Capítulo 181 - Hunides (6)
O céu começava a se abrir em tons suaves de azul, e a névoa da manhã se dissolvia lentamente sob o sol tímido. O orfanato, com suas paredes manchadas de tempo e grades enferrujadas, permanecia calado, como se estivesse preso no tempo. As outras crianças se espalhavam aos poucos pelo pátio, mas nenhuma delas chegava perto do trio — nem do garoto novo.
Dagon ainda estava lá, parado com a pedra na mão. Ele apertava o pequeno objeto com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos. Seus olhos fixos nos três que agora voltavam a rir, como se o mundo fosse só deles.
Eles pareciam idiotas. Rindo por nada. Brincando com o que não tinha valor algum.
Mas… por algum motivo, Dagon não conseguia tirar os olhos deles.
O chão era rachado, cheio de manchas escuras de terra e buracos mal tapados. Um canteiro quebrado tentava fingir que era um jardim. No centro, uma árvore seca, sem folhas, se erguia como uma lembrança de algo que um dia foi vivo. Pássaros pequenos voavam de um lado para o outro, e uma brisa cortante percorria o ambiente com o cheiro de poeira, mofo e… infância esquecida.
— Cara, você viu o que eu fiz? Acertei três latas seguidas! — gritou Kevin, empolgado.
— Foi sorte — disse Jakson, rindo. — Eu que sou o verdadeiro campeão aqui!
— Vocês dois são competitivos demais — comentou Rui, jogando uma pedra de qualquer jeito. Ela errou feio e deu risada de si mesma.
Eles estavam ali, vibrando com a própria miséria transformada em algo mágico. Cada latinha que caía parecia uma vitória contra o mundo. E Dagon, mesmo sem admitir, sentiu uma pontada de inveja.
“Eles… eles conseguem sorrir? Mesmo aqui? Mesmo depois de perderem tudo?
Eu perdi tudo também. Mas eu não consigo… Eu não sei como.”
A pedra ainda estava em sua mão. Ele olhou para ela como se carregasse um significado oculto. Não era só um objeto. Era um convite. Uma ponte.
Mas Dagon não cruzou essa ponte naquele momento. Em vez disso, virou as costas e entrou no prédio.
Os corredores eram escuros, iluminados apenas por algumas janelas sujas onde a luz mal entrava. O piso rangia sob seus passos. Os quadros tortos nas paredes mostravam imagens de crianças sorrindo, fotos tiradas anos atrás, de um tempo que talvez nunca tenha existido de verdade.
Ele caminhou até o quarto onde dormia, um espaço pequeno dividido com mais três garotos, que o ignoravam. Sentou-se na cama e, pela primeira vez, soltou a pedra que ainda carregava. Ela caiu no chão com um som seco.
Dagon apoiou os cotovelos nos joelhos e escondeu o rosto nas mãos. Seu peito doía, mas não era fome. Era o tipo de dor que não se curava com sopa quente.
Horas depois, o sol já estava mais baixo. O céu tinha tons alaranjados, e o frio retornava, mais brando, mais suave. O jardim estava vazio. Quase.
Jakson ainda estava ali. Sentado sob a árvore seca, observando o céu como se buscasse respostas nas nuvens.
Dagon surgiu na borda do jardim. Ele hesitou. Pensou em voltar. Mas algo o puxou.
Talvez fosse curiosidade. Talvez… esperança.
— Ei. — disse Dagon, baixinho.
Jakson se virou. Seus olhos não mostraram surpresa. Apenas um leve sorriso.
— Pensei que você ia continuar fingindo que a gente não existe — disse Jakson, brincando.
Dagon franziu a testa, mas não retrucou. Ele caminhou até a árvore e ficou de pé, encarando o chão.
— Eu não… sei brincar. — confessou, a voz baixa e trêmula.
— Ninguém aqui sabia, no começo — respondeu Jakson. — Mas a gente aprendeu. Juntos.
— Eu só quero meus pais de volta — murmurou Dagon.
Jakson olhou pra ele com seriedade. — Eu também. Kevin também. Rui… talvez mais que todos. Mas querer não traz ninguém de volta, Dagon. E enquanto a gente espera, a dor engole a gente. A menos que…
— A menos que…? — Dagon ergueu os olhos.
— …a gente ache outra coisa pra proteger.
Silêncio. O vento soprou devagar. Dagon se sentou ao lado de Jakson, devagar, como se aquilo fosse algo proibido. Por um tempo, os dois apenas olharam o céu, que agora se tingia de roxo e dourado.
Kevin e Rui apareceram pouco depois, carregando algumas bolachas velhas embrulhadas em papel de jornal.
— Aí, Dagon! — gritou Kevin. — Achei umas bolachas atrás do armário da cozinha. Meio murcha, mas é comida!
Dagon pegou uma, hesitante. Mordeu devagar. Era horrível. Mas pela primeira vez em dias, ele mastigou sem vontade de vomitar.
— Bem-vindo ao time dos sobreviventes — disse Rui, sentando ao lado dele.
Kevin estendeu o punho para Dagon, como fazia com os outros dois. Dagon hesitou… e encostou o punho no dele.
Naquele instante, algo nasceu.
Dagon ainda sentia dor. Ainda sentia saudade. Mas havia algo novo dentro dele. Um fio tênue de calor.
E ali, naquele entardecer esquecido, o que era um trio virou quarteto.
E embora nenhum deles soubesse ainda, aquela formação mudaria o destino de todos.
Era o começo da Hunides.
A verdadeira.
A que resistiria ao tempo, às perdas, à violência.
Não pela força.
Mas pelo vínculo.
Alguns dias depois…
O orfanato, apesar de parecer congelado no tempo, tinha seus próprios ciclos. Crianças novas chegavam. Algumas iam embora — adotadas, diziam. Outras… simplesmente sumiam.
No meio desse ciclo, Dagon começava a encontrar uma rotina. Dormia no mesmo beliche de cima, com um colchão fino e cobertor puído. Comia em silêncio. Brincava com os três — mais por instinto de sobrevivência do que por diversão. Mas ele ainda era um estranho naquele mundo.
E em todo orfanato, há sempre um predador.
[ Refeitório]
O cheiro de arroz queimado enchia o ar. As crianças se enfileiravam com suas bandejas metálicas. Dagon estava na fila, sozinho, logo atrás de um garoto mais velho e forte, chamado Uriu. Tinha o cabelo raspado, os olhos fundos e um sorriso torto.
— Você não sabe como funciona aqui, né, novato? — disse Uriu, sem se virar.
Dagon franziu o cenho. Ficou em silêncio.
— Quando um novo chega, ele fica por último. Sempre. Regra do orfanato.
— Não existe essa regra… — Dagon respondeu, cauteloso.
Uriu se virou. Seus olhos estavam cheios de raiva gratuita.
— Você tá me chamando de mentiroso?
Antes que Dagon pudesse dizer qualquer coisa, Uriu o empurrou para fora da fila. A bandeja caiu no chão, fazendo barulho. Alguns riram. Outros viraram o rosto.
Dagon caiu sentado, os joelhos ralados no piso áspero. Mas não chorou. Ficou em silêncio, os punhos cerrados.
no quarto
Jakson entrou no quarto onde Dagon estava. O garoto estava sentado na cama, encarando a parede. O silêncio era denso.
— Eu vi o que o Uriu fez — disse Jakson, sem rodeios.
— Não me importo — respondeu Dagon, seco.
— Tá com os joelhos machucados. Isso é se importar, mesmo que você negue.
Dagon não respondeu.
Jakson sentou-se na cama de baixo, em silêncio por alguns segundos.
— Ele só faz isso com quem não revida. Wallace é só barulho. Só quer se sentir maior que os outros. Ele fez isso comigo, também.
— E o que você fez?
— Aguentei. Por muito tempo. Depois percebi que não era sobre força. Era sobre mostrar que eu não tinha mais medo.
— Não sei se consigo.
— Você já passou por coisa pior, Dagon.
— Como você sabe?
Jakson suspirou.
— Porque eu vejo no seu jeito de andar. No jeito que você nunca senta com as costas relaxadas. Você vive como quem espera ser atacado. A gente só aprende isso em dois lugares: em casa… ou na rua.
Dagon olhou pra ele pela primeira vez com os olhos cheios d’água. Mas não derramou.
— Eu perdi minha mãe. E meu pai… bem, ele não era pai. Só um nome numa carteira de identidade.
— Eu perdi os dois. Um em um acidente. O outro… por escolha. Ele só sumiu.
Ficaram em silêncio por alguns segundos.
— Eu odeio este lugar — disse Dagon.
— Eu também odiei. Mas depois percebi uma coisa.
— O quê?
— O orfanato… é como um navio quebrado. Todo mundo aqui tá tentando sobreviver em cima de um pedaço de madeira flutuante. Uns afundam. Outros se agarram no que dá. Alguns aprendem a nadar. E outros, como o Uriu, tentam se manter secos pisando nos outros.
— E você?
— Eu tento manter meus amigos flutuando comigo.
Dagon respirou fundo. Pela primeira vez, sentiu-se… visto.
— Você é estranho, Jakson.
— Estranho é quem come aquele arroz queimado sem reclamar. Agora, vem comigo.
— Pra onde?
— Vamos roubar bolacha da despensa.
— Você tá brincando?
— Você vai aprender, Dagon. Sobreviver aqui não é só comer e dormir. É criar memórias que façam essa vida valer alguma coisa. Mesmo que seja só uma bolacha velha no meio da madrugada.
Dagon hesitou, mas sorriu. Um sorriso pequeno, meio torto, mas real.
— Tá bom, mas você vai na frente. Se a tia Marisa pegar a gente…
— Eu corro, você se esconde. Igual a gente fazia quando jogava “Pega-Bola”.
— Eu nunca joguei isso.
Jakson o encarou com surpresa, como se tivesse ouvido um absurdo.
— Então você precisa de muita terapia. Mas antes… precisa de amigos. Vamos?
Dagon levantou.
— Vamos.
O silêncio reinava, quebrado apenas pelo ranger do piso. O frio da noite passava pelas frestas das janelas, mas ali, no meio do escuro, dois garotos conspiravam contra a rotina.
Não era apenas uma ida à despensa.
Era um ato de resistência.
De vida.
E naquele instante, enquanto Dagon segurava a risada para não ser descoberto, soube que algo dentro dele estava mudando.
Não era só um orfanato.
Era um campo de batalha.
E Jakson… era o primeiro aliado real que ele tinha.
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