Capítulo 46 — Laços (3)
— No primeiro segundo, existia apenas o nada — contou Luka. — Apenas o vazio, o Caos reinava. Tempos aterrorizantes onde o ouro era água, e a água era prata… Mas foi então, que o ser perfeito se autocriou. Uma explosão com toda a matéria do antigo universo iluminou o vazio. Logo a luz correu pelo espaço infinito, tentando executar sua função impossível: alcançar o fim do universo. O tempo, por sua vez, se distorceu com as forças e virou relativo, trocando o absoluto. A luz guiou os seres através do espaço, enquanto eles viviam o tempo. Deus vos entregou os sentidos, e deles soubemos tirar bom proveito. Evoluímos, tornamos a nós, os próprios djinns.
Luka conjurou a combustão em sua mão, e junto de um assopro, propagou as chamas pelo ar.
— Já ouviu a expressão: a luz no fim do túnel? Então. A luz está sempre tentando alcançar o espaço. Porém, por ser infinito, a luz jamais chegará na borda. Se fosse um ser espiritual e estivesse na borda do universo, veria toda a criação, todo o imenso cosmo sendo apenas uma fraca luz no fim do túnel. Um ponto irrelevante na criação. Agora imagine; se nem toda a criação é relevante para o universo, por que você seria? — indagou à Theo.
Theo foi pego de surpresa. Ele realmente não esperava aquelas palavras, porém, já tinha entendido que tipo de pessoa era Luka. Assim como os seguidores daquele templo de Surya: majestosos e luxuriosos. Poderosos, porém tendo a compreensão de que são irrelevantes até para o seu próprio deus ao qual seguem.
Luka provavelmente era alguém que buscava enxergar a alma dos outros para poder entender a si próprio. Ele tentaria ao máximo compreender os humanos para entender como ele funciona, porque ele é quem é. Porém, o seguidor do sol já tinha encontrado seu lugar no mundo.
A segunda teoria de Theo, é que Luka viu sua aura. A sentiu perdida dentre aquele ouro vislumbrante. Por nenhum motivo aparente, mas Luka queria mostrar “a luz no fim do túnel” que estava ofuscada na mente de Theo. O seu verdadeiro renascer.
— Eu não sou relevante. Apenas executo meu papel como uma engrenagem do sistema — respondeu Theo.
— Entendo. Então és quase uma alma perdida. Mas ainda há tempo para o salvar. Você está correto…
O som de um tronco caindo interrompeu Luka, mas quando buscaram a causa do alarde, viram apenas Nikolas fazendo arte novamente. Luka olhou apenas de canto, mas logo continuou a falar:
— Somos apenas uma engrenagem no sistema. Assim como as estrelas são apenas estrelas no espaço. Ou acha que para o universo, uma estrela se apagar faria diferença?
— Não faria diferença alguma.
— Não mesmo. É por isso que estamos aqui, buscando o topo. O trono é o que todos almejam. Ou acha que todos querem ser apenas uma engrenagem descartável e tratamos como “está tudo bem”? Claro que não. Os soldados não querem ser soldados, eles querem se tornar coronéis. Mas, coronéis não querem ser somente coronéis, não estão satisfeitos com isso. Eles querem ser reis. E os reis? Imperadores, que por sua vez, almejam ser deuses. É assim que funciona a ganância por poder.
— Querer ser mais do que podemos. Sonhar com um objetivo que talvez nunca alcancemos… — comentou Theo. — É desmotivador.
— Você está errado. Não há um limite para onde podemos ir. Veja os desviantes como um exemplo. Há sete mil anos, os humanos eram somente humanos. Usavam armas primitivas para atacar os demônios. Enquanto aos dias atuais? Temos um livro escrito sobre um rei que desbalanceou a estrutura do cosmos somente por ter conhecimento. Este rei fazia diferença para o universo. E você? Não quer fazer essa diferença no sistema que serve de engrenagem?
— Almejar o último degrau enquanto continua pisando no primeiro não é… arrogância e egoísmo demais? — questionou Theo, ao mesmo tempo que retrucava Luka.
— Seu pensamento está devidamente equivocado. Não estamos pensando no último degrau, Theo. Estamos visando o trono acima dele. Egoismo é um dom que podemos ter. Devemos pensar em nós para só então pensar em outros. Não acha?
As chamas que Luka lançou na atmosfera continuaram vagando pelo espaço, como uma poeira de gás cósmico se propagando pelo vácuo do universo, como os gases deixados por uma supernova.
— Pensar no que é certo enquanto vivemos, já é um pecado. Devemos viver como quisermos, porém, sem nos arrependermos. Afinal, quando a morte chegar, será apenas uma tela preta. O paraíso ideal não existe. Nós que criamos ele durante nossa vida… Legado é o que deixamos no mundo que um dia chamamos de “podre”, mas que futuramente iremos enxergar como o céu.
Enquanto escutava as palavras de Luka, Theo se perdia na própria mente. Criando visões para interpretar de uma maneira o que o garoto dizia. Mesmo assim, ele ainda observava as chamas se propagando pelo espaço.
— E no fim — disse Luka, repousando a mão no ombro de Theo. Balançando o outro braço pelo ar, em direção à chama, ele continuou: — Seremos como uma estrela. Os restos da nossa existência continuarão; partes do nosso corpo, nosso nome, nossos feitos… Porém, daqui a… tipo, uns mil anos, não seremos mais nada. Você deseja ser esse tipo de engrenagem, Theo? Ou deseja ser como a sua lua? Que jamais será esquecida.
Deslizando a mão pelo ar, Luka consumiu novamente as chamas que liberou. Respirando profundamente, o garoto ficou de olhos fechados por alguns segundos em reflexão. O momento reflexivo dos dois garotos foi novamente quebrado por Nikolas, desta vez, um grito do garoto que ecoava além das árvores.
Luka tapeou o próprio rosto em desprezo.
— Ele com certeza desceu para a planície… Lá existem flores belas, porém há abelhas do tamanho de humanos. Com certeza despertou um enxame… Já volto. Caso queira vir, será de boa ajuda.
Ele saiu correndo e, num piscar de olhos, saltou para os arbustos, consumido por um pequeno morro.
“Egoísmo…” pensou Theo. “Desejos. Ambição. Evolução…”
A imagem de Liam brilhou em seus olhos, como o sol no céu mais livre das nuvens. O rosto fino e largo, as laterais de seus cabelos eram curtas, mas a parte superior era um pouco grande e tinha tons de loiro. Seus olhos, azuis e caídos de cansaço mental. Theo não era muito diferente daquele Liam que tanto odiava.
Olhando para a estátua da mão de Deus, Theo até a comparou com a estátua da mão de Zhuang, no império Xin, tal que pode visitar nas memórias de Liam há alguns dias.
Theo agarrou seu colar com muita força. Ele fechou os olhos e respirou tranquilamente.
“Realmente. O que não faz sentido é eu manter essas atitudes… Falei que abriria a porta que o destino me deu no direito de escolha. Então, abrirei agora.”
Mesmo de olhos fechados, enxergando o breu, uma luz apareceu no fim. Como num imenso túnel, a luz estava logo à frente. E logo essa luz tomou toda a escuridão que sufocava o rapaz.
☽✪☾
— Eles saíram faz uns vinte minutos… — murmurou Agnes.
— Que foi? Está preocupada com teu irmão? — brincou Edina.
— Sim.
— Eu julguei ele errado da última vez… — disse Isabel. — Ele parecia ser um moleque marrento, mas agora parece ser alguém respeitável.
— É… Eu também percebi isso. Talvez seja pela Agnes? — Edina soltou um sorriso malicioso.
Agnes arregalou um pouco os olhos e franziu o cenho. Ao longe, ela visualizou os três garotos voltarem do bosque, numa direção diferente de onde vieram. Nikolas estava sendo arrastado preguiçosamente por Theo e Luka, que carregavam desprezo em suas faces.
Nikolas estava com a bochecha inchada, marcada com um ferrão de abelha. Luka e Theo arrastaram o garoto até onde as meninas estavam e, somente após isso, repousaram no chão.
— O que aconteceu? — perguntou Edina, preocupada.
— O idiota foi atrás de rosas para você e acabou chamando atenção do enxame das abelhas imperiais — disse Luka, estressado. — Se não fosse pelo Theo ter criado uma ventania e afastado as abelhas, com certeza ele estaria morto.
— Vocês têm que procurar o hospital de Fulmenbour! — ordenou Isabel. — Não tira o ferrão! — exclamou quando viu Nikolas mexer na região inchada.
— O veneno só é aplicado se o ferrão for retirado com brutalidade. Vamos. Eu te arrasto até o hospital. Obrigado, Theo — agradeceu Luka.
— Irei acompanhar — disse Edina, se levantando.
Theo puxou o terno para frente e retirou uma margarida de um bolso escondido.
— Pegue — disse Theo, entregando a margarida à Nikolas. — Não levou a picada de uma abelha à toa, né? Entregue a ela. — Apontou para Edina com os olhos.
— Valeu — agradeceu Nikolas, pegando a margarida das mãos de Theo.
Luka carregou Nikolas às pressas para o hospital, Edina o acompanhou, apressada. Isabel apoiou o corpo nos braços e suspirou chateada.
— Era para ser um descanso…
Theo se virou e parou em frente a Agnes. Tirando outra flor de seu terno, desta vez os olhos da garota brilharam como o sol.
Era um lótus roxa de trinta e duas folhas. Sua região mais central era de tons verdejantes. Theo juntou as mãos da irmã e colocou a flor de lótus cuidadosamente.
— Lembro que você costumava estudar e olhar para os lótus roxos no lago da floresta… — comentou Theo.
— Obrigada! — agradeceu genuinamente.
— Fofo. Theo, você não irá comer? — perguntou Isabel, juntando alguns pratos no pano.
Os três garotos saíram recentemente e comeram pouco. Contudo, já não tinha quase nenhuma comida no lugar. Principalmente os salgados que Theo trouxe.
Theo assentiu que não.
— Acabei perdendo a fome enquanto tentava escapar de uma abelha com dois metros.
— Irei levar o resto para os garotos no hospital então. Tudo bem para vocês?
Os dois irmãos assentiram positivamente.
A princesa de Duham juntou todas as comidas restantes e guardou cuidadosamente numa mochila. Theo a ajudou guardando os copos, pratos e talheres numa sacola à parte. Agnes, por sua vez, colocou a flor de lótus no gramado e dobrou o pano, deixando-o preparado para retornar.
— Podem ficar mais um tempo. Vou levar isso para eles e retornar ao laboratório. Nos vemos amanhã, no dia de folga? — perguntou Isabel. Agnes assentiu. — Te espero também, loirinho. Até mais!
Isabel se levantou com sua bolsa e uma mochila recheada de comida. Se retirou na mesma direção que os outros: aos portões de Fulmenbour, onde levaria até o hospital.
Agnes decidiu matar o tempo, pois faltavam trinta minutos de almoço para ela gastar. A garota pegou a flor de lótus que ganhou de seu irmão e deitou-se na grama, olhando para o céu azul e limpo.
Enquanto a Theo, se deitou também. Porém, com a cabeça descansando em cima do abdômen de Agnes. Também olhando para o céu, ele sentiu sua irmã passar a mãos cuidadosamente em seus cabelos ondulados e cor de trigo.
Encarando o tempo, ele martelou a reflexão de Luka. Buscou a melhor interpretação possível para tudo aquilo. Até que entendeu: não há erro em querer ser melhor. Não há pecado em almejar o céu. A ambição faz parte de quem somos, do que nós somos. O fato de desejar algo, ter um objetivo, é o que dá à existência humana um sentido.
O limitador é dado pelo sistema, eventualmente contra você. Te pressionando para ser melhor e expulsando aqueles que fraquejam. Enxergando isso, Theo não aceitou ser somente uma ferramenta. Ele almejava ser o próprio sistema.
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