Capítulo 40 — Serach (2)
As páginas de um grimório viraram junto da ventania que cobriu o campus.
— Torre dos ventos, sopre ao mesmo tempo! — conjurou Theo, envergonhado e determinado. Uma corrente de vento rasgou o céu, sugando tudo nas proximidades.
Após o último encontro com seu mentor Amiah, Theo buscou alguns grimórios disponíveis na biblioteca compartilhada das ordens de Fulmenbour e Myrddin. Antigamente, como não possuía energia o suficiente para sustentar um feitiço superior, Theo se importava apenas em controlar os vetores.
Porém, agora com uma fonte de energia sustentável, ele decidiu se render aos feitiços elementais e cedeu ao melhor método de aprendizado: através dos grimórios. Livros escritos à mão por antigos conjuradores, tais que explicam exatamente como manipular a energia e executar um feitiço verbalmente.
Entretanto, diferente da manipulação dos vetores anemo, a conjuração de feitiços têm uma condição. As condições dependem, obviamente, de qual elemento se trata o feitiço. Para os feitiços de vento, a condição é: segurar a respiração para o feitiço continuar sendo executado, quando o conjurador volta a respirar, o feitiço é desfeito subitamente.
Assim que Theo retornou a respirar, sentiu dificuldade para executar o movimento mais comum de qualquer ser vivo. Isso aconteceu pois aquele era o décimo feitiço conjurado consecutivamente.
Caminhando até o grimório no chão, Theo se agachou e leu algumas páginas, ainda ofegante pelo esforço.
“São todos feitiços intermediários…” pensou. “Consigo os executar sem gastar muita energia, porém o meu corpo não suporta a condição…”
— Não sei se já sabe, mas tendemos a respeitar nossos próprios limites durante as sessões de treino. Começando pelo essencial: respirar — comentou Luanne.
— Madrinha? — retrucou Theo, ofegante e cedendo ao cansaço e caindo no chão. Com dificuldade para manter os olhos abertos, observou Luanne vir em sua direção.
— O dia será corrido. Vamos logo?
☽✪☾
Após um tempo, Luanne e Theo chegaram finalmente no mosteiro de Alunne. Poderia ser pela aura dele estar mais densa e sua energia refinada, porém Theo finalmente conseguiu sentir uma pureza sendo emanada pelas rochas que sustentam o lugar. Agora ele estava enxergando o mundo de outro modo.
Talvez por ter se concentrado em intensificar seu chakra do terceiro olho? Ou por simplesmente entender as coisas de outra forma? Não há uma resposta.
O mundo só… parecia mais vivo para ele, naquele momento e naquele instante. Tudo possuía uma cor mais vibrante.
Naquele dia, Luanne tomou um caminho diferente com Theo. Invés de passar pelo saguão de Alunne, onde fica a estátua de Lumen, ela decidiu dar a volta pelo mosteiro e mostrar ao seu afilhado o treinamento das seguidoras da Senhora da Lua.
O campo de treino era um pátio enorme. O chão era constituído por tijolos brancos, limpos como se jamais tivessem sido alvos de sujeiras.
Milhares de mulheres estavam espalhadas pelo local. Algumas centenas treinavam combate físico, outras descansavam no canto enquanto jogavam conversa ao vento. Enquanto outras centenas treinavam a pontaria. Afinal, mesmo sendo seguidoras religiosas, os membros dos templos divinos também são exércitos que devem sempre estar preparados para guerras.
O que diferenciava as mulheres eram suas vestimentas. Algumas estavam usando túnicas brancas contornadas por detalhes verdes, alguns amarelos, outros azuis e uma gigantesca minoria (apenas Luanne e mais três mulheres dentre aquelas mais de mil) com contornos cinza.
Theo notou essa identificação no primeiro contato.
— As roupas são algum tipo de uniforme? — perguntou Theo, observando as seguidoras de Alunne do topo de uma escadaria.
— Sim — respondeu Luanne, sequer deixando ele continuar, ela o interrompe: — Aquelas com objetos verdes estão relacionados ao fenômeno da lua verde. As seguidoras de Alunne são abençoadas pelo renascimento. A graciosa oportunidade de recomeçar suas vidas, transformar suas próprias essências em outra.
“Oh… O renascimento é no sentido literal? Não. Provavelmente é uma metáfora para aquelas que renegaram suas vidas antigas. Eu me encaixaria aqui também…” ponderou Theo.
— Aquelas de azul representam a calmaria e serenidade de vossa rainha. Elas têm o dom de acalmar as almas e tranquilizar os seres… Por isso a maioria são domadoras. Inclusive, Selina é dessa ordem.
“Se não for a mais forte, não quero ver as monstruosidades que nasceram aqui…” suou frio apenas por lembrar do primeiro soco que Selina deu nele.
— As mulheres trajadas por dourado representam a virtude do conhecimento de nossa deusa. Além de serem as mais próximas espiritualmente da lua.
— Que seriam as sacerdotisas? — interrompeu. — Notei que somente a senhora e mais três mulheres estão com trajes cinzas. Vocês representam o máximo da hierarquia, não é?
— Exatamente. Espiritualmente falando, somos a lua, enquanto a deusa Alunne é o reino no qual estamos…
— E onde eu me encaixo? — perguntou.
— Hã? — resmungou Luanne, sem entender o motivo da pergunta.
— Aquele oráculo me deu a “lua sangrenta”. A senhora sequer mencionou essa patente… Então, onde eu me encaixo nesse reino governado pela lua? Onde me encaixo nesse mundo?
— Em lugar nenhum — respondeu Selina. — A lua de sangue é uma patente nunca vista. Sendo alvo de um mito de Lumen, somente. Não há espaço para você, por isso terá que criar.
Selina estava subindo a escadaria em direção a Luanne e Theo, seus olhos estavam exaustos, visto sua missão na noite anterior. A caçadora esfregou os olhos, ainda processando o dia e as informações.
— Dormiu mal nessa noite? — indagou Luanne.
— Sim — respondeu. — Oi, loirinho. Preparado para o dia mais cansativo que você vivenciará?
— Me desculpe — pediu Theo. — Por… agir irracionalmente no nosso último encontro. Estou um pouco envergonhado por aquela atitude.
“Até eu fui pega de surpresa…” pensou Luanne.
Selina sorriu de canto com os olhos fechados.
— Pelo menos teve a atitude de pedir perdão. Bom, eu também tenho que me desculpar por ter lhe agredido sem motivo algum. Então estamos, tecnicamente, no mesmo barco. Só espero que não esteja utilizando isso para fugir da revanche…
— Não. Eu continuo de pé referente a isto.
— Isso é bom — interrompeu Luanne. — Porém, não vem ao caso no momento. Duelos entre seguidores de Alunne devem ser realizados apenas durante a noite, já que é nesse horário onde se encontram no ápice. Iremos a outro lugar antes.
“Durante a noite é quando há a maior extração de poder?” Theo olha para o céu. “Faz sentido… O que a senhora tem a me oferecer?”
☽✪☾
— Hum… — resmungou Tessália, a principal estilista e modelista do templo de Alunne, a criadora de todas as roupas que usam no mosteiro.
Tessália encarou Theo dos pés a cabeça, ponderando as proporções do corpo do garoto. A mulher ficou inquieta a todo instante, balançando a cabeça enquanto analisava.
— Certo. Já tenho algumas ideias. Disse que ele pertence à lua sangrenta? — indagou Tessália. Por ser uma mulher de idade já ultrapassada, sua voz era fraca e baixa. Ela era uma senhora baixa, porém longe de ser enrugada ou corcunda. Tinha por volta de uns cinquenta anos, seus cabelos eram brancos e curtos, olhos redondos e com um óculos esférico.
— Sim — respondeu Theo.
— Finalmente poderei usar um tom carmesim nas minhas roupas. Quantos anos tens, garoto?
— Quinze.
— E já possui essa estatura? Os deuses lhe abençoaram, realmente.
— Não acredito nesse tipo de história — retrucou olhando peças de roupa.
— É uma pena. As crianças de hoje em dia abandonaram aos poucos os deuses… Não é mesmo, lady Luanne? Em nossa época eles caminhavam pelo mundo. É uma lástima termos os abandonados…
— Fato — comentou Luanne. — Porém, ter a oportunidade de evoluir sem a interferência deles, é uma benção maior. Não acha?
— Hm… Não sei ao certo. Gosta de preto? — perguntou a Theo.
— Para roupas extravagantes, sim.
— Ótimo. Lady Luanne, pode aprovar o projeto? Sem o garoto, óbvio.
— Com toda certeza. Theo, fique por perto de Selina.
“Onde ela está?” questionou mentalmente, balançando a cabeça pelo lugar e notando a ausência de Selina.
Theo começou a caminhar pelo ateliê, buscando Selina entre todas as mulheres ali presentes. Ele deixou o escritório de Tessália e começou a caminhar pela região externa, onde ficava a loja de roupas de Tessália. Ainda perdido, decidiu perguntar às outras pessoas se haviam visto Selina.
Por fim, a encontrou carregando mais de cinco peças de roupas consigo.
— Aí está você — disse Selina, jogando todas as roupas nos braços de Theo, ficando apenas com um vestido azul-escuro em mãos.
Ela caminhou até um vestiário onde era separado apenas por uma cortina branca. Theo se sentou num banco ao lado do provador, virado de costas para Selina. Ficou inquieto enquanto esperava ela sair. O que não demorou muito, pois somente um tempinho depois Selina saiu por de trás da cortina.
Estava trajada por um vestido azul-escuro cobrindo todo o corpo e amarrado por uma fita na cintura. Feito em inúmeras camadas, já que era fino. O vestido não tinha muitos decotes, deixando apenas um espaço na gola em formato de v e regata.
— Para o seu padrão, estou bonita o suficiente? — indagou Selina, dando uma girada e apreciando o quão confortável era a roupa.
— Como assim para o meu padrão? — retrucou Theo.
Puxando o cabelo para trás e se olhando num espelho no provador, respondeu:
— Lady Luanne me colocou como sua supervisora. Isso significa que a partir de hoje estarei sempre contigo, até que vire um agente de Vagus completamente. Mesmo quando voltar há Wispells, terei de ir com você. Então, como és um nobre, tenho que saber se estou boa o suficiente para os altos padrões.
— Por quê?
— Porque ela quer alguém responsável olhando você.
— E você é esse “alguém responsável”? — perguntou com ironia.
— Claro. Ou vai me dizer que você conseguirá vagar pelo mundo sozinho sem se matar? — Theo ficou em silêncio. — Como imaginei…
— Tsk. Se vista como quiser. Somente isso.
Selina olhou para Theo com uma mistura de desdém e surpresa, porém ignorou e suspirou para o lado.
— Você é realmente chato. Mas, tudo bem — comentou entrando novamente no provador, desta vez para tirar o vestido.
Um pedaço de tempo depois ela retornou, com suas roupas comuns do mosteiro de Alunne: uma túnica branca e entalhada por azul-cobalto. Voltando seus cabelos pretos para frente e com o vestido provado em mãos, Selina chamou Theo:
— Vamos.
— Para onde? — perguntou se levantando com as outras roupas de Selina.
— Concluir as compras.
— Não provará essas?
Assentiu.
— São para as minhas irmãs.
☽✪☾
Após confirmarem as compras e saírem do ateliê, Selina e Theo ficaram sentados num banco em frente à loja, olhando para o sol que estava prestes a se pôr. Estavam ali há mais de hora, apenas esperando Luanne regressar.
Os raios de luz do sol bateram nos azulejos brancos do templo, criando uma imagem única e brilhante. Aparentava que o próprio sol estava tocando o templo, e como sendo um local lunar, o chão refletia a luz solar como um espelho.
— Prontos? — questionou Luanne, chegando no banco que os dois estavam.
— Para o quê? — retrucou Theo.
— Nossa revanche. Está chegando a noite. Se recorda, né? — disse Selina.
— Claro. Onde lutaremos? — perguntou se erguendo do banco e alongando os braços.
— Não é óbvio? Na nossa arena de combate — respondeu Selina, indo em direção ao pátio iluminado pelo sol. Virando o rosto de perfil para Theo, disse: — Não morra.