Capítulo 213 - Uma faísca
O mundo não parou.
Apesar da dor que pulsava dentro de Yoru como um coração quebrado, o mundo simplesmente… seguiu. Pessoas andavam pelas ruas de Tokyo, sem saber. Sem perceber. Elas riam, corriam, comiam, falavam alto. E Yoru, no meio delas, era como uma sombra com pés.
Ele andava como um fantasma pelas calçadas frias do Distrito Guren, onde as lojas ainda abriam suas portas metálicas, e os pedestres cruzavam as faixas sem se olhar nos olhos. O sol estava oculto atrás de uma cortina de nuvens sujas, e o céu exalava a tonalidade amarelada que precedia a chuva — ou a guerra.
Yoru não sabia o que era pior.
O fone em seu ouvido tocava uma melodia instrumental antiga, uma faixa perdida de violino sobre piano, como se o tempo estivesse desafinando junto com ele.
A morte de Rukia não tinha sido apenas um corte. Era uma amputação.
Era como se tivessem arrancado dele a última parte que o mantinha inteiro.
Por dentro, ele gritava.
Mas por fora… ele era só mais um.
Ele se sentou em um beiral alto, em um dos prédios abandonados perto da linha de trem. Era um dos lugares preferidos dela. Lembrava quando Rukia subia com facilidade, rindo, desafiando a gravidade, e o chamava de “velho cansado” quando ele bufava atrás.
Agora o vento soprava ali sozinho.
Yoru fechou os olhos.
Pensava nela como se sua imagem ainda estivesse viva. Seu sorriso, seus olhos intensos, sua maneira de desafiar qualquer autoridade com uma frase sarcástica. Rukia era fogo, mas um fogo que aquecia, não que queimava. Estar perto dela fazia o mundo parecer menos áspero.
E agora tudo voltara a ser só concreto.
— O que eu faço agora…? — ele sussurrou, não esperando resposta.
Ali, sentado, ele abriu o caderno que ela tinha dado a ele semanas antes. Capa preta. Folhas sem linhas. Rukia dizia que o mundo já tinha regras demais, então o mínimo que um caderno podia ser… era livre.
Ele passou os dedos sobre a primeira página. Estava em branco. E pela primeira vez, Yoru escreveu.
Com uma caneta azul, tremendo, ele desenhou um pequeno ponto. E ao lado, escreveu:
“Foi aqui que você sumiu de mim.”
Depois fechou o caderno. O vento levou uma folha solta que estava por cima.
Yoru se deitou no concreto duro. Os olhos abertos. O céu finalmente começou a chorar. Pingos fracos. Depois mais fortes.
Mas ele não se mexeu.
A água lavava seu rosto como se tentasse apagar a dor.
Mas não conseguia.
Ela estava cravada fundo demais.
Enquanto Yoru se afogava em silêncio, em outro canto da cidade, uma garota sorria para os holofotes.
Viviane, a filha do bilionário internacional, estava em uma coletiva beneficente organizada pela Fundação do seu pai. A imprensa estava lá. Os flashes dos drones captavam sua beleza milimetricamente construída: cabelos loiros preso em coque baixo, vestido azul profundo, brincos discretos e uma postura impecável.
— Senhorita, o que acha da proposta de seu pai sobre regular o uso de implantes cerebrais em jovens? — perguntou uma repórter.
Viviane sorriu gentilmente.
— Acredito que ele faz o que acha certo para proteger a nova geração. — Olhou para as câmeras com os olhos frios. — Mas o futuro é algo que não se controla. Só se observa.
Todos aplaudiram. Era uma resposta vazia, mas dita com tanta graça que parecia genial.
Viviane odiava tudo aquilo.
Odeio essas roupas. Odeio essas perguntas. Odeio o som dos aplausos por mentiras que vocês nem entendem.
Ela sorriu e acenou, porque era isso que se esperava da filha de um bilionário.
Horas depois, ela estava no fundo de um carro blindado escuro, com os vidros fumês refletindo os prédios da cidade. O motorista era mudo por contrato. E o destino? Um lugar que nem mesmo o pai dela sabia que existia.
Viviane trocou de roupa ali mesmo. Trocou a imagem pública por uma versão crua: calça de couro, top preto, jaqueta vermelha. Cabelos soltos. Olhos delineados. E um colar com o símbolo de uma serpente enrolada em uma rosa — o emblema do Infernium.
O carro parou em uma rua sem nome. Uma entrada atrás de uma lavanderia automática. O segurança a reconheceu e abriu a porta metálica sem palavras.
Ela desceu as escadas de concreto pintado com neon. Cada degrau era como descer mais um nível no inferno.
O Infernium pulsava como uma criatura viva.
Luzes vermelhas, fumaça, cheiro de ópio sintético e estimulantes biológicos. Sons graves faziam o chão vibrar. Pessoas jovens — a elite podre da cidade — riam alto, cheiravam cristais coloridos, trocavam beijos e favores.
Viviane caminhava por entre eles com naturalidade. Era respeitada ali.
— A Rainha chegou — sussurrou alguém, e outros se afastaram.
Ela entrou em um dos salões laterais, onde um grupo de “VIPs” já a esperava. Três garotas e dois rapazes, todos com olhos de tédio e dedos sujos de luxúria.
— Achei que você ia furar com a gente — disse Lucien, um dos garotos, sorrindo enquanto passava a língua por um comprimido branco.
— Eu não perco uma chance de esquecer que existo — respondeu Viviane, jogando-se no sofá ao lado de Gieo, a mais quieta do grupo.
— Seu pai sabe que você vem aqui? — provocou uma das meninas, rindo.
Viviane apenas riu de volta.
— Ele nem sabe quem eu sou de verdade. Só enxerga o que ele quer. A “garota perfeita”.
Ela pegou uma pequena caixa metálica do bolso e retirou um frasco de um líquido azul prateado — Íris-9, uma substância que expandia a percepção e dissolvia o senso de tempo.
— Quantas gotas hoje? — perguntou Lucien.
— O suficiente pra apagar o meu sobrenome — respondeu ela, com um olhar melancólico.
A cada gota, Viviane sentia o mundo desbotar. E, por alguns instantes, ela se sentia viva.
Mas quando o efeito passava, ela voltava a ser só uma garota presa entre dois mundos:
o da mentira pública…
e o da liberdade corrompida.
…
Yoru, deitado no topo de um prédio, sendo lavado pela chuva.
Viviane, afundada em um sofá vermelho em um salão subterrâneo, rodeada de vultos falsos.
Dois jovens.
Dois mundos.
Dois caminhos opostos, ainda que tão semelhantes.
Ambos tentando escapar de algo que os devorava por dentro.
E sem saber… que seus destinos estavam se aproximando.
…
Viviane sentia a Íris-9 correr por suas veias como uma dança cristalina.
O mundo se esticava, fluía, dissolvia. As luzes tornavam-se halos suaves. O som virava vibração. Tudo parecia… leve.
Ela inclinou a cabeça para trás no sofá de veludo carmesim, olhos semiabertos. Sorrisos ao redor. Beijos falsos. Mãos deslizando em peles que não se conheciam.
Mas, por dentro, Viviane estava a quilômetros dali.
— Está muito forte hoje… — murmurou Gieo, observando Viviane com um olhar preocupado. — A sua dosagem está subindo demais.
— É isso que me faz esquecer o rosto do meu pai — respondeu Viviane com um sorriso irônico. — E é isso que me impede de explodir a cara dele em rede nacional.
O salão Ômega era o mais exclusivo do Infernium. A entrada era limitada a sete pessoas por noite. Um círculo fechado de filhos e filhas da elite global. Tudo ali era ilegal. Tudo ali era impune.
E tudo ali girava em torno de uma única substância: Íris-9.
[Três dias antes]
Em uma sala escura, cheia de monitores, mapas de calor, linhas de código e transmissões internacionais criptografadas, Enzo ajustava os óculos sobre o nariz. Estava suado, inquieto, mas seus olhos brilhavam como os de um estrategista.
Sozinho, falava consigo mesmo, enquanto organizava documentos em sua tela projetada:
— “Íris-9, composta de fragmentos de partículas estabilizadas por neurocondutores híbridos… originalmente desenvolvida como intensificador de cognição em pacientes com degeneração cerebral.” — Ele rolou a tela com os dedos. — “Convertida em droga recreativa por Charles após manipulações de campo magnético e retro-engenharia dos protótipos do laboratório B-09…”
Enzo cerrou os punhos.
— Eu estava lá quando ele criou a fórmula inicial. Era um gênio. Mas nunca… nunca foi por ciência. Sempre foi por controle.
Um vídeo antigo piscou na tela.
Era uma filmagem de Charles, em um laboratório branco, sorrindo como um messias moderno:
“— O mundo precisa de visão. E se para enxergar além for necessário dilatar a alma… que assim seja.”
Enzo pausou o vídeo. Respirou fundo.
— Você queria dilatar o mundo… e agora ele está se dobrando por sua causa. Desgraçado…
Digitou algo no terminal.
> Protocolo IRIS-CRUCIFIX ativado
Objetivo: Expor rede internacional de distribuição
Alvo: Charles Choi | Cofinanciador: ??? | Monitoramento: FBI, Interpol, GIN-Asia
Na lateral da tela, uma imagem apareceu. Era Viviane, dançando no Infernium. O software de rastreio facial reconhecia os traços. Classificação: Nível 3.
Enzo parou e a encarou com pesar.
— A filha dele também está presa nisso… Você não merece esse veneno, garota. Mas para salvar você, vou ter que destruir o homem que te criou.
[Retorno ao Infernium – Presente]
Viviane andava em círculos pelo corredor azul do segundo nível, ainda sob o efeito da substância.
O teto parecia derreter em cristais. Cada passo ecoava como um piano descompassado. Sua mente se expandia, flutuava, colidia com memórias e imagens:
> Seu pai discursando diante de câmeras.
Charles, em um jantar elegante, brindando ao “novo futuro”.
Uma câmara de vidro onde humanos testavam substâncias sob soro experimental.
O cheiro de ferro.
Os gritos.
Ela caiu de joelhos, trêmula. Suando frio. Sozinha.
— Merda… isso não é real… não é real… — ela murmurava.
Mas parte era.
Viviane sabia de onde a Íris-9 vinha. Sabia dos segredos enterrados sob o “Medical Institute”, onde as pesquisas financiadas por seu pai e Charles serviram como fachada para testes inumanos.
A droga era uma mistura de tecnologia neural e partículas infernais retiradas de um fragmento antigo encontrado em um campo contaminado da Guerra de Fuyun. A mesma substância que era estudada como arma bio-psíquica, foi refinada por Charles para se tornar vício de elite.
Viviane nunca contou a ninguém. Carregava esse fardo sozinha.
E agora… isso começava a matá-la por dentro.
[Enquanto Isso]
Enzo cruzava dados.
Mapas. Códigos de distribuição. Transferências bancárias criptografadas com origem na Suíça, Hong Kong e Brasil.
Em cada ponto, nomes de empresas fantasmas — todas ligadas a Charles Choi, o mentor que agora ele odiava.
— O pai da Viviane usava o dinheiro da “Fundação de Jovens Cientistas Asiáticos” para financiar testes da Íris-9 em órfãos da periferia. — Enzo murmurava, enquanto um vídeo de drone mostrava corpos incinerados em um armazém.
— Charles vendia a fórmula para elites em clubes como o Infernium.
— O pai da Viviane limpava a imagem com campanhas de filantropia.
O FBI já estava na trilha. A operação “Lux Sanguinis” cruzava dados com a Interpol, mas ninguém sabia da verdade por trás da substância.
Ninguém… exceto Enzo.
Ele era o elo perdido.
E agora, com a inteligência que possuía, só tinha um objetivo:
— Acabar com Charles.
— Expor Osamu.
— Salvar Viviane… antes que ela colapsasse de vez.
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