Capítulo 202 - Kiyokabe (6)
[23h47 – Rodovia Elevada de Tokai – Carro blindado da GHV]
A cidade se estendia como um oceano de luzes abaixo da rodovia. O carro preto blindado cortava o asfalto como uma flecha silenciosa. Lá dentro, Charles Choi estava sentado ao lado da janela, observando o reflexo de si mesmo no vidro escuro. Seus olhos estavam semicerrados, como se ainda digerissem as palavras de Mayato Nakamura.
Ao seu lado, no banco da frente, estava Rafe, seu segurança pessoal — um homem alto, pele morena, olhar gélido e terno cinza grafite. Antigo operador internacional, agora era braço direito de Charles.
— Como foi o encontro? — perguntou Rafe, sem tirar os olhos da estrada.
Charles girou a aliança prateada em seu dedo, hábito antigo.
— O Mayato recusou. Como esperado.
— Devemos considerar isso um obstáculo?
Charles riu baixo.
— Obstáculos não existem para mim. Só degraus.
Ele digitou algo em seu celular e cruzou as pernas.
— Kiyokabe está vulnerável. Eles se acham intocáveis porque têm história. Mas história não segura uma guerra moderna.
— Vai ordenar um ataque?
— Sim. Um ensaio de cerco. Nada oficial… ainda. Um movimento coordenado das minhas quatro frentes. Quero caos. Quero ruído. E quero que pareça um levante espontâneo.
Rafe assentiu.
— Os líderes dos grupos já estão esperando?
— Kurama da RAIDEN está faminto por sangue. Os moleques da KAGUTSUCHI já estão incendiando coisas por prazer. Os hackers da STYX vão cortar comunicação do distrito por 48 horas. E a AZURA vai sufocar as vias de entrada e saída.
Charles tirou um pequeno frasco de perfume do bolso e borrifou nos pulsos. Um aroma frio e metálico preencheu o carro.
— Vai ser uma orquestra de destruição. Um espetáculo digno da nova era.
De repente, o telefone de Charles vibrou.
Número desconhecido. Sem identificação.
Ele atendeu, curioso.
— Charles Choi.
Por alguns segundos, nada. Depois, uma voz distorcida, rouca, quase sussurrada:
— Eles sabem o que está fazendo.
— Quem?
— Os reis da primeira geração. Estão de olho em você. Sabem do que está tramando com os jovens. E não vão deixar passar.
Charles sorriu, mas seus olhos não tinham humor.
— Eles são passado. Estou construindo o amanhã.
— O amanhã pode te enterrar, Choi.
O silêncio pesou. Então, Charles respondeu, com voz baixa, fria e absoluta:
— Eu sou capaz de tudo.
Afinal… sou o vice-comandante da Gangue do Caprio.
Toque. Chamada encerrada.
Rafe olhou para ele.
— Problemas?
— Não. Apenas fantasmas do passado tentando assustar o presente. Mas esqueceram que eu… me tornei o monstro que eles deixaram escapar.
[Distrito de Kiyokabe – 01h30 – Colina de Isen]
A noite estava pesada. Nuvens cobriam a lua, e o vento trazia um cheiro de chuva distante. Mayato Nakamura estava novamente ali, como uma estátua viva, olhando a cidade adormecida.
Atrás dele, passos apressados ecoaram. Hudson, seu discípulo, chegou vestindo roupas de treino, suando após mais de uma hora de exercícios na sede da gangue.
— Me chamou, mestre?
— Sim — disse Mayato sem se virar. — Algo está se movendo, Hudson. Senti o cheiro. E não é coisa pequena.
Hudson respirou fundo, assentindo.
— É o Charles?
— É o mundo ao redor dele. Ele não é apenas um empresário. Ele é uma ideologia com pernas. E está querendo colidir com os nossos princípios.
Hudson engoliu seco.
— Quer que eu reforce os postos?
— Quero que você treine os meninos. Os mais jovens. Quero que eles saibam o que é lutar por algo que se acredita. Porque o que está vindo não é uma guerra de facas… é uma guerra de verdades.
Hudson abaixou a cabeça.
— Eu não tenho seu tamanho, mestre. Nem seu espírito.
Mayato virou-se lentamente e colocou a mão no ombro do garoto.
— Mas tem meu coração. E isso… é o que importa.
Hudson olhou nos olhos do mestre. Não viu medo. Viu uma fé inabalável — não em si mesmo, mas nos valores que ele defendia.
— Prepare-se, garoto. A qualquer momento, a tempestade virá. E Kiyokabe precisa de um novo pilar. Não um rei… mas um homem verdadeiro.
[03h00 – Sala secreta da GHV – Escritório de Charles]
Charles entrava em uma sala onde os retratos dos quatro grupos estavam alinhados em monitores gigantes. Ao fundo, mapas logísticos da cidade, dados populacionais, conexões escolares e projeções de impacto.
Ele parou diante do espelho e ajeitou os punhos do terno.
— O velho Mayato acredita em homens de valor.
Aproximou-se e encarou seu reflexo.
— Eu acredito… em homens que criam valor. Mesmo com as mãos sujas.
Ele sorriu
A noite se esvaía lentamente, mas ainda era dominada pelo silêncio da madrugada. O chão de terra batida da antiga academia cheirava a suor, poeira e história. Era ali que Hudson, o discípulo escolhido de Mayato, treinava desde a adolescência.
Vestia apenas uma calça de treino preta. Seus punhos estavam vermelhos, calejados, os músculos rígidos e vibrando. As tatuagens em seus braços pareciam pulsar com o esforço. Diante dele, o velho tronco de carvalho que Mayato usava para treinar décadas atrás agora servia como alvo de seus golpes.
PUM. PUM. PUM.
Cada soco que Hudson desferia vinha acompanhado de uma memória, uma dúvida, uma fúria contida.
“Homens verdadeiros não são feitos de palavras. São forjados na dor e na decisão.”
As palavras de Mayato ecoavam em sua mente como um mantra.
De repente, passos firmes se aproximaram. Hudson parou o treino e virou-se. Eram seus dois aliados mais próximos: Raiga, um brutamontes de olhos serenos, e Tetsuo, esguio, silencioso, especialista em rastreio urbano.
— Obrigado por virem tão cedo — disse Hudson, pegando uma toalha e secando o suor do rosto. — A situação é delicada.
— Já sabemos. O velho não fala muito, mas o ar tá denso — respondeu Raiga, cruzando os braços.
— O que vai acontecer? — perguntou Tetsuo, sempre direto.
Hudson respirou fundo.
— Ataques. Talvez hoje à noite. Charles não vai esperar. Ele quer desestabilizar, testar nossas reações. Só que Kiyokabe não é um palco qualquer.
Ele olhou para os dois com firmeza.
— Quero vocês dois organizando três células de vigia: norte, oeste e leste. Nada armado ainda. Mas se um grupo colocar os pés no nosso território… eles não voltam andando.
Tetsuo sorriu de canto. Raiga apenas assentiu com seriedade.
— Vamos honrar o distrito, Hudson — disse Raiga. — E você… vai ser um grande rei.
Hudson olhou para o céu que começava a clarear.
— Eu não quero ser rei. Quero ser como o mestre. Um homem que sabe onde deve ficar — respondeu.
[Em algum lugar em Tóquio – Escritório subterrâneo da GHV – 05h02]
Luzes frias, monitores ligados, projeções holográficas de rotas e mapas. Charles Choi vestia uma blusa cinza de gola alta, com as mangas arregaçadas, revelando discretas cicatrizes antigas nos braços. Em sua frente, um painel com os nomes dos líderes da RAIDEN e da STYX piscava em azul.
— A noite de hoje não é guerra. É ensaio. Não quero baixas. Quero medo — Charles disse, enquanto seus comandados o escutavam por chamada de vídeo.
Kurama Tetsuya, da RAIDEN, um garoto alto com olhos ferozes e bandana vermelha, respondeu:
— Já selecionei três dos meus melhores. Bater e sumir. Eles são fogo puro.
Yuji Amon, da STYX, hacker obcecado por anonimato, apareceu apenas com voz e silhueta. Respondeu:
— Os drones serão hackeados. Nenhuma câmera vai gravar. Os três escolhidos estão a caminho.
— Ótimo — disse Charles. — Que Kiyokabe aprenda que o mundo mudou. Que não existe muro alto o suficiente… para impedir o novo.
[Tarde – Escola Secundária 25 – 15h08]
Yoru estava sentado no telhado da escola, com o celular no ouvido. A cidade parecia distante dali, abafada pelo som do vento.
— Você tem certeza disso, Jake? — perguntou ele.
Do outro lado da linha, Jake respondeu:
— Absoluta. Mayato Nakamura vive em Kiyokabe, numa colina chamada Isen. Dizem que é onde ele treinava desde jovem. Se ele realmente tá se mexendo… a coisa é mais séria do que pensávamos.
Yoru desligou o telefone e ficou alguns segundos em silêncio. Logo, Ben apareceu com uma garrafa de água, jogando para ele.
— E aí? Você tá com essa cara de quem vai invadir uma prisão — brincou.
— Descobri onde o tal Mayato vive. Quero ir até ele.
— Tipo… agora?
— Hoje à noite. Quero entender o que tá por trás desses movimentos todos. Charles, os grupos novos, as gangues da antiga geração… Tem algo se movendo nas sombras. E eu preciso saber onde eu me encaixo nisso tudo.
Hiroshi se aproximou dos dois, apoiando-se na parede.
— Se vai, eu vou junto. Se for mesmo o rei da primeira geração… ele vai nos dizer o que o mundo está tramando.
Yoru assentiu, se levantando.
— Então se preparem. À meia-noite… vamos a Kiyokabe.
[22h17 – Entrada oculta de Kiyokabe – Zona leste]
Três adolescentes encapuzados, dois da RAIDEN e um da STYX, surgiram entre becos e subiram pelos telhados como sombras. Portavam bastões leves, com sensores nas luvas para comunicação silenciosa. Seus objetivos eram simples: provocar tumulto, gerar medo, testar o perímetro.
Enquanto isso, do lado oeste, outros três se aproximavam — um deles filmando discretamente. Eram crianças armadas com ambição, vaidade e fúria.
Mas Hudson já estava à frente.
Dos becos, surgiram Raiga e Tetsuo, liderando grupos camuflados com rádios internos. Assim que os infiltrados colocaram os pés em terreno proibido, uma armadilha de luz e som explodiu, revelando os defensores.
— Vocês escolheram o pior lugar do Japão pra brincar de guerra — disse Raiga, avançando com seu machado de treino.
O choque começou.
…
Yoru, Ben e Hiroshi finalmente chegaram ao topo. Diante deles, entre sombras e vento, estava Mayato Nakamura, sentado sobre uma pedra, com os olhos fechados.
— Vocês… não são daqui — disse, antes mesmo de abrir os olhos.
Yoru deu um passo à frente.
— Vim porque sinto que algo grande está vindo. E o senhor… parece ser o último homem que ainda guarda a verdade.
Mayato abriu os olhos devagar. E sorriu.
— Então venha. E traga coragem no bolso. O mundo… vai desabar sobre nós.
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