Capítulo 57 — Laços (1)
Relatório de indivíduo: Theo Augustus De Lawrence, ano 7680, dia 17, mês 14. Pontos importantes.
1. Theo ingressou na academia de Wispells, na ordem de Vagus, há dezessete dias. Por iniciar seu ano escolar no final do ano letivo, sua primeira semana serviu de adaptação para entender como o regime funcionava.
2. Cinco dias depois, Theo foi designado à classe especial de Wispells junto de outros quatro adolescentes. Dois dias após entrarem na classe especial, receberam a primeira missão de campo básica para agente de Vagus: Catalogar dez espécies de bestas.
3. No meio da missão, Theo e sua classe entraram em conflito contra um cristal arcano não despertado de grau quatro do atributo vento, sob vigilância de seus mentores: Amiah Neidr e Paul Llamarada.
4. Durante o confronto Theo despertou uma ressonância elementar (Anotação do diretor: isso deve ser analisado de perto).
5. Durante os últimos cinco dias ficou sob cuidados da tenente Luanne Darkmoon. Entrou no processo da “Escada iluminada”, onde começou a utilizar técnicas de refinamento de energia. Durante esses cinco dias, foi convencido a entrar no culto da deusa Alunne.
6. Há dois dias foi treinado pessoalmente por Serach, a calmaria de Alunne. Durante o treinamento demonstrou grande potencial no controle do vento, além de uma ótima condução de energia.
— Por estes motivos, Luanne Darkmoon e Serach abriram uma audiência para solicitar o início da avaliação para se provar como um agente de grau três — disse o vice-diretor geral das ordens, Lerman Podguor. — É isso que a senhorita deseja, Lady Luanne?
— Sim — respondeu Luanne, convicta.
— Apenas pelo motivo do tópico seis? Não sei se é o suficiente…
— Aquela harpia, segundo o general Amiah, era de grau quatro. E também, ser filho de Ethan De Lawrence deve ser o suficiente.
Luanne trocou olhares com os dois homens presentes: o vice-diretor Lerman, e o diretor-geral, Lutus Magnum. O homem responsável pelas divisões de graus. Caso alguém queira se provar o suficiente para o próximo grau, com ele que devem falar. Até mesmo as missões de campo passam por suas mãos antes de irem a público. Ele é o responsável por evitar milhares de mortes por agentes irresponsáveis.
— Sabemos que o garoto tem nome e honra. Seria o suficiente para alavancar ele até o grau cinco. Mas tem total certeza de que ele é apropriado? — reforçou Lerman.
— A recomendação de grau dois foi apenas por parte familiar ou… — indicou Lutus.
— O coronel Leon presenciou uma demonstração há três meses. Esse foi o motivo para ele indicar o próprio neto ao grau dois — retrucou Luanne.
— Mas…
— Lerman! — interferiu Lutus. — É um pedido da nobreza. Antes a Lady Luanne do que o Sir Ethan vindo aqui.
Coçando a garganta, Lutus arrumou sua postura na cadeira.
— Aceitamos a solicitação. De início, vamos testar em qual ocupação ele pertence — disse levando uma folha até Luanne. — Faça o teste com o nosso pequeno Leprechaun.
Luanne assentiu.
— Marque uma audiência com o garoto. Quanto mais breve, melhor — disse Lerman.
— Dia vinte às 16 horas — marcou Lutus, destacando o dia vinte num calendário em sua mesa.
— Ok. Eu cuido da parte burocrática — disse Luanne, acenando para os diretores enquanto desaparecia. O reflexo lunar de Luanne deixou o local em poucos segundos.
— Porque está tão desconfiado? — indagou Lutus.
— Um adolescente que sequer entrou na fase evolutiva demonstrando feitos de nível tempestade? Há uma pitada de ficção nessa parte — respondeu Lerman, com boas acusações. Não era comum, naquela época, existir adolescentes com tanto domínio.
— Veremos isso nas missões que ele realizar.
Selina estava sentada três andares abaixo de onde a reunião foi realizada, inquieta com a demora de sua mentora. Escorada na parede, enquanto sentada num degrau da escadaria, Selina bateu o pé no chão de ansiedade.
A gigantesca porta de madeira no fim da escada se abriu, trazendo um ruído consigo. Luanne desceu as escadas rapidamente até chegar em sua aprendiz. Tocando no ombro de Selina, assentiu para seguirem adiante.
— Onde está Theo? — questionou Luanne, vasculhando o lugar.
— Disse que estava entediante esperar. Acho que ele resmungou algo sobre ir até o escritório do Dr. Alexander para visitar a irmã dele. Achei que estaria tudo bem — disse Selina.
— Mas está. Pelo menos sabemos o paradeiro dele. Certo, tenho duas missões para você.
— Quando a senhorita não tem?
Luanne sorriu, caminhando pela calçada.
— Primeiro, veja se a roupa de Theo já está feita. Segundo… Treine-o para um leprechaun.
— Leprechaun? Esse foi o primeiro teste dele?
— Correto. A agilidade de Theo pode ser excepcional, porém, acompanhar um leprechaun é complicado. Mesmo que sejam seis provas, seria bom começar ganhando na primeira.
— Realmente.
Um silêncio ensurdecedor se estabeleceu entre as duas, deixando um ambiente calmo entre as duas. Mas longe de ser tenso. Selina respirou fundo e perguntou:
— Devo preparar uma região perto do meu lar?
— Sim — respondeu Luanne.
☽✪☾
O laboratório do Dr. Alexander estava uma bagunça fora do normal. Pó de giz tingia o chão de branco junto de algumas folhas amassadas. Alexander estava no topo do quadro negro, sustentado por uma escada de quase cinco metros. O cientista anotava inúmeros cálculos, desenhos e gráficos.
No canto do laboratório — o único lugar organizado — Isabel estava em seu último parágrafo num documento de cinco páginas. A herdeira do reino Di Ham bagunçou o cabelo num desespero afogado no silêncio.
Por outro lado, Theo estava totalmente despreocupado. Claro, sua única preocupação naquele momento era o tempo que estava perdendo graças a demora de Isabel. Theo olhava e revisava os cálculos de Alexander, em silêncio, pois sabia que todos estavam corretos. O cientista estava abordando assuntos que sequer eram de suas áreas, como psicologia, mecânica e ciência arcana.
Ao longo do quadro, partes do cérebro humano e descrições detalhadas de como funcionam eram descritos com perfeição. Em contrapartida, assuntos que Alexander dominava também estavam presentes: os núcleos dos desviantes e uma silhueta humana era pintada pelas veias de chakra — as veias que conduzem a energia do núcleo.
Tentando entender a que ponto Alexander queria chegar, Theo apenas desistiu. Se encostando na quina de uma mesa, cruzou os braços e ficou perdido em pensamentos passageiros que desaparecem momentaneamente.
— Dr. Alexander — chamou Isabel, olhando para seu professor no topo da escada de mão. — Estou saindo para o horário de almoço. Todos os relatórios estão revisados e concluídos. Vê se tira uma ou duas horas de sono também.
— Certo, certo — respondeu o cientista, sem desviar o olhar do quadro.
Isabel soltou uma golfada de ar seguido por um estalo de língua. Pegando uma bolsa de mão preta feita de couro, ela pendurou a bolsa no pescoço e caminhou ligeiramente até Theo.
— Vamos? — chamou.
— Só me guiar — respondeu Theo.
A enorme porta de metal do laboratório fechou, prendendo novamente um ar abafado e fungoso. Alguns instantes se passaram e a mente de Alexander explodiu — não literalmente.
O cientista ficou abismado, se esticando do topo da escada para visualizar as anotações anteriores. Ele revisou entre uma anotação sobre Aqualithium e a última anotação que ele fez: o golem da falha.
Uma história onde um humano qualquer tenta imitar o dom da vida, dado apenas por Deus, e cria um monstro sem igual que acaba tirando a própria vida.
Claro, Alexander não se referiu literalmente ao mito, mas sim à base usada pelo mito para gerar vida: não a magia, mas sim a própria ciência. Alexander havia encontrado uma forma de manipular os cristais arcanos para criar um golem. Não irracional, mas sim criar uma vida própria.
— Consegui! — exclamou o cientista.
Alexander desceu a escada dando passos largos nos degraus.
“Encontrei a forma de criar uma vida!” pensou, com sua felicidade transbordando na mais pura expressão genuína de vitória.
— Inteligência artificial? — Theo indagou à Isabel, caminhando numa calçada.
— Sim. O Dr. Alexander está trabalhando em conjunto com o Dr. Christopher para criarem uma espécie de inteligência artificial. Algo mais como eu e você, sabe? Um humano artificial — explicou.
Olhando para o céu, ela desabafou:
— Não acho que ocorrerá. Criar vida é algo mais complexo que testar humanos, núcleos e cristais arcanos…
Na mente de Theo, vieram apenas lembranças dos Kishin. Os demônios colossais nasceram da estúpida ideia humana de querer trazer a vida diante da morte. Trazer os mais poderosos de Mikoto novamente à vida. Foi isso que gerou a raça dos colossos. Aparentava uma história de ficção, mas o garoto só conseguia ver uma revolução.
— Não podemos fazer nada quanto a isso… Se dois dos maiores cientistas do mundo estão trabalhando em conjunto com isso, o governo com certeza permitiu. E se permitirem, os adolescentes herdeiros que não irão influenciar nisso — comentou Theo.
— De fato…
Ambos trocaram o calçamento pela grama do jardim. Caminharam nos gramados de C.P.M.F 1, indo em direção a um lado isolado do gramado. Theo carregava cuidadosamente uma sacola em mãos, enquanto Isabel levava uma vasilha coberta por um pano.
Ao longe, Theo pôde ver apenas a silhueta de sua irmã adotiva: Agnes. Os cabelos castanhos-ruivos da garota se destacaram no meio do gramado verde, sentada num pano branco.
Se aproximando de Agnes, Theo balançou a sacola em mãos contra o ombro dela. A garota virou o rosto para trás e vislumbrou seu irmão, que, momentaneamente, foi ofuscado pela luz do sol.
— Ainda gosta disso? — perguntou mostrando a sacola.
— E o que seria? — retrucou Agnes, junto de uma pergunta.
Posteriormente, ela pegou a sacola e tirou a comida favorita dela quando criança: um tipo de massa recheada com frango.
Seus olhos, contornados por olheiras pesadas brilharam ao ver sua comida favorita (algo que ela não sentia o cheiro há anos).
— Você quem fez?
— Sim. Por quê? Acha que eu não sei cozinhar?
— Tenho total certeza — respondeu Agnes.
Theo recuperou a sacola, tomando-a da mão de Agnes. Eles despejaram as massas numa tigela no pano branco, deixando a sacola vazia abaixo de uma vasilha. Revirando os olhos pelos arredores, Theo tentou reconhecer as pessoas no local.
Por estarem há praticamente seis meses focados nos estudos, Isabel achou que seria necessário um momento para respirarem. Principalmente Agnes, a mais dedicada da turma. Por ser uma desviante, ela não precisava dormir por três semanas, mas a rotina pesada de descansar algumas míseras horas em semanas já estava afetando o psicológico da maior prodígio de Midian.
Devido a isso, a turma sete de Myrddin se reuniu para um dia de folga. E como Agnes era a mais reservada, Isabel trouxe Theo para acompanhá-la.
Sendo de outra ordem e, obviamente, de outra academia, Theo não conhecia ninguém além das duas garotas que conheceu no reencontro com Agnes: Isabel Di Ham e Edina. Então, ele se assegurou de olhar os arredores e julgar os adolescentes presentes apenas pelas posturas e forma de comunicação.
Haviam dois meninos além de Theo e somente as meninas já mencionadas: Isabel, Edina e Agnes. Um dos garotos aparentava ser um bobalhão, estava rindo o tempo inteiro e não cansava de olhar descaradamente para Edina.
Entretanto, o outro estava fixamente encarando Theo. As posturas eram similares, exceto pela guarda de Theo que não possuia brechas. O garoto estranhou a postura daquele em sua frente.
Era de um militar ou lutador, com total certeza. Contudo, por que um agente de Myrddin — que são todos cientistas — teria uma postura daquelas? Talvez fosse um convidado de outra ordem? Não. Ele estava com o mesmo uniforme que Agnes, porém na versão dos meninos.
“O chakra do terceiro olho, constituído pela energia predominante, tem a capacidade de enxergar aquilo que está na dimensão superior. Algo além do instinto e da visão. Uma manifestação…”
O trecho de um livro viajou pela mente de Theo. Um dos livros que ele leu enquanto tentava encontrar uma solução para derrotar Selina.
Alguma coisa cutucava atentamente Theo. O deixava inseguro, mesmo não tendo motivos para isso naquele momento. O interesse dele foi despertado momentaneamente, por este motivo a citação do terceiro olho veio em sua memória.
E por causa disso, ele decidiu acessar o terceiro olho e visualizar melhor o ambiente. Após olhar para o outro rapaz, a sua resposta chegou com os dois pés na porta.
Um manto enorme de fogo e radiação cobria o garoto. Como a juba de um leão ou os próprios raios do sol. Não era tão quente quanto a sensação de ser tocado pela aura de Ethan Lawrence, mas também não saia impune da sensação de calor.
Uma aura capaz de rivalizar com o próprio Theo naquele momento tentava devorar a aura fragmentada e corrompida do garoto.
Para os presentes, os dois garotos apenas se encaravam casualmente, como se esperassem um falar primeiro. Theo com uma expressão neutra — a mesma de sempre — enquanto o outro rapaz lhe devolveu um sorriso confiante e altruísta.
No entanto, se alguém tivesse acesso às auras naquele ambiente, veriam dois mantos monstruosos de energia tentando se anular e sobrepor um ao outro.
“Quem é você, ruivo?” pensou Theo, encarando o rapaz à sua frente.
- Centro Partilhado de Myrddin e Fulmenbour[↩]
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