Capítulo 220 - Peões de dentes afiados
[Refúgio no Cemitério Hachikawa — 03h50 da manhã]
O tempo escorre como um corte aberto.
No mausoléu de pedra rachada que agora serve como abrigo, a gangue de Gondon tenta encontrar o que restou de si após a noite mais perigosa que enfrentaram.
Mayu está deitada sobre cobertores improvisados, o ferimento na perna ainda aberto. Kai costura o corte com linha de pesca, mãos firmes, olhos úmidos. Daisuke, em silêncio, rasga pedaços de tecido limpo para ajudar. Shu aquece uma lata de sopa em um fogareiro improvisado. Kuro está encolhido no canto, abraçado a Naoko. Renji tenta, sem sucesso, consertar um rádio quebrado.
Eli está do lado de fora, de pé sob a chuva fina, com os olhos perdidos entre túmulos cobertos de musgo.
[Flashback — Dois anos atrás]
Uma pequena casa de madeira no bairro 42 de Gondon.
Eli, aos 15, sentado à mesa com um prato vazio, sua mãe deitada no chão da cozinha, com uma agulha no braço. O cheiro do álcool, do mofo, da desilusão.
— Você devia estar na escola, Eli… — ela sussurra.
— Você devia estar viva… — ele responde, sem emoção.
Ele sai, fecha a porta e nunca mais volta.
Naquele mesmo dia, encontra Kai brigando com dois homens que tentavam roubar uma idosa. Eli entra na briga. Sangue. Dentes quebrados. Riso nervoso.
— Você é maluco… — Kai diz.
— Você é burro de brigar por gente que não conhece. — Eli responde.
Ali nascia a semente.
[De volta ao presente]
Eli respira fundo. A chuva escorre por seu rosto como lágrimas que ele não sabe mais como derramar.
— Está frio aí fora, chefe. — diz Daisuke, saindo do mausoléu.
— Não mais do que aqui dentro. — Eli responde.
— Ela vai sobreviver, tá? Mayu é durona. E Kai sabe o que faz.
Eli olha para o garoto de 15 anos, que já parece carregar o mundo nas costas.
— Você ainda tem sonhos, Daisuke?
— …Não sei.
— Então comece com isso. Sonhar é o único luxo que ainda não taxaram nesse país.
[Interior do Mausoléu — 04h20]
Mayu acorda.
— Essa merda ainda dói.
— Quer que eu quebre a outra perna pra compensar? — Kai pergunta, meio rindo.
— Se quebrar, vai ter que casar comigo.
— Então… vou pegar mais gelo. — Kai responde, levantando rapidamente.
Eli entra, e todos se viram. Ele tem nas mãos uma sacola com remédios, gaze, e uma garrafa de isotônico. Deixaram na entrada do cemitério. Um “anônimo”.
— Não toquei em nada que estava aberto. Mas acho que temos anjos da guarda agora. — Eli diz.
— Ou demônios piedosos. — completa Naoko.
Eli olha para todos e fala:
— A partir de hoje, não somos mais uma gangue. Somos uma resistência.
— Resistência contra o quê? — Renji pergunta.
— Contra a cidade. Contra a fome. Contra Charles. Contra essa merda toda que tenta matar a gente só porque a gente nasceu do lado errado da linha do trem.
— Isso é bonito, mas ninguém sobrevive só com discurso. — Kai rebate, sério.
— Eu sei. Por isso vamos crescer. E vamos treinar.
— Treinar? — pergunta Shu.
— Lutar. Correr. Resistir. Vamos nos preparar para uma guerra. Se Charles quer transformar esse mundo num tabuleiro… então a gente vai deixar de ser peão.
[Quatro dias depois — 07h00 da manhã | Área abandonada dos trilhos de Gondon]
Um novo “quartel” é montado. Um complexo de túneis ferroviários abandonados, entre colunas rachadas e trilhos cobertos por mato e ferrugem. A Gangue de Gondon se reorganiza.
Treinamento. Disciplina. Organização.
Kai começa a treinar Shu no corpo a corpo. Daisuke corre circuitos para aumentar fôlego. Mayu, mesmo ferida, estuda anatomia humana. Renji hackeia câmeras da região para construir um “mapa invisível” de Tokyo subterrânea.
Eli treina sozinho. Golpes no concreto. Chutes na sombra. Corridas até cair de joelhos.
Ele não quer ser o mais forte. Ele quer ser o mais difícil de derrubar.
— Naoko… por que a gente ainda tá aqui?
— Porque não temos pra onde ir.
— E se tivéssemos?
— Então não seríamos nós.
Ela beija a testa dele. E naquele gesto, Kuro entende que nem toda família tem o mesmo sangue.
[Sede de Charles — Sala Escura | 23h00]
— O grupo está ativo. Está treinando. O menino Jang está se organizando. — relata Deren.
— Perfeito. — responde Charles. — Uma flor nasce mais bela se cresce entre espinhos.
— E se ele se rebelar?
— Ele não vai. Ele ainda acredita que é livre.
Charles gira sua taça. No fundo do líquido escuro, vê o reflexo do rosto de Eli. E sorri.
[ Entrada do túnel de Gondon | 01h00 da madrugada]
Eli está em pé, olhando a cidade ao longe, as luzes brilhando como falsas promessas. Ele sussurra para si mesmo:
— Vamos mostrar pra esse mundo que até o lixo… pode florescer.
[Subsolo ferroviário de Gondon | 05h12 da manhã]
Os trilhos velhos e cobertos de limo tremem levemente com os primeiros trens comerciais passando acima. Mas aqui embaixo, onde o sol não chega e a cidade esqueceu que existem almas vivas, sete jovens reconstroem o próprio significado de lar.
As paredes estão marcadas com tinta spray: símbolos improvisados, frases de sobrevivência, desenhos feitos por Kuro. Uma delas, bem visível na entrada:
“Se a cidade não quer a gente, que ela nos tema.”
Eles vivem entre concreto rachado, colchões sujos e velas em garrafas cortadas. A cada manhã, o mundo inteiro tenta enterrá-los. E a cada manhã, eles cavam a saída com unhas e dentes.
[05h45]
Kai improvisa um saco de pancadas com um travesseiro recheado de pedras e roupas. Treina em silêncio. Seus punhos sangram, mas ele não para.
Eli se aproxima.
— Você vai acabar quebrando os dedos.
— Ossos se curam. Orgulho, não. — responde Kai, sem olhar para ele.
Eli sorri levemente.
— O que te move, Kai?
— Minha irmã.
Silêncio.
— Você tinha uma irmã?
— Tinha. Se matou aos 11, depois de ser estuprada pelo chefe da fábrica onde trabalhava. A polícia disse que não havia provas. A mãe dele era amiga de um deputado. Ela morreu… e eu nasci ali.
Eli fecha os olhos. Kai para de socar.
— Eu luto por ela. Cada vez que respiro é um insulto ao mundo que a ignorou. E você?
Eli olha para o céu invisível.
— Eu luto porque ainda estou vivo. E isso tem que significar alguma coisa.
[06h20]
Renji está mexendo em um pequeno notebook velho, conectando fios a um rádio confiscado da Yakomi. A tela pisca. Ele sorri.
— Consegui conectar o sistema de vigilância de Gondon. Temos olhos em 4 bairros agora.
— Você é um gênio, Renji. — diz Shu, que observa curioso.
— Não sou. Só sou alguém que já passou fome demais pra confiar nos olhos dos outros.
Renji toma um gole de café frio e então se cala. Depois, olha para Shu.
— Eu não quero morrer.
— Então não morre. — Shu responde, simples.
— Você fala como se fosse fácil.
— Não é. Mas morrer é pior.
[06h43]
Naoko penteia os cabelos de Kuro, que está com febre.
— Tô com calor… — ele murmura.
— É a febre, tolinho. Você dormiu molhado de novo. — ela responde com doçura.
— Eu sonhei que a gente tinha uma casa… com chão de madeira… e janelas de verdade.
— E o que tinha na janela?
— Um gato. Dormindo.
Naoko sorri. E depois chora em silêncio, sem que ele veja.
Eli observa de longe. Ele sente algo quebrar em seu peito. Amor? Dor? Raiva? Talvez tudo ao mesmo tempo.
[07h00]
Mayu caminha com dificuldade. A perna ainda dói, mas ela não aceita ser deixada para trás.
— Teimosia não é força. — Kai diz.
— É sim, quando o mundo quer que você aceite ser fraca.
Ela continua andando, arrastando o peso do corpo e da memória.
[08h00]
— Hoje vamos ao ponto de coleta do mercado negro. Roubar comida, mais antibióticos e talvez… roupas. — Eli anuncia.
— Você quer dizer… invadir a feira dos cães? — pergunta Renji.
— Exato.
A Feira dos Cães era o mercado clandestino mais violento de Gondon. Comandada por três famílias criminosas, entre elas os Irmãos Nokami, protegidos por soldados pagos por Charles.
— É suicídio. — Kai diz. — Lá dentro só tem gente que já matou por um mísero saco de arroz.
— E quem nunca matou por algo pequeno não conhece a fome. — Eli rebate.
— E você, conhece?
— …Estou começando a conhecer.
…
A feira é um aglomerado caótico de barracas tortas, fios pendurados como teias de aranha, pessoas com olhares vazios e bolsos vazios. O ar tem cheiro de peixe podre, suor e pólvora.
Eli caminha com Kai, Mayu e Daisuke. Os outros monitoram o perímetro.
— Dois Nokami na entrada oeste. Um homem vendendo rifles na barraca azul. O ponto fraco é a parte de trás do galpão da Yakobashi, onde entregam remédios. É agora ou nunca.
Daisuke distrai um vendedor, Mayu entra por uma janela quebrada. Eli e Kai dão cobertura.
Mas são vistos.
— EI! GAROTOS! — um homem grita.
Tiros. Correria.
Mayu escapa com duas caixas. Um dos Nokami persegue Kai. Eles lutam. Kai acerta dois socos, mas é atingido por uma barra de ferro na lateral da cabeça.
Sangue.
Eli retorna, com raiva, e derruba o Nokami com uma pedra.
— Estamos ficando bons nisso. — Mayu comenta, mancando com um sorriso debochado.
— Estamos ficando perigosos. — Eli corrige.]
[À noite, de volta ao esconderijo]
Kai está com a cabeça enfaixada. Mayu canta uma música antiga. Renji compartilha o sinal de uma rádio pirata que transmite discursos contra Charles. Shu dorme encostado no ombro de Naoko. Kuro está melhor, segurando uma caixa de sucrilhos como se fosse ouro.
Eli está em pé, olhando um mapa de Tokyo.
— Estamos crescendo. Logo, vão vir atrás da gente. — diz.
— E o que a gente faz quando vierem? — pergunta Mayu.
— A gente mostra que cães de rua… aprendem a morder.
…
Deren aparece, olhando imagens de câmeras hackeadas.
— O grupo de Eli está cada vez mais ousado. Eles estão se tornando algo… maior.
Charles bebe um chá raro. Seus olhos brilham.
— Perfeito. Gondon não precisava de mais criminosos. Precisava de mártires. E eu… de peões com dentes afiados.
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