Capítulo 182 - Hunides (7)
Algumas semanas depois…
O orfanato respirava em ciclos. As luzes se apagavam cedo, as janelas continuavam emperradas, e o cheiro do corredor era sempre o mesmo: poeira, mofo e desespero abafado.
Mas Dagon já não andava tão sozinho.
Jakson, Diego e Nilo tornaram-se presença constante ao seu redor. Jogavam com ele, dividiam pão escondido, inventavam apelidos bobos. Era como uma trincheira silenciosa contra o caos.
Mas nem todos aceitavam isso.
Principalmente Uriu.
Uriu era magro, com olhos pequenos e um sorriso que só aparecia quando alguém se machucava. Ele era do tipo manipulador: nunca batia, mas sabia onde apertar. E sua especialidade era matar por dentro.
As crianças brincavam de bola com uma meia enrolada, rindo alto. Dagon, sentado num canto, amarrava seus tênis rasgados. Uriu se aproximou, com dois colegas atrás — Lipe e Marrento.
— Olha só… o novo órfão de ouro — disse Uriu, cruzando os braços. — Anda com o Jakson agora. Vai virar um santo?
Dagon não respondeu. Continuou abaixado.
— Tô falando com você, rato de esgoto — Uriu cutucou o ombro dele.
— Vai embora, Uriu — Dagon disse, baixo.
— Vai me bater? Hã? Vai fazer igual fez com o…? Sorte sua que ele foi transferido. Senão, te deixava sem dente.
Lipe riu. Marrento ficou calado, olhando em volta.
— Você é igual sua mãe, né? — Uriu cuspiu. — Foi embora e te deixou aqui. Deve ter se arrependido de ter tido você.
Dagon congelou.
Foi como se todo o ar saísse do pátio. A bola parou. O vento calou. Ele levantou lentamente, os olhos fixos em Uriu.
— Repete. — a voz dele saiu rouca, baixa, perigosa.
Mas antes que Dagon pudesse fazer algo, uma mão se colocou entre os dois.
Era Jakson. Diego e Nilo apareceram logo atrás, sérios.
— Tá bom já, Uriu. Cala essa boca. — disse Jakson.
Uriu riu, debochado.
— O bebê precisa de babá agora?
Diego se aproximou até ficar cara a cara com Uriu.
— Você só fala o que fala porque sabe que ninguém te bate de verdade. Um dia você vai errar o alvo e não vai ter pra onde correr.
— É, e não vai ser só palavrinha que vai te salvar — completou Nilo, encarando Lipe e Marrento.
Uriu cerrou os punhos.
— Vocês são uma piada. Um monte de lixo se juntando pra fingir que são família. Isso aqui não é um lar. Aqui ninguém se salva.
— É aí que você erra — disse Jakson, firme. — A gente escolheu ser família.
— É. E você não tá convidado — murmurou Dagon, com uma calma que gelava os ossos.
Uriu deu um passo pra trás. Pela primeira vez, sem palavras. Aqueles quatro estavam juntos. De verdade.
Ele cuspiu no chão e saiu andando, murmurando palavrões.
As luzes estavam apagadas, exceto por uma lanterna improvisada com a tela quebrada de um celular antigo. Os quatro estavam deitados em volta de uma coberta estendida no chão, com biscoitos roubados e um suco diluído.
Dagon olhava para os três com um olhar calmo. Uma coisa que ele não sentia há muito tempo.
— Obrigado, de verdade. Por hoje.
Jakson deu de ombros.
— A gente não te ajuda por obrigação. A gente te ajuda porque… você é um dos nossos.
— Eu não sei se mereço isso — Dagon murmurou.
— Merece, sim — disse Nilo. — Todo mundo aqui carrega um pedaço quebrado dentro. Mas a gente aprende a colar as partes uns dos outros.
— A gente vai sair daqui um dia, sabia? — disse Diego, sonhador. — E quando sair, vamos fazer um lugar nosso. Um lar de verdade.
— Um lar? — Dagon perguntou.
— Um lugar onde ninguém precisa fingir que tá tudo bem. Onde ninguém vai dormir com medo de ser chutado da cama. Onde as pessoas se abraçam. Onde a gente é visto. — disse Jakson, com os olhos brilhando.
Silêncio.
Dagon respirou fundo.
— Então eu quero estar lá com vocês. Quero fazer parte disso.
— Já tá, irmão — respondeu Diego.
Jakson estendeu a mão.
— Somos uma família agora. Os quatro. Nada mais importa.
Dagon olhou para aquela mão e, pela primeira vez desde que chegou naquele lugar, sorriu de verdade. Não o sorriso de quem sobrevive. Mas de quem vive.
Ele tocou a mão de Jakson. Nilo e Diego fizeram o mesmo. As mãos empilhadas no meio da coberta formaram um símbolo simples, mas poderoso.
Uma aliança.
Contra o abandono.
Contra o silêncio.
Contra o mundo.
E naquela noite, no escuro do orfanato, nasceu uma família improvisada, mas real.
Três dias haviam se passado.
E algo diferente começou a crescer entre os corredores frios e paredes descascadas daquele velho orfanato.
Era invisível. Mas dava pra sentir.
Como um calor vindo de dentro, algo que as noites não conseguiam apagar.
Tudo começou com um simples gesto.
Nayra, uma garota de voz baixa e cabelos encaracolados que sempre comia sozinha no canto do refeitório, começou a se aproximar. Ela não dizia muito — só observava. Mas depois que viu Jakson defender Dagon, algo dentro dela mudou.
Naquela noite, ela levou um cobertor extra e deixou discretamente ao lado da cama de Nilo, que sempre reclamava do frio. Ele acordou sorrindo, sem saber quem tinha deixado. Mas Jakson sabia. E foi até ela.
— Foi você, né? — ele disse, com um meio sorriso.
Rui hesitou, depois assentiu devagar.
— Aqui é frio. E ninguém liga.
— A gente liga — Jakson respondeu. — E a gente tá montando algo… diferente. Um lugar dentro desse lugar. Quer entrar?
Ela não respondeu com palavras. Apenas sorriu, tímida. E no dia seguinte, estava sentada com eles no chão do quarto, dividindo biscoitos e ouvindo histórias.
E mais crianças foram chegando.
Primeiro Timo, um menino pequeno que só falava com sua bola de meia. Depois Lara, que tinha uma risada explosiva e um jeito meio agressivo de se proteger. Em pouco tempo, o grupo que antes eram só quatro se tornou oito, depois doze.
Eles começaram a organizar jogos, horários para estudar juntos, pequenas “missões” como roubar pão extra ou consertar brinquedos velhos. Até fizeram um código com toques secretos e sinais com as mãos.
O nome da “família”?
A Sala
Porque era ali, na sala abandonada do meio do corredor, onde se reuniam para rir, contar segredos, planejar o futuro e, acima de tudo, existir de verdade.
O sol escorria pelas janelas quebradas, pintando a parede com luz dourada. No chão, os membros da “família” estavam sentados em círculo. Jakson ao centro.
— Hoje é o aniversário do Diego. — disse ele.
Todos gritaram e bateram palmas, mesmo sem bolo.
— Eu sei que a gente não tem muito… mas temos isso aqui. — Jakson levantou uma pulseira feita com fios de fone de ouvido velho.
— “Coroa do Rei do Dia” — anunciou Nilo.
Diego, surpreso, deixou os olhos encherem d’água.
— Nunca tive uma festa antes…
— Isso aqui é uma festa — respondeu Rui, séria, mas sorrindo.
Eles cantaram desafinado. Riram. Contaram histórias de terror.
E no fim da noite, Dagon olhou ao redor e disse:
— Vocês são tudo pra mim agora.
O silêncio que veio depois não foi desconfortável. Foi cheio.
Cada um sentia o mesmo, mas nem todos sabiam como dizer.
Mais tarde, no beliche, Dagon e Jakson conversavam.
— Nunca pensei que fosse sentir isso aqui — Dagon sussurrou.
— O quê?
— Amor. Isso que a gente tem… eu não sabia que existia.
Jakson olhou pro teto.
— Eu também não sabia. Mas… talvez a gente tenha criado. Um lar… pode nascer de quem nunca teve um. A gente criou o nosso.
Dagon sorriu. Fechou os olhos. Dormiu com leveza pela primeira vez.
E lá fora, no corredor escuro, Uriu passava sozinho, ouvindo as risadas abafadas da Sala do Meio.
Ele apertou os punhos.
O mundo dele estava mudando.
E ele não sabia se queria fazer parte… ou destruir tudo.
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