Capítulo 49 — Xamã do vento (1)
Ainda eram cinco da manhã. A lua dominava o céu e se refletia no lago frente à Theo, que havia despertado há somente três minutos, mas decidiu permanecer ali aproveitando a brisa fria da madrugada, a atmosfera pura e confortável.
Theo agarrou o colar, observando o éter se contorcendo na ametista. Refinando mais o elemento, soltou o colar e se ergueu, abrindo os braços em espreguiçamento.
— Ah… Lua. Pura seja a lua — murmurou. — A pureza que manchei com meu sangue. A força que contaminei. O poder que reneguei. Me envolva com teu manto que… me ilumina.
Theo ficou em silêncio, esperando algo. Forçando os olhos fechados, se decepcionou.
“Recitei a oração que a madrinha me ensinou para Alunne… Por que não deu certo?” pensou intrigado.
Logo a resposta chegou. A falta de fé que Theo possuía em qualquer deus era notória. Uma oração bem feita não contorna a falta de fé para quem implora por ajuda.
Catando um azulejo no leito do lago, Theo atirou contra a água, o lançando no reflexo da lua.
— Irá me esperar por mais um tempo. Certo, lua?
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“Certo… Acho que isso é o suficiente.” pensou Agnes, olhando para uma mala em cima da cama.
— O que está fazendo? — perguntou Thays, mas, ao olhar para a cama, viu que a garota ainda estava fazendo suas malas. — Sério? Está fazendo isso há quase uma hora. Vocês só vão subir uma montanha, né? Não precisa levar a casa inteira.
— Estou levando materiais de estudo. Vai que encontro algo interessante.
— Aprendeu bem — disse com um tom orgulhoso. Thays entrou no quarto e foi até Agnes, para abraçar sua irmã adotiva por trás. — Boa sorte, irmã.
— Obrigada, Thays. Onde está o Theo?
— Ele foi caminhar na beira do lago.
— Ele pelo menos deixou as coisas prontas, né?
— Sim. A mala dele está em um banco na calçada.
Agnes assentiu e saiu do quarto, onde a porta já estava frente ao quintal. Ela continuou andando enquanto Thays se sentou na calçada antes do gramado. Agnes ficou perdida na própria mente, tentando escrever o futuro e as probabilidades do que iria acontecer.
— Hey, Agnes! Não vem? — exclamou Theo, no leito do lago. O rapaz pegou sua mochila e a colocou nas costas enquanto esperava sua irmã descer.
— Não é melhor ir pela frente? Vamos ter que dar a volta para pegar a carruagem…
— Quem disse que vamos de carruagem? Esse bosque tem uma trilha que vai nos levar diretamente ao ponto que Selina marcou. São só alguns minutos de caminhada.
— Quê?
— Vem — disse puxando a mão de Agnes. — Vamos logo antes que cheguemos atrasados.
Theo começou a puxar o corpo de Agnes enquanto acelerava o passo. Com um pouco de esforço, obrigou sua irmã a correr também.
— Tchau, Thays! — exclamou Theo, acenando para sua irmã mais velha. Por sua vez, Thays assentiu novamente.
Como de costume em Gran-Empire, ainda estava escuro, mesmo sendo quase seis da manhã. A lua ainda dominava o céu, tendo somente os postes de luz iluminando o caminho. Por ainda estar escuro, Agnes trilhou com medo sempre ao lado de Theo. O som de répteis e animais quebravam o silêncio pela floresta, os pássaros noturnos cantavam.
O fino e gélido véu da lua cobria seus pés numa névoa pouco densa. Naquele frio eles caminharam por mais vinte minutos até finalmente chegarem no ponto de encontro.
Monte Haemon, Escadaria para o céu
– 06:12 AM –
Apenas uma escadaria que logo desaparece pelo monte, que no topo, é coberto por neve. A maior montanha na cordilheira de Fulmenbour, se equiparando até mesmo às montanhas da trindade celestial. Porém, também uma das mais distantes da região urbana.
O sol estava finalmente nascendo, mesmo que ainda estivesse escuro. Em uma escadaria no pé da montanha, Selina estava no primeiro degrau observando Theo e Agnes chegarem.
Em um certo momento na floresta Agnes cansou de correr e de tentar acompanhar Theo. Suas pernas fraquejaram e ela caiu no chão. A única saída para continuarem foi Theo carregá-la nos ombros até o ponto de encontro.
Theo soltou sua irmã apenas quando chegou na escada.
— Esta é a discípula do Dr. Christopher? — perguntou Selina.
— Sim. Sou Agnes Hansen, do ducado de Lawrence, é um prazer.
— Selina, discípula de Alunne. Estou responsável pelo seu irmão no momento.
— Responsável? Ele precisa de muitos.
Theo cutucou o ombro de Agnes, entregando-a uma garrafa d’água.
— Tenho algo para você. — Selina disse à Theo.
Ela se afastou por um instante apenas para pegar uma caixa atrás de sua mochila. Era de madeira, mediana em termos de espessura, mas enorme em comprimento. Serach segurou a caixa com as duas mãos e estendeu para Theo.
— Estava no arsenal de Alunne apenas comendo poeira. Foi forjada por um druida há cem anos para a Lady Luanne. Mas ela não conseguia utilizá-la, então…
Theo se espantou quando abriu a caixa. Naquele momento, ele entendeu por que era tão grande e aparentava ser tão pesada para Selina.
“Uma zweihänder… Se parece muito com as espadas do império de Egon.” concluiu Theo.
Uma enorme espada de duas mãos descansava numa almofada cor de vinho. Parecia ser de um metal apropriado e estava marcada com runas nórdicas por toda a lâmina.
Seu cabo era longo e terminava num pomo de coração. Os guarda-mãos eram grandes e ordenados, conectados externamente por anéis. Na base da lâmina, uma fehlschärfe se estendia, como suporte para uma segunda mão.
“Alfabeto perdido…” pensou, analisando as runas.
Ele a empunhou em suas mãos. Puxou lentamente para fora da caixa, com medo de ser extremamente pesada. Contudo, não era. A lâmina da espada subiu antes de Theo pressionar, como um leve pedaço de madeira. Era tão manuseável que a maior dificuldade era mantê-la estática.
Theo a balançou para todos os lados, não para testá-la, mas sim porque não conseguia controlar a espada. Até que ele se desequilibrou e enfiou a lâmina da espada no chão, criando uma pequena rachadura nos tijolos.
— Bom, pelo menos agora vou poder empunhá-la corretamente — brincou Theo.
Não demorou muito para ele entender o que aquela espada fazia no arsenal de Alunne. As runas na lâmina estavam, de alguma maneira, assimilando o núcleo de Theo. Misturando o éter puro com a lâmina fria.
— Uma espada feita para ignição…
— É. Ela tem o encantamento de recepção. Você tem uma ignição? — perguntou Selina.
— Não.
— Lhe passo as configurações básicas no caminho.
— Vamos? — chamou Agnes. — Acho que deve ficar um pouco cheio no santuário durante a manhã, não é?
Selina assentiu.
O santuário do vento norte, ao contrário de muitos outros, é cultuado no período da manhã. Nas primeiras horas do dia, pois é o melhor momento para cultuar à Boreas, o deus vento do norte.
Eles começaram a subir a montanha, rumo ao gume, onde o santuário se localizava.
Theo estava devidamente ansioso. Pelos contos populares, Boreas é alguém não tão confiável, já que sua personalidade é como o vento: o mais simples declínio transforma a brisa da noite numa tempestade duradoura.
Tendo em mente que teria que sacrificar algo, ele não tinha a mínima ideia do que seria. A vida humana? Deuses não desejam isso. Muito menos deuses elementais, considerados onipresentes, sequer necessitam de um corpo humano para viverem.
A ansiedade do rapaz o fez caminhar um pouco mais rápido que o normal e tomar a frente de Agnes e Selina sem que percebesse. Ele ficou tão cego por alguns minutos que quase esqueceu de apreciar a visão do amanhecer.
— Espere um pouco — ordenou Selina, agarrando Theo pelos ombros.
Naquele momento, já haviam se passado trinta minutos. Eram quase sete da manhã, horário onde o sol nasce por completo no continente.
— Sua irmã está um pouco cansada de subir as escadas. Apreciem um pouco a paisagem, vou averiguar algo mais adiante. Não devo demorar — disse Selina, subindo os degraus.
Theo esperou pacientemente Agnes olhando para o horizonte. O sol, mesmo ainda ofuscado pelas nuvens, já iluminava vagarosamente a montanha. Agnes era arrastada por si própria, apenas sua alma vagava pelo mundo, pois o corpo já havia desistido.
Vendo a dificuldade da irmã, Theo desceu mais alguns degraus até uma gruta que passaram antes, aparentemente artificial e propícia para esses breves descansos. Uma gruta, que em questão de tamanho, era razoavelmente grande. O teto era composto por gelo e algumas estalactites pequenas, quase não saindo da camada de gelo. Pedras com um tom azulado compunha o restante do lugar.
Uma única pedra rodeava toda a gruta, formando um banco. Theo colocou a mochila no banco e se deitou, repousando a cabeça sobre a carga. Enquanto Agnes apenas se sentou, colocando a mochila no chão.
Os dois irmãos passaram um tempo olhando para o nada. Recuperando o fôlego enquanto descansavam as pernas.
Agnes mordeu os lábios, tentando tomar coragem para falar.
— Theo… — chamou, em murmúrios. — Você parece mais feliz, né? Brilhante…
— Como assim? — questionou Theo.
Ela se aconchegou.
— Você tinha um brilho. Um bom brilho. Daí, esse brilho foi consumido por algo que estava na floresta das ninfas. O que você viu lá, Theo?
— Hã? Árvores. Uma névoa intensa. Cogumelos tóxicos…
— Não. O que te fez sair pálido? Sangrar pela boca e ficar tão desnorteado? O que te traumatizou naquele dia?
— Agnes…
— É sério! Você desviou por muito tempo.
— Agnes…
— Eu vi algo também! Não naquele dia, mas alguns dias depois — disse nervosa. — Era uma mulher sem cor.
— Uma mulher sem cor? — Theo riu de uma maneira desajeitada. — Que tipo de baboseira você está falando?
— Theo! É sério! — gritou Agnes. — Tinha uma mulher branca, totalmente branca, na janela do quarto de hospital da minha mãe.
— Tem certeza de que não foi alguma memória traumática? — perguntou, se sentando no banco de pedra.
— Óbvio que não! Eu vi o meu reflexo. Eu estava tão pálida quanto você, expressando a mesma reação: perturbação. Eu estava em pânico, igual a ti. Além dela transmitir uma sensação… de morte iminente.
Theo ficou tenso, mas, ao mesmo tempo, fingiu não entender nada. Já que aquela sensação que Agnes descreveu foi a mesma que Theo sentiu com Dullahan.
— Ela gritou e então… desapareceu. Junto da vida da minha mãe…
— Ótimo — suspirou. — Está falando de espíritos agora? Sério?
— Por que parece tão descrente? Você está presenciando isto tudo agora. Não é como se não fosse possível.
— Só estou sendo realista, porra! Você quer o quê? Que eu acredite que você, com seis anos, viu um espírito gritar, matar unicamente a sua mãe e depois… desaparecer? Isso vem de algum romance aleatório que a mamãe lhe deu?
— Dos contos das Ilhas Esmeraldas. — Selina interrompeu, sua voz vinha da entrada da gruta. — Não tem como não escutar vocês gritarem…
— Ilhas Esmeraldas? — questionou Agnes.
Selina assentiu.
— Ficavam entre os dois continentes: Gênesis e Chaos. Porém, foram inundadas pelo mar.
— O que os contos diziam?
Theo suspirou em descrença enquanto se deitava novamente, colocando o braço em cima dos olhos.
— Sobre uma dupla de mensageiros da morte. A Banshee, responsável por lamentar a morte dos cinco grandes nobres. E seu cavaleiro negro, mensageiro da morte onipresente… Dullahan — explicou Selina.
Automaticamente, o corpo de Theo travou. Cada um de seus músculos se recusaram a funcionar enquanto sua audição era tomada pelo relinchar de um cavalo.
— Banshee apenas lamenta, chorando no velório da nobreza ou de seus descendentes. Já Dullahan, está presente em todas as mortes. O problema é que são seres espirituais, sendo vistos apenas pelos moradores das ilhas esmeraldas ou…
— Por outros seres espirituais — completou Agnes. — Estudei sobre isso. Mas, Selina, eles causam a morte?
— Não. A morte é uma data fechada, não há como ser adiada ou controlada por ninguém. Banshee e Dullahan apenas servem como arautos da morte, e você, senhorita Agnes, foi cúmplice dela. E Theo não parece ser diferente, visto que paralisou ao escutar o nome Dullahan.
Agnes olhou para seu irmão, que soava frio.
— Seja justo com ela, Theo. O que viu na floresta das ninfas?
— Há quanto tempo está aqui? — perguntou Theo.
— Há tempo o suficiente para escutar que esteve na floresta das ninfas. Visto que mencionou a névoa, deve ter presenciado a camada da morte. Sabe que aquela névoa serve como metáfora, não é? Como uma transição entre o mundo físico e o espiritual.
— Sim, eu sei. E mesmo assim, ele não era um espírito. Era mais aterrorizante do que isto.
— Pelo menos admitiu algo — disse Agnes.
Theo suspirou.
— Eu presenciei Dullahan naquele dia. Estava parado em cima de um morro, olhando de cima para mim. — Theo fungou e suspirou posteriormente. — A cabeça dele estava entre os próprios braços, olhos vazios como o espaço…
— O que você sentiu? — Selina perguntou, demonstrando uma verdadeira curiosidade.
— Algo tão agoniante que… Eu só desejava morrer. Ele murmurava os nomes dos moradores do vilarejo, a voz rouca e grossa está na minha mente até hoje. Ainda quando fecho os olhos.
— Por que não contou a ninguém? — repreendeu Agnes.
— O que achou mais a frente? — indagou à Selina, ignorando a garota.
Agnes respirou, trêmula. Quando percebeu que não adiantaria tentar pressioná-lo, apenas recuou. Notando a situação, Selina trocou sua expressão serena por algo mais infeliz.
— O sacrifício que você usará para se comunicar com o lorde Boreas — respondeu Selina.
— O quê?
— Um xamã do vento, o protetor das ruínas de Haemon. O atual mais forte na manipulação do vento.
Theo se virou e colocou a mochila em suas costas, amarrando com firmeza. Além de também pegar a espada, que estava escorada no banco.
— Então, só preciso convencê-lo? — Caminhou até a saída da gruta.
— Não. Você terá que matá-lo e roubar o posto de xamã do vento.
— Hum? — Os dois irmãos murmuram simultaneamente.
Theo paralisou, olhando no fundo dos olhos de Selina, que por sua vez, não demonstrava nenhum traço de mentira.
Um raio de luz intenso invadiu a caverna.