Capítulo 111 — Clareamento (1)
Ao anoitecer, a legião de Jane se reagrupou.
Alguns membros se direcionaram para a floresta, visando escoltar um grupo que vinha de Kiescrone, outra parcela se dividiu entre auxiliar os feridos na pequena igreja e descansar pelo terreno do forte militar. Por sua vez, os líderes da legião — desde tenentes a generais — se reuniram numa sala da fortaleza.
Um banquete seria feito para a reunião principal, contudo, Jeanne decidiu que iria priorizar as informações antes de um jantar formal.
Ao todo, além de Theo, Nora, Malcolm e Carl, apenas outro membro se juntou à reunião; Zemynder, o Carrasco.
— Onde está o Nietsz? — perguntou Nora, aproximando-se de Theo.
— Não o vejo desde que acordei — retrucou o jovem Lawrence.
— Deve estar vadiando por aí.
Jane coçou a garganta alto o suficiente para chamar atenção.
Quando Nora a olhou, sua princesa estava lançando um olhar tanto quanto julgador e opressor pelas palavras da general.
— Que foi? É fato. Ele é mulherengo.
“Nihaya? Mulherengo?…” refletiu, porém, Theo lembrou que o djinn ainda tinha traços humanos.
Podem ser considerados o ápice de poder de um desviante, contudo, não são perfeitos: ainda possuem todas as necessidades que os humanos, assim como fetiches diversos.
— Ok… — disse Jane. — Vamos, diga-me suas informações, Malcolm. O que queria contar?
— É… — Malcolm se ajeitou na cadeira, olhando para todos os cantos do cômodo apenas para ter a certeza de que todos ali dentro eram confiáveis.
Notando a preocupação do general, todos seguiram os mesmos passos. Cada um se sentou em seu devido local com uma postura ao nível de sua patente. Por saberem os assuntos que seriam debatidos naquela reunião, os generais e tenentes estavam tensos e ansiosos, ao contrário de Theo que, por não ser daquele mundo e ter a disciplina militar de Liam, conseguiu se manter tranquilo não importando os assuntos revelados.
Além disso, ele estava, de fato, buscando uma imersão extrema naquela situação.
— Como vocês devem ter escutado do último grupo que veio de Kiescrone, o rei e a rainha Zaldür se divorciaram. Como já é de nosso conhecimento, este também era um casamento planejado que servia de tratado militar entre as duas grandes famílias de Kiescrone.
Theo havia entendido a gravidade da situação.
O divórcio do casal Real foi considerado um rompimento no tratado e, se uma das partes desejasse dessa forma, uma guerra civil no próprio reino iria acontecer.
Uma disputa territorial e de poder, selada por tantos anos graças ao casamento, seria iniciada da maneira mais brutal possível.
— Com a chegada do segundo grupo, pouco antes do general Nietsz retornar, fui informado que a rainha Zaldür nos deu um ultimato sobre qual lado iremos ficar.
— Certo… Nossos exércitos estão no território dela, então… — disse Nora.
— Ela quer que vocês decidam um lado, ou que saiam da disputa — afirmou Theo. — Mas, vocês possuem tratado com alguma das partes?
— Com a rainha — retrucou Jane.
— Então, o novato vai sugerir que ajudemos ela? — disse Carl.
— Não. Irei sugerir que saiam do território deles quanto antes.
— Seria bom, mas não podemos. Estamos endividados até o último fio de cabelo com a senhorita Zal — explicou Zemynder, um homem de cabelos brancos estendidos até a nuca, com uma cicatriz no rosto. — Não é de hoje que temos um vínculo com ela, então, se optarmos por deixá-la sozinha…
— Nós é quem sofremos um ataque no futuro — finalizou Jeanne. — Estávamos cientes disso, então, isso é tudo?
— Não — afirmou Malcolm. — A rainha Zal já iniciou seus ataques jurídicos ao ex-marido. 1
— Que tipo de ataques?
— Ela intimou que o rei Pend desistisse de seu assento no castelo real.
— Então, a tal Zal quer que seu ex-marido ceda o trono? — indagou Theo — Quem tem mais poder entre os dois?
— Os poderes são divididos, a influência de ambos é extrema em todos os quesitos. Para nós, do império Alsu, o que difere ambos são as parcerias… — retrucou Zemynder.
— Quem são?
— Cê vai querer apoiar a rainha, Theo — disse Nora, em tom sério.
Theo deduziu no instante o que poderia ser, no entanto, esperou a general dizer.
Embora se conheçam há apenas algumas horas, o rapaz tinha em mente que a seriedade de Nora estava à altura; afinal, uma pessoa extrovertida adotar aqueles olhos frios não era um sinal vermelho.
O Jovem Mestre Lawrence inclinou a cabeça, esperando que o respondessem.
— A rainha Marelia Zal tem como parceiro o império Alsu, que apoia sua soberania e direitos diante ao mundo — disse Jeanne. — Já o rei Pendaculos Dür VI… Tem o império de Cephian governado por Bvoyna.
Theo suspirou e distanciou-se, pois sua dedução estava correta.
— É… Se formos a Kiescrone… — disse olhando o teto.
— Poderemos nos encontrar com os Emissários de Bvoyna, talvez, até com o deus da Guerra — apontou Zemynder.
— Deus é? Deus um caralho — retrucou, olhando para cima.
Seus cabelos cor de trigo e ondulados despencaram e cobriram os olhos lateralmente, porém, uma certa aura escapava de sua fisionomia.
Todos sentiram aquela presença serena e imponente.
— Ele já morreu, e morrerá novamente. Existe um único Deus, e este é o universo. Abaixo dele, são apenas mortais com poderes.
— Gostei do novato — cochichou Zemynder.
— Você não o viu lutando — retrucou Malcolm, também em cochichos.
— Então, vão descansar. Temos apenas quatorze horas até começarmos a viagem para Kiescrone — disse Nietsz, aparecendo vagarosamente na última vaga.
Nora se assustou, assim como em todas às vezes que aquilo acontecera. Nihaya, igual a todos os djinn, era viciado em pregar peças ou dar pequenos sustos a qualquer momento.
— Onde estava? — inquiriu Jeanne.
— Rastreando uma criatura.
— Qual?
— Uma criatura. O Theo irá descobrir em breve.
“Medo…” reagiu Theo.
— Temos mais assuntos, ou era apenas isso? — perguntou Nora, espreguiçando-se na cadeira. A general deslizou pelo encosto e quase caiu no chão, mas conseguiu se recompor.
— Ah! — estalou Zemynder. — O caminho até os Pilares do Renascimento está quase tão perigoso quanto na Era das Bestas.
— Uow… — Theo se surpreendeu.
A Era das Bestas foi um período que durou quase duzentos e cinquenta anos, entre o sexto e sétimo milênio. A mana na atmosfera era ainda mais presente graças ao desenvolvimento de técnicas de conversão da mana atmosférica — isto é; o ato de pegar a mana do ambiente, processar no núcleo de energia, e liberar uma mana ainda mais condensada no ar.
Porém, com a alta concentração de mana densificada, bestas de graus superiores e capazes de realizar feitos inimagináveis foram criadas.
Felizmente, para o bem de todas as raças, esse evento foi finalizado abruptamente e, desde então, poucas bestas foram encontradas no nível da Era de Ouro das Criaturas (outro nome para a Era das Bestas).
No presente, essas criaturas são chamadas de “Bestas Míticas”.
— Vamos ter trabalho a fazer… — murmurou Carl.
— Eles terão — contrariou Nietsz, se referindo ao grupo de Theo. — Vão notar que nosso mundo está além do deles.
— Hm… — resmungou Theo. — Vocês são tão fortes que nunca derrotaram um Emissário.
O ego de todos foi atingido por uma flecha de fogo.
— Fala isso como se tivesse participado da luta contra Zethíer — retrucou Nietsz.
Todos, exceto Nora e Jeanne, ficaram pasmos. Eles não tinham a informação que o grupo de Theo havia derrotado Zethíer.
— Não, mas eu enfrentei o guardião dele e um de seus demônios. — Cruzou os braços ao falar.
— Um demônio inferior.
— Continua sendo um demônio. Fora a parte que enfrentei aquele djinn filho da puta e os espectros de Hades.
Theo escorou seus braços na mesa e olhou no fundo dos olhos de Nihaya.
Diferente dos outros djinns, Nihaya não se sentiu ofendido. Pelo contrário, ele estava querendo tirar Theo da razão, forçando o rapaz a dizer tudo o que fez desde que chegou no domínio.
De alguma forma, aquilo poderia ganhar a confiança dos generais e da própria Jeanne, pois seus feitos eram um sonho para todos ali dentro.
“O moleque é mais foda do que pensei…” ponderou Carl.
— Tá bom — disse Jeanne, com um ar de finalização. — Estão dispensados, se tiverem outro assunto, debatemos na viagem.
— Vai querer o garoto? — Nietsz indagou à Jane.
— Sim. Quero ensinar algumas coisas a ele, para se adaptar ao que vai viver.
— Certo. Antes de partirmos para Kiescrone, me procure — disse, surgindo atrás da cadeira de Theo e repousando o braço no ombro do garoto.
— Tá bom.
Gradualmente, todos os integrantes deixaram a sala.
- O nome Zaldür é uma junção entre os nomes das duas famílias unidas: sendo Zal o sobrenome original da rainha Marelia, e Dür o sobrenome do rei Pendaculos.[↩]
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