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    [Manhã seguinte – 08h22 – Mansão Enzo – Ala dos Jardins Internos]

    O céu estava limpo, sem uma única nuvem, e o sol filtrava-se pelas folhas das árvores ornamentais que cercavam o jardim interno da mansão. A brisa suave balançava os bambus altos e fazia tilintar os sinos de vento suspensos sob as pérgolas.

    Wallace estava de pé ao lado de uma árvore de ameixa, usando novamente seu terno preto impecável. Os óculos escuros descansavam na gola da camisa, revelando seus olhos sérios, porém calmos. Ele já havia feito a ronda pela propriedade três vezes e agora observava a fonte central onde Viviane estava sentada, descalça, com os pés dentro da água.

    Ela usava um quimono leve, branco com bordados prateados, os cabelos presos em um coque frouxo. Seu olhar estava distante, mas sua postura era de alguém acostumada a estar no centro do mundo.

    — Você vai ficar aí parado a manhã toda? — ela perguntou sem olhar para ele.

    — Se for necessário.

    — Você devia sentar. Não me parece confortável bancar o robô todo o tempo.

    Wallace hesitou. Mas por fim se aproximou e sentou no banco de pedra ao lado da fonte, ainda em posição de vigilância.

    — Você sempre foi assim? Frio? — ela perguntou, olhando para ele de relance.

    — Não sou frio. Sou focado.

    — Focado… interessante. Mas é curioso. Seu olhar não é de alguém que nasceu no poder. É de quem teve que lutar pra sobreviver. E isso me atrai.

    Wallace virou o rosto levemente.

    — Não estou aqui pra esse tipo de coisa, senhorita Viviane.

    — Relaxe, Wallace. Eu só estou flertando. Isso não é crime, é? — ela disse com um sorriso provocativo. — Você é o único homem por aqui que não fica tentando me impressionar. Isso é raro. Você não tem vaidade.

    — Já tive. Mas vaidade não salva ninguém no fim do dia. Ela só pesa na hora errada.

    Viviane ficou em silêncio por um momento.

    — Sabe… por trás do que Enzo quer de mim, do que meu pai representa, e da droga toda que envolve minha família, o que mais me irrita é como as pessoas me olham. Como um produto. Como uma herdeira. Como um símbolo.

    Ela o fitou nos olhos.

    — Você não me olha assim. E eu percebo.

    — Porque eu vejo outra coisa.

    — O quê?

    Wallace ficou alguns segundos em silêncio antes de responder:

    — Uma mulher cercada de muros de ouro, querendo sair pela porta dos fundos.

    Ela riu. E foi uma risada de verdade, leve, como se tivesse sido liberta por um instante.

    — Você é perigoso, Wallace. Silencioso… e perigoso. E eu gosto disso.

    [Mais tarde – 10h45 – Escritório de Enzo]

    A sala de Enzo era silenciosa, imponente e escura, iluminada apenas pelas frestas das persianas. Enzo estava sentado atrás da enorme mesa de mogno, lendo documentos com uma caneta-tinteiro entre os dedos.

    Wallace estava de pé à frente dele, as mãos atrás das costas.

    — Wallace — Enzo começou, sem levantar os olhos — você é um homem direto, então serei também.

    — Ótimo. Eu prefiro assim.

    Enzo fechou a pasta e se encostou na poltrona.

    — A operação da sua mãe foi aprovada. Custo elevado, equipe de alto nível, tratamento garantido. Mas isso vem com um preço. Você sabe.

    Wallace assentiu.

    — Diga o que precisa. Mas eu também tenho uma condição.

    Enzo ergueu uma sobrancelha, intrigado.

    — Estou ouvindo.

    — Até Viviane partir de volta à China… e até minha mãe se recuperar completamente… eu trabalho para você. Protegendo, executando tarefas, o que for. Mas nada além disso. Eu não sou seu cão. Sou um escudo temporário. Depois, acabou.

    Enzo sorriu.

    — Nada além disso, então? Sem fidelidade? Sem juramento?

    — Eu não faço promessas a homens com sorrisos vazios.

    O silêncio entre os dois durou alguns segundos. Um vento passou pelas janelas, balançando levemente as cortinas pesadas.

    Enzo, por fim, assinou o contrato.

    — Fechado.

    Wallace pegou a cópia, leu, e a guardou no bolso do paletó. Enquanto saía da sala, Enzo disse em tom casual:

    — Você sabe… o plano para derrubar Charles já começou. Cada peça está no tabuleiro.

    Wallace não respondeu. Mas parou por um instante.

    — Só me avise… quando a guerra começar. Eu gosto de saber quando o sangue vai escorrer.

    E então saiu, deixando Enzo sozinho com o som abafado do relógio de parede.

    [Jardins – 11h30]

    Viviane ainda estava no mesmo lugar, agora deitada na grama, olhando para o céu. Quando ouviu os passos de Wallace, ela sorriu, sem sequer levantar o rosto.

    — Conversou com ele?

    — Sim.

    — E?

    — Eu sou oficialmente seu escudo.

    — Hum… então agora posso relaxar?

    — Até certo ponto.

    Ela se sentou, o sol dourando seus cabelos.

    — Você é bonito, sabia?

    — Não.

    — Eu estou te dizendo agora. Seu jeito calado, sua firmeza… Isso atrai. Deve ter uma fila de garotas atrás de você.

    — Não tenho tempo pra isso.

    — Talvez você devesse. Talvez precise lembrar que existe vida além de deveres.

    Ele a olhou por alguns segundos. Depois, olhou para o céu também.

    — Talvez.

    Viviane se aproximou, ficando de joelhos ao lado dele.

    — Vamos fazer um trato?

    — Mais um?

    — Você me protege até eu voltar pra China. Mas enquanto isso, eu faço você lembrar… que você ainda é humano.

    Wallace desviou o olhar, mas algo em seu semblante suavizou.

    — Se conseguir… boa sorte.

    Viviane estendeu a mão. Ele hesitou, mas apertou.

    Ali, entre as sombras do poder, as faíscas de uma conexão real começaram a surgir. E mesmo que o mundo ao redor estivesse prestes a mergulhar em caos, naquele jardim silencioso, duas almas quebradas selaram um acordo — não de sangue, mas de humanidade.

    [Distrito de Kiyokabe – Colina de Isen – 17h45]

    O vento soprava com força naquela tarde dourada. Do alto da Colina de Isen, onde grama selvagem crescia ao lado de pedras antigas esculpidas com inscrições esquecidas, o mundo parecia desacelerar. Era um daqueles lugares onde o tempo parecia hesitar, reverente.

    Ali, de pé com as mãos nos bolsos do tradicional haori preto, estava Mayato Nakamura, conhecido como o Rei de Kiyokabe — um homem cujo nome era sussurrado com respeito em todos os cantos do Japão.

    Sua silhueta ereta contrastava com a vastidão que se descortinava à sua frente: abaixo da colina, o distrito vibrava com vida — caos controlado, como ele sempre manteve. A cidade respirava sob sua sombra.

    — Ainda vem aqui? Mesmo depois de tudo… — uma voz cortou o silêncio atrás dele.

    Mayato virou-se devagar. Um homem elegante, de terno cinza-claro impecável e um sorriso afiado como navalha caminhava colina acima, mãos nos bolsos, óculos escuros pendurados no pescoço: Charles Choi, o presidente da GHV Corporation, um dos últimos remanescentes da chamada Geração Zero — um tempo onde as palavras “rei” e “domínio” não eram apenas metáforas.

    — Charles Choi… — Mayato murmurou, como quem reconhece uma sombra antiga.

    Charles esticou a mão, mas Mayato não correspondeu. O sul-coreano apenas riu, retirando uma lata de suco importado do bolso interno do paletó e abrindo com um estalo.

    — Sempre tão austero. Você não mudou nada, Mayato.

    — Já você… se embrulhou em paletós, cifras e cifras. A que devo sua visita?

    Charles deu um gole longo e olhou ao redor.

    — A essa vista. A esse distrito. Esse é o único território que ainda não cedeu à nova ordem.

    — Porque ele não está à venda.

    — Tudo está à venda, Mayato. Essa é a verdade do mundo. Valores são bonitos em papel, mas o que mantém distritos vivos hoje não são ideais… são conexões. Capital. Influência. Controle.

    Mayato cruzou os braços, em silêncio.

    Charles caminhou até uma rocha alta e sentou-se, observando a cidade abaixo.

    — Tenho quatro alianças sob minha supervisão agora. Todos garotos de segunda geração, inteligentes, brutos, leais. Em breve, toda a estrutura de poder juvenil do Japão será… redirecionada. Você deve ter ouvido falar deles.

    Mayato permaneceu em silêncio, mas Charles continuou, exibindo um leve orgulho:

    — RAIDEN – os mais violentos, vindos de Osaka, liderados por um prodígio chamado Kurama Tetsuya.
    STYX – os fantasmas, infiltradores, baseados em Yokohama, especialistas em extorsão e redes digitais.
    KAGUTSUCHI – incendiários de Kyoto, filhos do caos, que usam arte e brutalidade como política.
    AZURA – vindos do Norte, dominam com números e organização. Parecem um exército escolarizado.

    — Crianças em guerra… — Mayato disse, finalmente.

    — Peões que serão reis, se quiserem — Charles corrigiu. — E com sua ajuda, eles terão um futuro glorioso. Posso injetar fundos em Kiyokabe, transformar isso num polo. Academia de elite, segurança armada, você comanda tudo como governador vitalício. Em troca… apenas ceda o controle territorial aos meus aliados. Nada muda, só o dono invisível.

    Mayato se aproximou, parando ao lado de Charles.

    — E depois que ceder? Eles seguirão suas ordens… para onde?

    Charles sorriu, largo.

    — Estamos trabalhando em algo global. Uma estrutura de poder subterrânea. O Charles Choi de hoje é só um nome de fachada. Atrás dele está uma engrenagem — empresas fantasmas, políticos adolescentes, e um plano. Um plano para colapsar e refazer a juventude do Japão. Você pode fazer parte. Ou ser esquecido.

    Mayato olhou novamente para o horizonte.

    — O que você vê lá embaixo, Charles?

    — Dinheiro. Potencial. Oportunidade.

    — Eu vejo garotos. Eu vejo rostos sujos, olhos esperançosos, punhos cerrados que nem sabem pelo quê estão lutando. E é por isso que ainda estou aqui. Não para reinar… mas para impedir homens como você de usá-los como carne de trincheira.

    Charles se levantou devagar.

    — Você vai se arrepender disso. Quando os grupos colidirem, quando sangue correr por essas ruas, e você perceber que não pode protegê-los com ideais… vai se lembrar dessa conversa.

    — Eu não preciso de mais dinheiro, Charles. Eu preciso de coragem para sustentar o que acredito. E isso não se compra.

    Charles aproximou-se, olhos nos olhos.

    — Você é mesmo o último tolo da geração dos homens honrados. Isso vai te matar.

    Mayato sorriu, sereno.

    — Talvez. Mas prefiro morrer de pé… do que viver vendado.

    Charles recolocou os óculos escuros, virou-se, e começou a descer a colina.

    — Boa sorte, Nakamura. Quando o mundo ruir, lembre-se… você teve a chance de se salvar.

    Mayato permaneceu no alto da colina, observando o pôr do sol tingir Kiyokabe de vermelho.

    — Que venha o mundo, Charles. O meu punho… ainda está firme.

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