Epílogo
Ren sentiu um frio percorrer sua espinha assim que seus olhos pousaram sobre o leito da mulher. O tempo havia passado, os traços haviam mudado, mas a essência… aquela essência era inconfundível.
Não havia dúvida. Era ela!. A mulher que, em outrora, havia sido sua ruína.
Contudo, a mesma não a reconheceu. Seu olhar não carregava as mesmas cicatrizes. Para ela, Ren não passava de uma estranha, e isso a corroía por dentro. Como podia? Como podia seguir em frente sem o peso daquilo que aconteceu? Como podia viver uma nova vida, enquanto ela ainda carregava as marcas do passado como se tivessem sido feitas ontem?
Parte de Ren queria que ela lembrasse. Que sentisse tudo o que ela sentia. Que fosse consumida pela culpa, pelo arrependimento, pelo desespero. Porém agora, com os fios do destino se entrelaçando diante dela, Ren percebeu algo perturbador. O destino que precisava ser mudado não era o de sua filha.
Parecia que durante décadas ela acreditava fielmente que sua missão era clara: proteger sua filha. Salvar aquela menina de um destino trágico. Assegurar que ela tivesse uma vida melhor do que a sua. Porém agora, com os fios do destino se entrelaçando diante dela, Ren percebeu algo perturbador. O destino que precisava ser mudado não era o de sua filha.
Era o seu.
E para salvá-la, Ren precisaria se libertar do passado. Precisaria perdoar. Não para dar paz àquela mulher. Mas para dar paz a si mesma.
O ódio se misturava ao alívio.
Sua filha estava segura agora. Não precisava mais dela. Era difícil aceitar, mas também libertador. Pela primeira vez, podia ver com clareza que uma nova vida se abria diante da menina. E ali, naquele instante silencioso, o ciclo de dor e vingança finalmente chegava ao fim.
Não com sangue…
Não com sofrimento…
Mas com uma escolha.
Uma escolha que a definiria. Não pelo que sofreu, mas pelo que faria com isso.
***
— Vejo que já tem sua resposta.
A nova voz cortou o silêncio como uma lâmina afiada. A mulher que surgirá mantinha uma postura impecável. Os cabelos castanho-escuros, presos em um coque baixo, realçam os traços refinados do rosto. Os olhos, da mesma tonalidade, eram afiados, avaliadores, como se enxergassem o mundo com uma calma fria e controlada. O terno cinza-claro ajustava-se perfeitamente ao seu corpo, e a camisa branca acrescentava um toque de sofisticação discreta. Os saltos pretos tilintavam suavemente contra o chão de porcelanato do hospital enquanto ela se aproximava.
— Você planejou tudo isso, não foi? Bem, eu não deveria estar surpresa, no fim das contas, você sempre gostou desses jogos sádicos e enigmáticos.
Um sorriso debochado surgiu em seus lábios, logo antes de ela exagerar na cena, levando a mão ao peito como uma atriz no auge da dramaturgia.
— Que coisa feia ao me acusar de causar câncer em uma pobre mulher!
— Sabe bem do que estou falando — retrucou, seca. Seus olhos se estreitaram. — Colocar minha filha nesta vida, tendo laços de sangue com a mulher que causou minha morte… Foi uma jogada de mestre, devo admitir.
A outra inclinou a cabeça ligeiramente, como se saboreasse aquelas palavras.
— Achei que seria uma reviravolta interessante. Porém, confesso que esperava mais… não sei… revolta da sua parte?
— Se queria uma reação assim da minha parte, deveria ter feito antes — respondeu, firme. Sua expressão suavizou levemente ao continuar. — Depois de conhecer tantas pessoas, percebi a vida de outra maneira…
— E…? — a outra incentivou, com um brilho curioso nos olhos.
Ren suspirou.
— A pessoa que eu odiava não estava naquela cama. Aquela já se foi. Agora… agora é outra. Hoje, nos olhos da minha filha, eu vi o amor que ela sente por essa mulher.
— Um amor que deveria ter sido seu.
Ren sorriu, sem humor.
— Um amor que não pude experimentar por tanto tempo. Mas sei que ela está bem cuidada… e isso, para mim, é o que realmente importa.
— Então você vai deixar seu ódio para trás?
Um silêncio se instalou entre elas. Ren desviou o olhar, encarando um ponto fixo no chão. Sua voz saiu mais baixa, quase um sussurro.
— Confesso que pensei que nunca seria capaz de fazer isso. Mas quando vi minha filha aos prantos, apenas pelo medo de perdê-la… me causou uma dor insuportável no peito. — ela respirou fundo antes de continuar. — Prefiro vê-la feliz. Mesmo que isso signifique engolir meu orgulho e aceitar essa mulher. Por ela, sou capaz de tudo.
O destino a observou por um instante, avaliando cada nuance de sua expressão. Então, abriu um sorriso enviesado.
— Você realmente mudou, Ren.
— Parece que você vai ter que arrumar um novo negócio — disse, rindo de leve.
A mulher soltou uma risada baixa e murmurou, quase nostálgica:
— Uma pena. Seu chá era divino.
***
— Você pode entregar a ela?
Ren estendeu um buquê de anêmonas para Yrskandur. A outra pegou as flores com cuidado, os dedos deslizando suavemente pelas pétalas delicadas.
— Claro. Mas por que você mesma não as entrega? Ainda há tempo.
Ren baixou os olhos, a voz saindo mais baixa, quase um sussurro. — Se eu a visse pessoalmente, não conseguiria dizer adeus. É melhor assim.
Yrskandur a observou por um instante, avaliando suas palavras. Então, assentiu. — Se é isso que quer, respeito sua decisão.
— Obrigada.
Elas deixaram a loja, e o cheiro de flores secas misturado ao leve aroma amadeirado impregnava o ar. As prateleiras de madeira já mostravam sinais de podridão, um lembrete de que a magia que sustentava aquele lugar estava se dissipando… assim como sua dona.
Ren parou à porta, fitando o interior da loja com uma expressão carregada de nostalgia.
— Vou sentir falta disso… Foram muitas memórias aqui. — a melancolia pesava em sua voz.
— Imagino — respondeu pousando uma mão em seu ombro, um gesto de compreensão. — Foi muito gentil da sua parte doar seu guarda-roupa e os pertences mais preciosos.
Ren deu de ombros. — Não é como se eu fosse precisar deles para onde estou indo.
O comentário arrancou um riso leve das duas.
— Bem, hora de ir… — antes que pudesse terminar a frase, um ronronar baixo desviou sua atenção.
— Parece que quase esquecemos de alguém.
Ren se virou e encontrou Salem ali, encarando-a com olhos brilhantes e intensos.
— Salem? O que está fazendo?
O gato não respondeu, apenas se aninhou ainda mais próximo, como se temesse que ela desaparecesse a qualquer instante. Ren suspirou, agachando-se para passar a mão pelo pêlo macio.
— Garoto… sinto muito, mas já está na minha hora. Tivemos muitos momentos juntos, mas eu preciso ir. Não posso levá-lo comigo.
— Eu discordo dessa última parte.
— O que quer dizer com isso?
— Você sabe que Salem não é apenas um gato, certo? Ele é uma alma presa… como você. Só que, em vez de estar ligada a uma floricultura, a prisão dele é esse pequeno corpo felino.
— Eu tinha minhas suspeitas, por causa das conversas soltas que ouvi de seus servos sobre ele. Mas nunca aprofundei nem fui atrás de confirmação… E o que isso importa agora?
— Humanos nunca vão além do que querem acreditar — suspirou, exasperada. — Sério? Nunca achou estranho Salem aparecer justamente quando você morreu? Sempre te seguindo, sem nunca se afastar?
— Espera! — exclamou, arregalando os olhos. — Está insinuando que eu o conheci em vida?
— Não estou insinuando, estou afirmando — cruzou os braços. — Essa pessoa me implorou para permanecer neste mundo. Para esperar por você. Salem, como você o chamou, passou décadas aguardando apenas uma única alma para poder partir.
O coração de Ren acelerou. Uma onda de choque e incredulidade a percorreu. Quem poderia ser essa pessoa? Sua filha já havia reencarnado, era a razão de sua liberdade agora… Então, quem?
Yrskandur inclinou a cabeça levemente, um sorriso enigmático surgindo nos lábios. — Se quer uma dica… essa pessoa morreu no mesmo dia que você.
A ficha caiu. Seus olhos se arregalaram, e ela cambaleou para trás, caindo de joelhos no chão. O gato não hesitou e saltou para seu colo, pressionando a cabeça contra seu peito. Ela ficou imóvel por um instante, sentindo a respiração pesada, descompassada. Então, finalmente, um sussurro escapou de seus lábios:
— Como fui tão tola por não perceber antes… Todo esse tempo… era você quem me acompanhava.
Seus braços se fecharam ao redor do gato, apertando-o com força. Salem miou baixinho e lambeu seu rosto, arrancando-lhe um sorriso.
— Mas… também foi arrependimento, não foi?
Seus movimentos cessaram ao fixar aqueles olhos amarelos intensos que sempre haviam chamado sua atenção. Ela buscava algum sinal de que havia adivinhado certo, e o gato, para seu conforto, ronronou, como se confirmasse. Isso lhe arrancou um suspiro, antes que ela voltasse a afagá-lo com delicadeza.
— Bem, não importa. Parece que estamos mais ligados do que eu gostaria de admitir… e agora, vamos para o além juntos.
— Romântico não acha.
As palavras de Yrskandur tinham mais um tom de zombaria que real admiração. Mas como sempre aprendeu nesses anos apenas ignorou essas entidades ultra poderosas e seus modos retorcidos de pensar.
As palavras de Yrskandur carregavam mais zombaria do que verdadeira admiração. Mas, como aprendeu ao longo dos anos, ela simplesmente ignorava esses seres onipotentes e onipresentes com seus modos retorcidos de pensar.
— Como sempre, nunca entendo seus planos. Mas, a essa altura, já estou acostumada — murmurou, se levantando com Salem aconchegado em seus braços.
— Bem, não quero ser estraga-prazeres, mas está na hora de irmos. E quanto à flor? Tem certeza de que não quer entregá-la pessoalmente?
Ren lançou um último olhar atento ao buquê, certificando-se de que a carta e o cartão estavam bem acomodados, prontos para serem encontrados no momento certo. Queria muito estar lá para dar uma última olhada em sua preciosa menina. Porém, sabia que, se ficasse mais tempo, acabaria em lágrimas ou tomada pelo ressentimento de partir.
Aquele tempo já não lhe pertencia, assim como a alma daquele corpo. Era hora de seguir em frente, mesmo que o coração ainda pesasse na despedida.
— Sim, tenho certeza. Já tomei minha decisão.
— E como espera que eu a veja e entregue sem que ela saiba de nada?
— Não me engane. Você tem seus truques. Isso é o de menos para alguém como você.
— Você me dá muito crédito.
Ren deu de ombros e caminhou em direção à saída da loja. Elas se voltaram para o lugar uma última vez, vendo-o se desfazer diante dos seus olhos. Um reflexo das décadas ali vividas, das memórias que se dissipavam como fumaça.
E então, partiram. Sem olhar para trás.
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