Capítulo 229 - Vou mudar!
Duas semanas.
Quatorze dias.
Treze noites mal dormidas.
Silêncios longos demais. Esperas que mastigavam o tempo e a sanidade de todos.
Desde o sequestro de Yoru, o mundo parecia estar suspenso numa constante sensação de sufoco. Mas a angústia se intensificou ainda mais com o inexplicável desaparecimento de Wallace — o “guardião” da Viviane, o gênio oculto que vinha crescendo em poder e reconhecimento. E, agora, ele também havia sumido.
Sem vestígios.
Sem rastros.
Sem respostas.
Escola 25, antiga instituição reformada para fins táticos, era agora a base do grupo que resistia nas sombras. As janelas foram reforçadas. Os corredores estavam escuro e sem vida. Cada sala transformada em uma estação de planejamento ou repouso.
Mas naquele fim de tarde, o foco de tudo estava em uma única sala.
A sala de reuniões no terceiro andar.
Paredes isoladas acusticamente. Mapas espalhados pelas mesas. Telas com projeções de imagens congeladas. Uma lousa digital repleta de nomes, conexões e pontos de interrogação. No centro, uma única palavra escrita em vermelho:
CHARLES.
Sophie estava sentada à ponta da mesa, as mãos apoiadas sobre os joelhos. A jovem, sempre intensa e um pouco mpulsiva, agora carregava uma expressão dura, marcada por olheiras profundas e uma frieza inusitada. Estava à frente de tudo — por decisão unânime — mesmo que não tivesse pedido por isso.
Hayato e Ben estavam sentados um de cada lado da mesa. Ambos silenciosos. Ambos diferentes.
Hayato vestia um casaco cinza escuro, os braços cruzados. O olhar dele não era mais o mesmo — menos ardente, mais calculado. Ele havia entendido, pela dor, que força sem estratégia era apenas um espetáculo.
Ben, por sua vez, estava mais magro. O vício pelo cigarro aumentou. Tinha um caderno aberto à frente, com anotações em garranchos rápidos. Seu olhar? Obsessivo. Quase doentio.
— Já são quatorze dias. — Sophie quebrou o silêncio. Sua voz era firme. — O que temos?
Hayato respondeu primeiro:
— Nenhuma comunicação. Nenhuma movimentação visível. E os informantes enviados para o perímetro da Zona onde o Charles controla sumiram misteriosamente.
Ben resmungou, sem levantar o olhar:
— Foram interceptados… ou pior, redirecionados. Charles tem um poder que nem os governos têm.
Sophie apertou os olhos.
— E o Wallace?
Hayato bufou.
— Desapareceu do nada. Segundo relatos da Viviane, ele saiu para treinar com Thomas e não voltou. No dia seguinte, Thomas disse que ele tinha voltado para a mansão na frente, e foi verdade, mas ele realmente sumiu
Ben completou:
— O corpo dele não mostra ferimentos. Nenhum arranhão. Mas a mente sofreu interferência.
— Interferência? — Sophie estreitou os olhos.
— Exato. — Ben puxou o caderno. — Uma técnica semelhante à manipulação de memória, mas feita em um nível mais profundo. A mente dele foi parcialmente resetada. Como se Charles não quisesse que nem o cheiro do Wallace fosse rastreável.
Sophie se levantou da cadeira. Caminhou até a lousa. Apontou para o nome de Yoru. Depois, Wallace.
— Dois desaparecimentos. Dois alvos distintos. Um deles é instável, emocionalmente vulnerável, mas com poder de ruptura — Yoru. O outro, estrategista e cada vez mais forte — Wallace. Por que os dois?
Antes que alguém respondesse, a porta da sala se abriu.
Ryuji apareceu na porta e foi até seus amigos
— Porque os dois… estão ligados. — disse ele, com voz grave.
Todos se viraram.
Sophie estreitou os olhos.
— Ryuji…
— Vocês estão olhando para o jogo como se fosse um tabuleiro. — Ryuji avançou até a mesa. — Mas Charles não joga xadrez. Ele constrói o tabuleiro. Ele dita as regras.
Ben se inclinou.
— Vai direto ao ponto, Ryuji.
Ryuji cruzou os braços.
— Charles não precisa dos dois como prisioneiros. Ele precisa deles como variáveis. Peças que podem quebrar o sistema por dentro. Ele sequestrou Yoru para estudar os limites da obediência. Para ver até onde pode dobrar um ser como ele. E o Wallace…
— …é o catalisador. — completou Sophie, entendendo de imediato. — Ele entende as emoções do Yoru. Ele convive com a Viviane. Ele conhece os bastidores. Ele é uma ponte.
Ryuji assentiu.
— E mais: Charles não mandou a Yue sequestrar o Yoru à toa. Ele mandou a Yummi sequestrar Wallace. Isso é uma jogada psicológica.
Hayato fechou os olhos.
— Duas figuras femininas. Duas memórias afetivas.
Ben franziu o cenho.
— Ele está desconstruindo os laços deles.
Sophie mordeu o lábio.
— E transformando esses laços… em correntes.
Ryuji se aproximou da tela. Tocou o nome “Charles” com os dedos.
— Ele está preparando algo. E se ele tiver sucesso… nós não vamos mais estar enfrentando o Charles.
— Nós vamos estar enfrentando o Yoru… e o Wallace. — completou Hayato, com voz baixa.
Silêncio.
Ben puxou o cigarro. Acendeu. Tragou fundo.
— Estamos ferrados.
Sophie fechou os olhos por um segundo. Respirou fundo.
— Ainda não.
Todos a olharam.
— Enquanto eles estiverem vivos, temos uma chance. Só precisamos… descobrir onde eles estão.
— Ou com quem. — disse Ryuji.
Nesse momento, a porta se abriu de novo. Ash apareceu com pressa, ofegante.
— Precisam ver isso. Agora.
Todos se levantaram e o seguiram até a sala de monitoramento.
Na tela central, uma transmissão clandestina. Um vídeo novo. Sinal criptografado.
Era uma gravação em preto e branco.
Yoru, acorrentado, sentado em uma sala iluminada por luz branca. Seus olhos, vagos. A pele, pálida. Atrás dele… a sombra de uma figura.
Charles.
Ele apareceu apenas por um segundo. Seu rosto não foi mostrado. Mas sua voz… cortou tudo.
> — Olá, resistência.
Vejo que ainda estão lutando para entender o jogo.
Então deixem-me facilitar:
O próximo a sumir… será um de vocês.
A transmissão caiu.
E então, todos na sala entenderam: a guerra não era mais uma possibilidade. Era uma sentença.
…
A luz da manhã atravessava a cortina azulada do pequeno apartamento.
O mesmo céu. O mesmo vento.
Mas para Hina, tudo parecia mais cinza.
Dois pratos na mesa, mas só um com comida.
Duas escovas no banheiro, mas só uma usada.
Dois travesseiros na cama, mas um intacto todas as noites.
Desde o sequestro de Yoru, Hina sentia como se uma parte de seu corpo tivesse sido arrancada. Ele não era apenas seu namorado. Era seu lar, sua âncora, sua razão para aguentar dias que já eram pesados por si só.
Agora, a ausência dele era um fantasma que percorria cada canto da casa.
O som do relógio na parede parecia zombar dela, batendo compassado como um coração que ainda batia… por ninguém.
Hina estava sentada no chão da sala, com as pernas encolhidas e os olhos vermelhos. Em suas mãos, uma blusa de Yoru. O tecido já não carregava mais o cheiro dele. Mas mesmo assim, ela a abraçava como se ainda fosse.
— …Você prometeu… — sussurrou, com a voz embargada. — Disse que nunca mais ia me deixar sozinha…
As palavras se dissolveram no ar.
Do lado de fora da janela, as ruas de Tokyo continuavam sua rotina indiferente. Carros passavam. Pessoas iam e vinham. O mundo não parava. Mas o mundo de Hina… tinha desmoronado.
Todos os dias eram iguais desde que ele sumiu.
Ela acordava. Esperava uma mensagem. Um sinal.
Nada.
Comia quase à força. Evitava contato com os outros.
Não queria conversa.
Só queria Yoru.
As noites eram as piores.
A cama era fria. O espaço ao lado, um abismo.
Ela virava de lado, abraçava o travesseiro, tentava lembrar da voz dele, da respiração, do jeito que ele a chamava de “amor” com um sorriso bobo.
Mas tudo o que conseguia lembrar, com cada vez mais dificuldade, era o vazio.
Era como se… ele estivesse desaparecendo de dentro dela também.
Uma lágrima escorreu. Ela não se incomodou em secar. Já havia se acostumado.
Ela se levantou lentamente, indo até a sacada. Olhou o horizonte.
— Onde você tá, Yoru…?
— Por que você não voltou…?
As mãos tremiam. Ela apertou os punhos, tentando conter a fúria que nascia junto da tristeza.
Ela queria acreditar que ele estava vivo.
Queria.
Mas parte dela… estava quebrando.
Em Algum Lugar…
Ambiente estéril. Branco. Gelado.
Túneis metálicos. Salas fechadas.
Nenhuma janela. Nenhum som exterior.
Yoru e Wallace estavam deitados em camas de ferro, com braços e pernas amarrados por tiras reforçadas. Ambos desacordados. Respiração lenta. Eletrodos colados em seus peitos, têmporas e nucas. Seus corpos estavam nus da cintura pra cima, cobertos apenas com lençóis até a cintura.
O quarto tinha cheiro de formol. Cheiro de desumanidade.
As luzes pulsavam levemente, como se a própria sala estivesse viva. Havia câmeras em todos os cantos. E sensores que monitoravam sinais vitais em tempo real.
No centro, entre as duas macas, ele caminhava com um leve assobio.
Um homem de jaleco.
Magro, alto, cabelo grisalho e despenteado.
Óculos tortos, um deles quebrado. Sorriso largo demais para ser sincero.
Dr. Murell.
Médico. Bioengenheiro. Psicólogo.
E um lunático a serviço de Charles.
— Ahhh, meu preciosos espécimes… — disse ele, olhando ora para Yoru, ora para Wallace. — Nunca imaginei que teria o prazer de trabalhar com dois cérebros tão… fascinantes.
Ele estalou os dedos.
— O quebrado… — apontou para Wallace. — Inteligente, estratégico, curioso.
— E o vácuo… — apontou para Yoru. — Instintivo, programável, destrutivo.
— Um com alma. Outro com ausência dela.
— Tsc tsc… que delícia.
Caminhou até uma bancada. Pegou uma seringa. Um líquido verde-claro preenchia o cilindro.
— A fórmula 7-X. Uma beleza rara. Modifica os impulsos elétricos da memória. Apaga traumas… ou… cria novos.
Aproximou-se de Yoru.
— Vamos ver se consigo despertar você, garotão. Vamos fazer você lembrar do que nunca viveu.
Aplicou a injeção direto no pescoço. O corpo de Yoru estremeceu por um segundo, os dedos se contraíram.
Dr. Murell sorriu.
— Muito bem… muito bem…
Caminhou até Wallace.
Pegou uma segunda seringa. Dessa vez, um líquido violeta.
— Para você, algo especial… Uma substância que acelera a atividade cerebral a níveis sobre-humanos. Mas… o preço é a sanidade. Será que o gênio aguenta?
Aplicou a dose com prazer sádico.
Wallace gemeu. Seus olhos se abriram por um instante. Pupilas dilatadas. Mas logo voltou à inconsciência, suando frio.
Dr. Murell se afastou, contemplando os dois.
— Charles me deu um prazo… sete dias.
— Para que vocês dois… virem armas.
— Sem passado. Sem vontade.
— Apenas… função.
Ele riu. Sozinho. Um riso longo, perturbado, que ecoava pelas paredes como uma assombração.
As luzes da sala piscaram.
Yoru gemeu, pela primeira vez.
Wallace rangeu os dentes.
As mentes estavam começando a ruir.
Enquanto isso…
Na sacada de seu apartamento, Hina ainda olhava o céu.
O celular vibrou.
Ela correu. Uma mensagem?
Mas era só propaganda.
Ela caiu de joelhos no chão da sala.
Chorou.
E no horizonte, uma tempestade se aproximava.
Porque o que estava por vir…
não seria um resgate.
Seria uma transformação.
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