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    [FLASHBACK – anos atrás | Distrito de Minato, Tóquio | 19h47min]

    A chuva caía fina sobre os prédios altos da cidade, refletindo os letreiros luminosos dos escritórios e das torres corporativas. A metrópole vibrava em silêncio, como se assistisse, indiferente, à arquitetura sutil de um império prestes a nascer.

    No 36º andar de um edifício espelhado, dentro da sala de reuniões do Hotel Imperial Garden, um grupo seleto de homens de terno fumava charutos e bebia uísque caro. Eram seis políticos — três parlamentares, dois ministros secundários e um ex-governador — todos com histórico extenso de corrupção, favorecimentos ilícitos e denúncias arquivadas.

    A porta se abriu suavemente.

    Entrou Charles Choi.

    Cabelos bem penteados, terno cinza escuro sob medida, gravata preta e um olhar que não piscava. Tinha 49 anos. E já era um fantasma que caminhava entre tubarões.

    — Boa noite, senhores — disse, com voz firme e tom polido. — Espero não ter feito os senhores esperarem muito.

    — O que esse garoto tem pra nos mostrar que valeu sair de casa nessa chuva? — resmungou o ministro de infraestrutura, um velho gordo de rosto oleoso.

    Charles sorriu discretamente. Sentou-se à cabeceira da mesa sem pedir permissão e abriu uma maleta preta, retirando de dentro dela pastas encapadas e dois tablets.

    — O que tenho não é um produto. É um futuro.

    Todos o encararam.

    — O Japão está em decadência. Demograficamente, economicamente, culturalmente. Os jovens não têm identidade. O governo não consegue mais cativar as novas gerações. Mas o entretenimento… o entretenimento ainda seduz.

    Ele projetou no tablet central a logomarca:
    GHV — Grand Horizon Visions
    Com o slogan abaixo: “Mais que beleza, é poder”.

    Charles então explicou:

    — A GHV será apresentada como um projeto de “integração artística e desenvolvimento de modelos femininas”. Teremos academias de imagem, cursos de etiqueta, gravações de reality shows, videoclipes, eventos corporativos, representações internacionais. Tudo isso sob um manto limpo, elegante, legal.

    O ex-governador bocejou.

    — Então você quer criar uma agência de modelos?

    Charles o encarou com frieza.

    — Quero criar uma máquina de lavagem de capital internacional, com passaporte de legitimidade cultural e entrada diplomática em todos os eventos da Ásia.

    Houve um silêncio. O parlamentar da ala conservadora coçou o queixo.

    — Explique melhor.

    Charles começou a distribuir as pastas. Dentro delas, fotos de mulheres extremamente belas, selecionadas de forma estratégica. Cada uma com perfis falsos montados — currículos como atrizes, cantoras, apresentadoras. Nomes limpos, vindos de “orfanatos” e “projetos sociais” gerenciados por ONGs amigas de Yummi.

    — As modelos serão o rosto público. Elas serão treinadas para eventos e câmeras, mas também serão nossas embaixadoras silenciosas. Em cada país que visitarem, levarão ativos, contratos, mensagens. Também acompanharão certos “clientes”… políticos, empresários, diplomatas.

    O deputado de finanças começou a rir.

    — Você quer montar uma casa de acompanhantes de luxo fantasiada de agência?

    — Errado — Charles respondeu. — Eu quero montar uma agência de poder que a mídia idolatre e que o povo acredite ser um símbolo de empoderamento feminino. Uma arma cultural.

    Ele então projetou no tablet um gráfico de fluxo de capital:

    1. Dinheiro sujo vindo dos quatro grandes grupos.

    2. Doações para a GHV através das ONGs da Yummi.

    3. Transações internacionais, registradas como pagamentos de shows, eventos e “campanhas de imagem”.

    4. Capital limpo reinvestido em imóveis, tecnologia, startups.

    — Em 5 anos, a GHV será uma potência na mídia. Em 10, uma holding com filiais em 12 países. Em 15… uma nova entidade política com direito a financiamento público de “cultura e juventude”.

    O ministro de turismo começou a folhear as fotos, encantado.

    — Essas garotas são japonesas?

    — Algumas, sim. Outras, coreanas, russas, ucranianas, tailandesas. Recrutadas de forma seletiva. Treinadas para serem desejadas, mas nunca alcançadas.

    Charles então fez sua jogada final.

    — Em troca do apoio político de vocês, garanto três coisas:

    1. Um percentual dos lucros diretos em forma de “consultorias privadas”.

    2. A lealdade de todos os grupos clandestinos por trás da estrutura.

    3. A companhia ocasional de nossas embaixadoras mais influentes, sob absoluta discrição.

    Silêncio.

    O ex-governador pigarreou.

    — Isso é sujo, Genial… mas sujo.

    Charles não hesitou.

    — A sujeira constrói reinos. A limpeza… enterra impérios.

    O deputado de finanças soltou uma gargalhada e bateu na mesa.

    — Pois eu estou dentro. Se metade do que você prometeu se concretizar, você vai ser mais útil do que toda a câmara junta.

    Um a um, os demais homens assentiram. Alguns rindo, outros ainda em choque. Mas todos seduzidos. Todos corrompidos.

    Charles então fechou a maleta e se levantou. Seus olhos varreram a sala como de um rei coroando súditos.

    — Parabéns, senhores. Vocês não entraram em um negócio. Entraram na história.

    [Algumas semanas depois | Escritório oculto da GHV, Minato]

    Charles observava a primeira geração de “modelos” sendo treinadas. Estavam em um salão de vidro, ensaiando posturas e discursos, sob supervisão de ex-agentes de inteligência disfarçados de “consultores de imagem”.

    Ao lado dele, Yummi segurava uma taça de vinho branco.

    — Conseguiu os políticos?

    — Todos — Charles respondeu. — Estão nas minhas mãos.
    — E a mídia?

    — Já está sendo comprada. Dois apresentadores, três colunistas e um diretor de TV pública. Tudo no bolso.

    Yummi sorriu.

    — Você está criando um império invisível. Com perfume, sorriso e salto alto.

    Charles a olhou de lado.

    — O mundo sempre subestimou a beleza. Agora… vai pagar por isso.

    A chuva grossa caía sobre o asfalto rachado da periferia. Os postes piscavam como velas em fim de vida, e sirenes podiam ser ouvidas ao longe, mas ali, entre becos inundados e muros pichados, a vida se escondia nas sombras.

    Dentro de um galpão abandonado, iluminado apenas por uma lâmpada pendurada no fio, estavam duas figuras observando um grupo de crianças e adolescentes treinando golpes em sacos de areia improvisados. Algumas usavam pedaços de ferro, outras simplesmente socavam até sangrar.

    Yummi, então com 16 anos, vestia um sobretudo escuro sobre um vestido simples. Observava tudo com um cigarro entre os dedos e os olhos semicerrados, como quem admirava uma obra em construção.

    Ao seu lado, sentada sobre uma caixa de madeira, estava Kira, 17 anos, digitando em seu tablet enquanto rastreava movimentos bancários de órgãos públicos com verba desviada. Seus olhos não piscavam há minutos.

    — O que você acha? — perguntou Kira.

    — Perfeitos — respondeu Yummi. — Quebrados, famintos, invisíveis. Exatamente como Charles pediu.

    — Eles não têm ideia do que estão fazendo — comentou Kira, sem levantar os olhos. — Acreditam que estão sendo salvos.

    Yummi sorriu de canto, um sorriso frio.

    — Eles estão. Só não do jeito que pensam.

    [GALPÃO – MOMENTOS DEPOIS]

    Uma figura se aproximou pelo corredor molhado do galpão. Seu andar era firme, e a presença impunha respeito mesmo antes de dizer uma palavra. Era Assato, o irmão mais velho de Ash, com 19 anos. Usava uma camisa preta manchada de graxa e cicatrizes nos braços. Era, àquela altura, o líder informal da Gangue da Rua 12, um grupo pequeno de autodefesa formado por garotos órfãos da guerra entre bairros.

    Assato parou diante de Yummi e Kira, e sem cerimônias, perguntou:

    — Por que estão me fazendo perder tempo?

    Yummi se virou, encarando-o com calma.

    — Porque você está prestes a se tornar mais do que um líder de rua.

    Assato deu um passo à frente.

    — Não me venha com papo furado. Já vi muita gente vir aqui prometer comida e acabar atirando nos moleques.

    — Eu não vim prometer comida — Yummi respondeu. — Vim prometer poder.

    Assato franziu o cenho. Kira se levantou e projetou no tablet um mapa de Osaka, dividido em zonas coloridas. Em cada zona, apareciam nomes de gangues locais: pequenos grupos armados, quase todos compostos por menores de idade.

    — Isso aqui é um tabuleiro — Kira disse. — E a Hunides vai ser a mão que joga as peças. Você, Assato, pode ser o primeiro general da nova era.

    Assato cruzou os braços.

    — Hunides?

    — É o nome da sua nova família — Yummi disse. — Vamos juntar os menores abandonados, órfãos, perdidos… dar treinamento, propósito, hierarquia. Uniformes, bandeiras. Vão pensar que fazem parte de algo maior. E fazem. Mas o “maior” não é por eles.

    Assato permaneceu em silêncio. Observava os garotos batendo nos sacos de areia. Sangue nos punhos. Olhos vazios. Dentes quebrados.

    — E o que vocês ganham com isso?

    Yummi deu dois passos até ele, e falou em voz baixa:

    — Obediência. Expansão. Uma geração inteira moldada como quisermos. Eles vão matar por você. Mas estarão morrendo por nós.

    Assato fechou os olhos por um instante.

    — Eu aceito. Mas não pelos seus motivos. Eu aceito porque não há alternativa melhor. Eles vão morrer de qualquer forma se ficarem aqui.

    — Ótima escolha — Kira disse. — E não se preocupe… você será lembrado. Até o dia em que precisar desaparecer.

    Assato não respondeu. Apenas acenou com a cabeça. Ele sabia que tinha vendido a alma.

    [SEMANAS DEPOIS | RUA 12, ÁREA SUL DE TÓQUIO]

    Enquanto a Hunides se formava ao sul, em Osaka, Yummi e Kira voltaram seus olhos para Tóquio.

    Na periferia da capital, encontraram outro potencial núcleo: Jackson, um garoto de 18 anos conhecido por ser brutal e carismático. Tinha fama de arrastar gangues menores para alianças usando carisma e força. Era o líder natural da região, mesmo que a polícia não soubesse seu nome verdadeiro.

    Numa noite abafada, dentro de uma escola abandonada usada como abrigo por crianças fugitivas, Yummi o abordou.

    Jackson estava encostado contra a parede, com dois canivetes presos na cintura e o olho esquerdo inchado de uma briga recente. Mas seu olhar era firme.

    — Então é você quem anda falando bonito por aí — disse ele, com um sorriso torto.

    — Sou eu quem vai fazer você sair daqui de carro blindado — Yummi respondeu, com uma pasta na mão.

    Ele ergueu uma sobrancelha.

    — E o que você quer em troca?

    Kira apareceu por trás, digitando algo no tablet.

    — Queremos que você lidere o que chamaremos de Black G.

    Jackson riu.

    — Nome ridículo.

    — Não importa o nome — Kira rebateu. — Importa que vamos te dar cem soldados, armas, um símbolo e liberdade pra crescer. Vai se tornar um ícone entre os órfãos da capital. Só precisa seguir três regras:

    1. Nunca traia os três fundadores.

    2. Nunca pergunte sobre os outros grupos.

    3. Nunca hesite em sacrificar quem for necessário.

    Jackson parou de rir. Ficou sério.

    — Isso parece uma seita.

    — É — Yummi respondeu sem piscar. — Uma seita que vai mudar o país.

    [MESES DEPOIS | GALPÃO CENTRAL DA HUNIDES]

    A Hunides já possuía quase duzentos jovens treinando diariamente. Uniformes escuros. Hinos internos. Cordas e sinais. Regras internas. Um verdadeiro culto mascarado de gangue.

    Assato andava entre os corredores, observando garotos e garotas correndo, pulando obstáculos, treinando com bastões de madeira. Kira monitorava tudo em tempo real, montando bancos de dados de cada membro: nome, histórico, comportamento, obediência.

    No alto da sala, Yummi observava como uma rainha em trono invisível.

    Ela segurava uma carta em mãos.

    Era de Charles.

    “O caos é solo fértil. Adube-o com medo e florescerão soldados.
    Quando estiverem prontos, desça como chuva e os transforme em tempestade.”

    Yummi sorriu. Os olhos brilhavam.

    A nova geração estava nascendo.

    Não por amor.
    Não por honra.
    Mas por pura manipulação.

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