravilhosa.

    — Indescritível.

    Por um instante, apenas o som da porcelana encontrando o pires preencheu o espaço. Então, sua voz cortou o silêncio:

    — Você parece melhor. Suas bochechas ganharam mais cor.

    — Sério? Parece que o chá funcionou, então. — sorri, sentindo um calor leve percorrer meu rosto.

    Ela inclinou a cabeça, avaliando-me com doçura. — Posso te perguntar por que está tão aflita?

    Fiquei em dúvida se deveria contar, mas havia algo nela que inspirava confiança. Era como se sua presença emanase um calor maternal, algo que fazia com que esconder minha dor parecesse desnecessário.

    — Por onde eu começo… — soltei um suspiro pesado, enterrando o rosto entre as mãos. — Estou desesperada. Minha mãe está doente. Leucemia. Ela está na fila para um transplante de medula óssea.

    Um brilho de compreensão cruzou seus olhos.

    — Eu… sinto muito, querida — ela pousou a mão em meu ombro, apertando minha mão esquerda com firmeza. — Isso deve estar sendo muito difícil para você.

    Aquelas palavras, tão genuínas, abriram as comportas da minha dor. As lágrimas vieram sem controle.

    — Se não encontrarmos um doador compatível este mês… os médicos disseram que ela não tem chances…

    Não consegui terminar. Me desfiz em soluços, e ela me puxou para um abraço.

    — Vai ficar tudo bem, querida. Tenha fé. — sua voz era um sussurro, mas carregava a promessa de algo maior.

    ***

    Fiquei nos braços dela até que meus soluços se tornaram apenas respirações trêmulas. O calor do abraço era reconfortante, mas, assim que me afastei, a vergonha se instalou. Naquele momento de desespero, parecia tão natural me apoiar nela, mas agora… agora eu me sentia exposta.

    — D-desculpe por isso. — funguei, limpando rapidamente o rosto.

    Ren sorriu de leve e, com um gesto delicado, enxugou uma última lágrima que ainda escorria.

    — Não há nada para se desculpar — sua voz era gentil, mas firme. — Sua mãe está doente. Você tem todo o direito de se sentir assim, Isabel.

    — Eu sei… mas, ainda assim, sinto muito.

    Foi só então que me dei conta. Como ela sabia o meu nome?

    — Como você…?

    — Isabel? Você murmurou quando chegou. Acho que nem percebeu. Mas, de qualquer forma, é um belo nome.

    Assenti, desviando o olhar. Ela riu de forma sutil.

    — Obrigada… e o seu?

    — Ren. Sou a proprietária da Lótus Azul.

    — Ren… — repeti, sentindo o nome na língua. — Tem algum significado?

    — Sim. Meu nome vem da flor de lótus. Significa resiliência. É uma flor que nasce mesmo na lama, resistindo a tudo.

    — Uau! isso é profundo. — comentei, impressionada. — De alguma forma, sinto que combina com você.

    Ren inclinou a cabeça, um brilho enigmático no olhar.

    — E o seu nome também tem um significado bonito. Isabel vem de “promessas” ou “promessa de Deus”.

    — Sério? Eu nem sabia disso.

    — Agora sabe.

    Um silêncio confortável pairou entre nós, preenchido apenas pelo aroma suave das flores ao nosso redor.

    — Ah! — falei, só então percebendo. — O nome da floricultura… Lótus Azul… é por causa do seu nome?

    Ren riu, um som suave e musical.

    — Pode-se dizer que sim. Um pouco narcisista, não acha?

    — Um pouco. — brinquei, rindo junto com ela.

    E foi ali, naquele instante, que percebi o quão surreal era tudo isso. Eu tinha acabado de conhecer aquela mulher, mas parecia que nos conhecíamos há anos. Havia algo nela… algo familiar, algo seguro.

    O tempo passou rápido, e quando notei, o céu já começava a tingir-se de tons alaranjados.

    — Acho melhor ir. — levantei-me, um pouco a contragosto.

    — Volte sempre, Isabel.

    Embora houvesse um sorriso em seu rosto, seus olhos diziam outra coisa — algo que eu não conseguia decifrar.

    — Eu vou. Prometo.

    E, pela primeira vez em muito tempo, uma promessa minha parecia carregar algo além de palavras.

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