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    Dois dias haviam se passado, o clima estava normal o sol já estava alto quando Yoru abriu os olhos. Não era como se ele tivesse dormido até tarde — na verdade, ele havia acordado bem cedo — mas não encontrou motivo algum para sair da cama imediatamente. Ficou encarando o teto por um tempo que ele nem soube medir. As rachaduras na pintura branca pareciam formar pequenas linhas aleatórias, quase como veias espalhadas por uma pele pálida.

    Ele virou o rosto para o lado e olhou o celular na mesinha. Nenhuma mensagem nova. Nenhuma notificação interessante. Hina não estava ali, Hayato provavelmente estava ocupado com seu próprio treinamento, e as ruas… bem, as ruas não ofereciam nada além de brigas e problemas que ele preferia evitar — ao menos naquele momento.

    Soltou um suspiro longo e profundo, como se estivesse tentando expulsar toda a apatia do seu corpo. A contragosto, jogou as cobertas para o lado e se levantou. O ar frio da manhã tocou seu peito nu, arrepiando sua pele.

    Caminhando lentamente até o banheiro, Yoru se apoiou na pia e encarou seu reflexo. O garoto que viu no espelho parecia mais cansado do que ele se sentia. Olheiras profundas marcavam seu rosto, e seus cabelos negros estavam completamente bagunçados. Ele passou as mãos pelo rosto, esfregando os olhos, tentando afastar aquela expressão vazia.

    Girou a torneira e deixou a água fria escorrer por seus dedos antes de jogá-la no rosto. O choque gelado fez seu peito se expandir num reflexo involuntário. Ele repetiu o processo mais duas vezes até sentir que estava suficientemente desperto.

    Após escovar os dentes, Yoru voltou para o quarto e se jogou na cama novamente. O relógio marcava 8h12.

    — Que saco… — murmurou, fitando o teto pela segunda vez naquela manhã.

    Seus olhos correram pelo quarto. Aquele espaço pequeno já estava tão familiar que ele poderia se mover de olhos fechados sem esbarrar em nada. Uma escrivaninha desorganizada, pilhas de cadernos e papéis com anotações sobre lutas, estratégias e até algumas reflexões pessoais que ele escrevia quando não conseguia dormir. As paredes estavam vazias, exceto por uma única foto colada próximo à cabeceira da cama: ele, Hina e Hayato, sorrindo como se o mundo fosse leve e simples.

    Yoru suspirou de novo, forçando-se a se levantar de vez.

    A cozinha era pequena e pouco aconchegante. A geladeira tinha apenas algumas garrafas d’água, ovos e um pote de arroz que ele preparara no dia anterior. Abriu o armário e encontrou uma caixa de cereais quase vazia.

    — É… isso serve.

    Jogou os flocos numa tigela e derramou leite por cima. Sentou-se à mesa, mexendo a comida com a colher como se estivesse apenas empurrando o tempo. A cada colherada, sua mente vagava para lembranças desconfortáveis — a última luta contra a escola 35, o rosto de Danilo lembrava a ele que dê pouco em pouco algo grande estava se aproximando

    Yoru apertou a colher com tanta força que ela rangeu entre seus dedos. Ele não sabia se estava irritado ou apenas frustrado consigo mesmo. Terminou de comer sem pressa, lavou a louça e se encostou na pia por alguns segundos, sem saber o que fazer em seguida.

    — É isso que são as férias? — murmurou.

    Sem nada melhor para fazer, decidiu treinar. Vestiu uma camiseta velha e saiu para a área nos fundos de sua casa, onde tinha montado um pequeno espaço improvisado para exercícios. Havia um saco de pancadas já desgastado, uma barra para flexões e alguns pesos enferrujados.

    Começou pelo saco de pancadas. Cada soco ecoava pelo quintal vazio. Os golpes eram fortes, ritmados, mas Yoru não estava satisfeito. Sentia-se lento, desconcentrado.

    A imagem de Danilo surgia na sua mente toda vez que ele fechava os olhos. Cada vez que tentava se focar nos movimentos, sentia o corpo falhar — como se algo estivesse preso em seu peito, o impedindo de dar o máximo de si.

    “Você ainda não é nada…” — aquelas palavras voltaram à sua mente, como se Danilo estivesse ali, sussurrando direto no seu ouvido.

    — Tch… — Yoru acertou o saco com mais força, quase derrubando a estrutura.

    Suas mãos doíam, mas ele não parou. Continuou golpeando até que seus punhos ficassem vermelhos e seu fôlego começasse a falhar. Ele caiu sentado no chão frio, encarando o céu azul acima de si..

    — Eu… não posso perder de novo.

    Depois de um banho rápido, Yoru voltou para o quarto. Abriu o armário e viu suas roupas espalhadas, dobradas de qualquer jeito.

    Ele sabia que precisava arrumar a casa — varrer o chão, organizar seus cadernos, lavar a louça que se acumulava na pia — mas não tinha vontade para nada.

    Deitou-se na cama e pegou o celular de novo. Rolou o feed de redes sociais sem prestar atenção em nada. Amigos postando fotos sorrindo, curtindo as férias, viajando ou saindo juntos. Ele se sentia deslocado, como se não pertencesse àquele mundo.

    Abriu a galeria de fotos e encarou uma imagem de Hina. O sorriso dela sempre o fazia sentir algo diferente — uma mistura de conforto e dor.

    — Eu ainda não sou forte o suficiente…

    Seus olhos se fecharam lentamente. O tédio o sufocava, mas, de alguma forma, o cansaço o fez adormecer.

    Quando despertou, o céu já estava alaranjado. O quarto estava escuro, iluminado apenas pela luz que vazava pela janela. Yoru se sentou na cama, sentindo o corpo pesado.

    A rotina estava se repetindo dia após dia. Uma mistura de treino, solidão e pensamentos sombrios. Ele sabia que precisava encontrar um propósito maior — algo que o tirasse daquela bolha sufocante.

    Vestiu uma blusa e saiu para caminhar pelas ruas. O vento frio da noite bagunçava seus cabelos enquanto ele seguia sem rumo. As luzes dos postes tremulavam levemente, e os poucos carros que passavam pareciam distantes demais.

    Yoru parou na frente de uma loja de conveniência, pegou uma lata de energético e se sentou no meio-fio. Ficou ali, observando as pessoas indo e vindo, se perguntando se algum dia ele voltaria a ter uma vida normal.

    Mas ele sabia a resposta.

    Não havia volta.

    Tudo o que ele podia fazer era continuar seguindo em frente… e se tornar mais forte.

    A manhã seguiu como a anterior. O despertador tocou às 7h, mas Yoru não saiu da cama imediatamente. Ele apenas estendeu a mão, desligou o alarme e permaneceu imóvel, encarando o teto. As rachaduras na pintura ainda estavam lá, as mesmas que ele havia contado inúmeras vezes.

    Os minutos se arrastaram até que ele finalmente decidiu levantar. A rotina se repetia como um ciclo interminável — lavar o rosto com água fria, escovar os dentes, comer qualquer coisa rápida e, depois, treinar no quintal até sentir o corpo implorar por descanso.

    O saco de pancadas balançava violentamente sob seus golpes pesados. O suor escorria por seu rosto, pingando no chão de concreto. Ele treinou até sentir os braços trêmulos e os pulmões queimarem. Mesmo assim, não parou.

    “Eu não posso perder de novo…”

    Foi só quando o relógio da cozinha marcou meio-dia que Yoru largou as luvas e foi para o banho. A água quente caiu sobre seu corpo cansado, relaxando seus músculos tensos. Ele se encostou na parede do chuveiro e deixou a água escorrer por seu rosto.

    Ele nem percebeu que estava sorrindo quando ouviu a campainha tocar.

    Quando Yoru abriu a porta, lá estava ela — Hina, com seus cabelos negros soltos e uma camiseta branca simples, acompanhada de um jeans desbotado. Ela não precisou sorrir para que ele sentisse seu coração acelerar.

    — Você parece acabado — ela comentou, com um sorrisinho no canto da boca.

    — É o charme do cansaço — Yoru respondeu, abrindo mais a porta para que ela entrasse.

    Hina riu baixinho, tirando os sapatos e caminhando até o sofá. Ela se jogou nele como se fosse dona do lugar — e, de certa forma, era. Ela sempre se sentia à vontade ali.

    — Trouxe isso pra você — disse, mostrando uma sacola com alguns pães e bolinhos. — Você nunca se alimenta direito…

    — E quem disse que eu não como bem? — Yoru brincou, embora soubesse que ela tinha razão.

    — Eu conheço você — Hina rebateu, jogando uma almofada nele.

    Yoru riu, pegando a sacola e indo até a cozinha. Ele trouxe uma bandeja com os bolinhos, dois copos d’água e um pouco de chá que havia feito mais cedo.

    — Vai querer ver o quê? — ele perguntou, ligando a TV.

    — Algo ruim — ela disse, pegando um controle remoto e navegando por uma infinidade de filmes aleatórios.

    — Algo ruim?

    — Sim, bem ruim. Quero rir com você falando que o roteiro é horrível.

    — Eu não faço isso.

    — Faz sim — Hina riu.

    A tarde seguiu leve, repleta de piadas sobre os personagens tolos dos filmes e discussões bobas sobre quem venceria uma luta: um leão ou um urso. O tempo parecia desacelerar quando Hina estava ali, como se o mundo lá fora não existisse.

    Em certo momento, Yoru percebeu que ela havia encostado a cabeça em seu ombro, adormecida. Ele ficou imóvel, temendo que qualquer movimento pudesse despertá-la. O cheiro doce dos cabelos dela invadiu seus sentidos, e ele se permitiu relaxar pela primeira vez em muito tempo.

    “Eu quero proteger isso.”

    Esse pensamento o fez morder o lábio. Ele sabia que não poderia falhar de novo. Precisava ser mais forte… por ela, por Hayato e por todos que acreditavam nele.

    — Eu vou ficar mais forte — murmurou baixinho.

    — O quê? — Hina abriu os olhos devagar, a voz sonolenta.

    — Eu… — Yoru hesitou. — Eu vou ficar mais forte. Eu prometo.

    Ela o olhou por alguns segundos, os olhos castanhos brilhando com uma mistura de preocupação e carinho.

    — Eu sei que vai — respondeu suavemente. — Só não se machuca demais no processo, tá?

    Yoru sorriu de canto.

    — Vou tentar.

    Mais tarde, enquanto tomavam chá na pequena mesa da cozinha, Hina olhou para baixo, brincando com a borda da xícara.

    — Eu estive pensando em uma coisa…

    — O quê? — Yoru perguntou, encostado na cadeira.

    — Eu estava pensando em… trabalhar aqui embaixo… no salão da sua mãe.

    O coração de Yoru deu um leve salto.

    — No salão…?

    — É, sabe… Ele tá fechado há tanto tempo. Seria bom reabrir. Eu sei que não sou nenhuma profissional, mas… eu aprendi algumas coisas. Sei cortar cabelo, fazer manicure… essas coisas.

    Yoru ficou em silêncio por um instante. O salão de sua mãe sempre foi um lugar especial para ele. Quando criança, ele costumava se sentar na recepção, observando Mei trabalhar. Ela sorria com tanta facilidade enquanto atendia as clientes, sempre tão leve e tranquila.

    — Eu acho que ela gostaria disso — ele disse, por fim. — É uma boa ideia.

    Hina sorriu, mas havia uma pontada de nervosismo em seus olhos.

    — Acha que vou dar conta?

    — Claro que sim — Yoru respondeu com firmeza. — Se alguém consegue, é você.

    O sorriso dela se abriu ainda mais.

    — Fico feliz que pense assim.

    Antes de ir embora, Hina olhou para Yoru de cima a baixo, os olhos focando no cabelo dele — longo e desarrumado, caindo sobre seus olhos e quase chegando aos ombros.

    — Sabe… — ela começou, com um sorrisinho travesso. — Acho que você devia cortar isso.

    — O quê? — Yoru levou instintivamente a mão ao cabelo.

    — Vai por mim, ia te deixar com uma cara mais séria… mais… forte.

    — Mais forte? — Ele arqueou uma sobrancelha.

    — Sim, e quem sabe… mais bonito também.

    Yoru bufou uma risada.

    — É, claro…

    — Eu posso cortar pra você — ela ofereceu.

    — Agora?

    — Por que não?

    Yoru pensou por um momento. Ele não era muito ligado à aparência, mas a ideia de Hina cortando seu cabelo, com aquele jeito delicado e cuidadoso que só ela tinha, não parecia tão ruim.

    — Tá bom — disse ele, fingindo indiferença.

    Hina comemorou baixinho e pegou uma tesoura da antiga caixa de ferramentas que ficava na cozinha. Ela o fez sentar no banco, pegou um borrifador de água e começou a molhar seus cabelos.

    O toque dos dedos dela em sua cabeça foi tão suave que ele fechou os olhos, quase esquecendo que aquilo era um corte de cabelo e não uma massagem relaxante.

    — Não se mexe — ela murmurou, concentrada.

    Os fios caíam aos poucos, espalhando-se pelo chão. Yoru sentia o cabelo ficando mais leve, e com isso, uma estranha sensação de renovação surgia dentro dele.

    — Pronto! — Hina disse, afastando-se um pouco.

    Yoru se levantou e foi até o espelho. Seu cabelo agora estava mais curto, com as laterais bem aparadas e a parte de cima um pouco mais longa, mas sem cair sobre seus olhos.

    — Ficou… bom — ele disse, surpreso.

    — Ficou ótimo — Hina corrigiu, com um sorriso satisfeito.

    Yoru não respondeu, apenas sorriu. Pela primeira vez em muito tempo, ele se sentiu… bem.

    — Vou cuidar de você… — ele murmurou para si mesmo. — Eu prometo.

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