Capítulo 5: Acônitos (Parte I)
Ashley Wilson
Quarta-feira, 09:13 pm.
A chuva caía impiedosa sobre a cidade, tamborilando contra os telhados e transformando as ruas em um mosaico de reflexos trêmulos. O vento uivava entre os prédios, dobrando placas de trânsito e fazendo os semáforos oscilarem em um balé caótico. As ruas estavam quase desertas, exceto pelos faróis solitários de veículos que cruzavam o asfalto encharcado — trabalhadores exaustos voltando para casa, motoristas correndo contra o tempo para compromissos inadiáveis.
Entre eles, um carro de luxo jazia imóvel no acostamento, prisioneiro da tempestade. O pneu furado o tornava inútil, e a força da chuva tornava impossível qualquer tentativa de conserto. Dentro do veículo, a atmosfera era sufocante, carregada de impaciência e desdém.
No banco da frente, o motorista mantinha as mãos firmes no volante, encarando a cortina de água à frente como se pudesse ignorar o que estava acontecendo atrás dele. No banco traseiro, com os braços cruzados e uma expressão que oscilava entre tédio e irritação, estava Ashley Wilson, a filha única de um magnata da indústria da moda. Seu pai havia acabado de lançar uma nova linha de bolsas exclusivas — luxo que ela usava como armadura e símbolo de status.
— Aff! Eu não posso acreditar que isso está acontecendo! — exclamou Ashley, revirando os olhos. Seu tom era um misto de frustração e desprezo, como se o universo estivesse cometendo um ultraje pessoal contra ela. — Por que você simplesmente não sai e troca esse maldito pneu?!
O motorista respirou fundo antes de responder, contendo o suspiro que ameaçava escapar.
— Senhorita, com essa chuva, não há como. Não enxergo um palmo à frente, e há o risco de o carro ser arrastado pela correnteza.
Ashley bufou, jogando a cabeça para trás no banco de couro macio.
— Desculpas. Só o que eu ouço são desculpas!
O motorista manteve-se em silêncio. Ele já conhecia aquele jogo. Sabia que qualquer resposta apenas prolongaria a discussão. Seu emprego dependia disso, e ele não pretendia perder o sustento por causa das birras de uma garota que jamais conheceu um “Não” na vida. Ashley Wilson era um veneno disfarçado de gente, mimada até o osso e cruel com quem julgava inferior.
Exasperada, a garota virou o rosto para a janela, observando a cidade ser lavada pela tempestade. O vidro embaçado distorcia as luzes dos postes, transformando-as em halos tremeluzentes. O tédio a corroía. Tentara puxar assunto com o motorista, mas ele se limitava a respostas monossilábicas — como se sequer a considerasse digna de sua atenção.
Então, algo capturou seu olhar.
Na esquina, espremida entre prédios de aparência desgastada, uma pequena loja se destacava no meio da escuridão. Era um lugar que jamais teria chamado sua atenção em outro momento, mas agora, envolto pela chuva e pelo frio, parecia quase hipnotizante. A vitrine estava iluminada, e atrás do vidro embaçado, vasos, buquês e arranjos florais repousavam como pinturas vivas. Flores de cores intensas, delicadas e vibrantes, pareciam ignorar o caos da tempestade lá fora.
Ashley não sabia dizer o que a atraía ali. Se eram as cores, a luz aconchegante ou apenas o desejo de escapar do confinamento sufocante do carro.
— Eu já volto. Não suporto mais ficar enfurnada aqui.
O motorista virou-se para encará-la pelo retrovisor.
— Com esse tempo, senhorita? Aonde pretende ir?
— Não me estresse. Vou me abrigar naquela loja e talvez comprar alguma coisa — ela estalou os dedos, impaciente. — Pegue o guarda-chuva e me leve até lá. Agora.
O homem hesitou por um breve segundo, mas não houve discussão com Ashley. Resignado, pegou o guarda-chuva, saiu do carro e abriu a porta para ela, protegendo-a como um escudo humano contra a tempestade.
Ashley desceu, ignorando a chuva que respingou em seus sapatos caros. O ar estava gelado, e o cheiro da terra molhada misturava-se ao asfalto encharcado. Ela ajeitou a postura, ergueu o queixo e caminhou até a loja sem olhar para trás. O motorista seguiu seus passos logo atrás com o guarda-chuva para protegê-la.
Ashley desceu do carro, indiferente à chuva que respingou em seus sapatos caros. O ar frio carregava o aroma da terra molhada misturada ao asfalto encharcado. Com um gesto sutil, endireitou a postura, ergueu o queixo e avançou em direção à loja, sem jamais olhar para trás. Atrás dela, o motorista a acompanhava em silêncio, segurando o guarda-chuva para protegê-la.
O motorista a observou por um instante enquanto ela desaparecia porta adentro, então soltou o suspiro contido e voltou ao carro. Naquele momento seu único pensamento foi para que Deus tivesse misericórdia daquele que se encontrasse porta a dentro… porque a garota não teria.
***
Os trovões reverberaram pelo céu, sacudindo as vidraças com sua fúria elétrica. Um raio rasgou a escuridão lá fora, e no exato momento em que sua luz esmaecia, a porta da floricultura se abriu.
Ashley entrou como se fosse dona do lugar, ignorando a chuva que gotejava do guarda-chuva recém-fechado pelo motorista. Seu casaco de pele de panda e os sapatos de couro combinavam com sua postura altiva, exalando luxo e um gosto exagerado pelo extravagante. Para ela, não havia nada mais sofisticado do que o toque da pele verdadeira em sua roupa.
Seus olhos percorreram o interior da loja com uma expressão de ceticismo. Esperava um cubículo empoeirado, mas encontrou um espaço que parecia maior do que permitia a modesta fachada externa. As prateleiras se estendiam pelas paredes, repletas de vasos e pequenas mudas de árvores. Cascatas de plantas pendiam do teto como cortinas vivas, os galhos trançados em arabescos naturais. As vigas de madeira, embora rangentes, transmitiam uma elegância rústica. A iluminação suave e os aromas florais davam ao lugar uma aura quase mágica — como um daqueles jardins secretos dos filmes infantis que assistia na infância.
Ashley deslizou uma mão por uma das prateleiras, franzindo o nariz ao inspecionar os dedos. — Nada mal para um lugar brega desses.
— Fico feliz que tenha superado suas expectativas.
A voz inesperada cortou o silêncio com a precisão de uma lâmina. Ashley sobressaltou-se, levando uma mão ao peito, e virou-se com um olhar fulminante. De pé entre as sombras do corredor interno, como se tivesse emergido do próprio cenário, estava Ren.
A luz suave das luminárias destacava o tecido pesado de sua yukata preta, opaca como o breu da meia-noite, cujas mangas longas e retas caíam em cascata, dando-lhe ares de uma sacerdotisa das trevas. A vestimenta, tradicionalmente usada em funerais, exalava um luto silencioso, como se a própria dona carregasse um presságio.
A faixa branca ao redor de seu torso, um obi simples e sem adornos, era amarrada em um laço retangular nas costas — um nó característico das mulheres de luto, rígido e sem ornamentação, reforçando a sobriedade do traje. O contraste entre o preto absoluto da vestimenta e o branco puro do obi evocava um equilíbrio sombrio entre a vida e a morte, como se ela mesma estivesse à beira de ambos os mundos.
Seus pés eram cobertos por meias brancas impecáveis, os tornozelos esguios sustentados pelos tradicionais geta de madeira escura. A cada movimento, os sapatos de solado elevado ecoavam um som seco e ritmado contra o chão de madeira, como batidas de um tambor fúnebre. No entanto, os olhos de Ren eram o verdadeiro espetáculo, um verde profundo, quase hipnotizante, que brilhava sob a luz branda do ambiente.
Mas o que realmente prendia a atenção era seu cabelo, dividido em dois tons extremos, metade branco, metade negro. Um contraste tão dramático que fez Ashley franzir o cenho. Cruella do Paraguai, pensou, mordendo um sorriso debochado.
— Bem-vinda à Floricultura Lótus Azul. Sou Ren, a proprietária — sua voz era suave, mas carregava um peso velado, como quem não faz questão de se dobrar diante de presenças indesejadas. — O que posso fazer por você hoje?
O olhar de Ashley se estreitou. — Vim esperar a chuva passar. E para sua sorte, talvez até compre algumas flores — seu tom transbordava de superioridade, como se estivesse praticando caridade. — Considere isso um favor.
Ren não moveu um músculo, mas algo nos olhos dela cintilou, como se soubesse exatamente quem Ashley era e não gostasse nada do que via.
— Que alma generosa — sua boca curvou-se em um meio sorriso quase imperceptível. — Imagino que flores não sejam um presente para alguém, então? Ou estou enganada?
A loira riu, um som vazio e carregado de desdém. — Por favor, eu não preciso dar flores para ninguém. As pessoas fazem fila para me agradar, não o contrário.
A mulher de traços asiáticos inclinou a cabeça levemente, como um felino estudando sua presa. — Curioso. Sempre pensei que aqueles que precisam provar seu valor a cada instante fossem, na verdade, os mais inseguros.
O ar ficou pesado. Ashley sentiu o golpe nas entrelinhas e apertou os lábios. — O que você está insinuando?
— Nada além do óbvio. — Ren passou as mãos por um delicado arranjo de lírios brancos, ajeitando suas pétalas. — Alguém que veste um animal morto para se sentir poderosa… bem, isso fala mais sobre a pessoa do que qualquer coisa que ela possa dizer.
Ashley arregalou os olhos, indignada. — Do que você está me chamando?!
Ren finalmente olhou diretamente para ela, seu olhar tão afiado quanto uma lâmina recém forjada. — De alguém que deveria tomar cuidado com o caminho que escolhe trilhar.
A garota soltou uma risada forçada. — Ah, por favor, não me venha com sermões de hippie. Esse papo de “equilíbrio com a natureza” e “respeito à vida” é para quem não tem dinheiro o suficiente para ditar as regras do jogo.
Ren sorriu, mas foi um sorriso frio. — Engraçado. O destino nunca se importa com o saldo bancário de ninguém. Ele apenas cobra o que lhe é devido.
Por um instante, Ashley sentiu um arrepio percorrer sua espinha, mas disfarçou com uma risada mordaz. — Você é esquisita, sabia?
Ren apenas inclinou a cabeça, como se a estivesse medindo. — E você é previsível.
Ashley sentiu o sangue ferver. — Vou pegar as malditas flores e sair daqui. Você é insuportável.
Ren deu um passo para o lado, abrindo caminho. — Fique à vontade. Mas escolha bem. Algumas flores representam finais abruptos.
A frase, dita com suavidade quase letal, fez Ashley hesitar por um instante. Mas, como sempre, ela afastou qualquer desconforto com arrogância e seguiu em frente. Ren apenas observou, seu olhar verde brilhando como um presságio.
***
A porta do carro foi escancarada e, num golpe de pura fúria, Ashley entrou, batendo-a com tanta força que o vidro tremeu. O impacto ecoou pelo interior do veículo como um trovão tardio. Seus dedos esmaltados cravaram-se no estofamento de couro enquanto ela arremessava um buquê de flores violetas sobre o banco ao lado, como se aquele arranjo carregasse toda a sua frustração.
O motorista, que a aguardava pacientemente, virou-se com alívio. Seu smoking de trabalho estava encharcado, grudando-se ao corpo como uma segunda pele. As calças sociais estavam manchadas de lama, especialmente na altura dos joelhos, evidência clara do esforço que fez para trocar o pneu no temporal. Seus sapatos, outrora impecáveis, agora eram apenas sombras de elegância, afundados na sujeira.
— Senhorita, que bom que voltou, — ele disse, forçando uma calma que não sentia. — Agora que a chuva diminuiu, consegui trocar o pneu. Estava prestes a chamá-la….
Ashley o cortou com um olhar gélido, os olhos faiscando com desprezo. — Eu não dou a mínima para os seus problemas, — cuspiu, cruzando os braços. — Você deveria ter resolvido isso antes! É para isso que é pago, não para ficar se lamentando como um inútil!
O homem apertou o volante, engolindo qualquer resposta. Seu salário dependia do silêncio.
Ela virou o rosto para a janela, tentando ignorar a sensação crescente de raiva. Mas então, seu olhar pousou no buquê de acônitos repousando sobre o banco ao lado. A lembrança de sua última troca de palavras com a florista veio como uma lâmina fria:
— Acônitos, — aquela mulher havia sussurrado, com aquele maldito sorriso enigmático. — Você os escolheu bem. São flores belíssimas… e letais. Antigamente, envenenavam reis e traidores com elas. Um buquê digno de alguém como você.
A loira sentiu o sangue ferver. A audácia daquela mulher! A florista falara com um tom doce demais, mas as palavras estavam impregnadas de um veneno que a loira não conseguia ignorar. Segurou o buquê com força, os caules finos esmagando-se entre seus dedos delicados, mesmo protegido pelo embrulho.
Ela estava espumando de ódio. Precisava de um banho quente, de sais e óleos essenciais, algo que dissipasse aquela sensação pegajosa de humilhação. Ren não sabia com quem estava lidando. E Ashley faria questão de ensiná-la.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.