Capítulo 235 - Treinar até morrer
O sol já estava pendendo para o ocidente, tingindo o céu com um degradê de laranjas, dourados e tons arroxeados. O templo de Aiko, isolado no topo da colina, parecia ainda mais imponente sob aquela luz suave, com as sombras longas das lanternas de pedra se projetando pelo pátio. O canto distante de um corvo cortava o silêncio que reinava desde o início da tarde.
Hayato subia lentamente os últimos degraus da escadaria — não correndo como no início da manhã, mas arrastando os pés, com o corpo todo curvado como se carregasse o próprio templo nas costas. Cada passo fazia seus músculos gritar, e a blusa simples que vestia estava encharcada de suor.
— Acabou… — murmurou para si, arfando. — Se eu não morrer até o fim da semana, já é uma vitória.
Passou pelo portão de madeira e entrou no pátio principal. Aiko não estava à vista. Ele respirou fundo, endireitou-se e olhou em volta, tentando manter a postura, apesar da vontade desesperada de se jogar no chão. Caminhou até a varanda onde, no início do dia, ela havia ficado observando-o.
Ao virar para o corredor lateral, viu Aiko sentada, apoiada contra um pilar, olhos semicerrados como quem cochilava.
— Ela… tá dormindo mesmo? — pensou Hayato, contendo um sorriso maroto.
Chegou bem perto, até ficar a menos de um metro dela.
— Acabei! — disse em voz alta, quase gritando.
O resultado foi imediato.
Aiko deu um salto, instintivamente fechando o punho como se fosse desferir um golpe.
— MAS QUE—! — Ela quase acertou um soco no rosto dele. — Você tá querendo morrer, moleque?!
Hayato recuou dois passos, levantando as mãos em rendição.
— Calma! Calma! Só vim avisar que terminei.
— Terminei, ele diz… — resmungou Aiko, batendo no próprio peito para se acalmar. — Você acha que é engraçado me acordar assim, é? Você sabia que eu podia ter te dado um soco que ia te mandar direto pro além?
— Bom… se for pro além, pelo menos eu conheço um templo por lá — respondeu Hayato, tentando segurar o riso.
— Não faça piada com a morte na minha frente, seu… — ela travou no meio da frase, respirou fundo e juntou as mãos num gesto de oração. — Perdão, Buda. Perdão pelas palavras impuras que estou prestes a dizer.
— Vai dizer ou não vai? — Hayato ergueu a sobrancelha.
— Vou… mas com o coração limpo. — Ela abriu os olhos, olhou para ele de cima a baixo e disse com um tom irritado: — Você é um idiota!
Hayato riu alto, o som ecoando pelo pátio.
— Melhor isso do que ser um morto.
Aiko suspirou e apoiou as costas na coluna de novo.
— Escuta… seu “treinamento” de hoje já acabou.
— Como assim? — Ele arregalou os olhos. — Passei o dia inteiro limpando, subindo e descendo escada… e é só isso?
— É. — Aiko bocejou. — Amanhã a gente continua. Hoje eu estou cansada. Quero dormir.
— Você… tá me zoando, né? — Hayato inclinou o corpo para frente, como se tentasse confirmar se ela estava falando sério. — Dormir? Você ficou sentada me olhando e agora tá cansada?
— Acredite ou não, vigiar um idiota como você também consome energia. — Ela se levantou, esticando os braços para alongar o corpo.
Foi nesse momento que Hayato notou algo. Quando ela deu o primeiro passo, o som não foi exatamente o de uma sandália tradicional tocando o chão. Era um som metálico, seco, diferente. O olhar dele baixou instintivamente. Sob a calça larga de Aiko, o contorno e o brilho revelaram o que parecia ser uma perna artificial… de metal.
— … Espera aí. — Ele franziu o cenho. — O que é isso?
Aiko parou, virou o rosto lentamente na direção dele, mas sem esboçar um sorriso.
— Isso… não é algo que você precise saber agora.
— Mas—
— Não insista. — Sua voz saiu mais firme, com um peso que calou Hayato no mesmo instante. — No momento certo… eu vou te contar.
Ele respirou fundo, cruzou os braços e desviou o olhar.
— Tá. Mas vou ficar curioso.
Aiko deu um leve sorriso de canto.
— É bom que fique. A curiosidade, se usada do jeito certo, pode te deixar mais forte. — E então se virou, andando pelo corredor em direção ao seu quarto.
Hayato ficou parado ali, observando a figura dela se afastar, a luz do entardecer iluminando seu cabelo e projetando uma longa sombra no chão do templo.
— Ela é cheia de mistérios… — pensou. — Mas… acho que é por isso que quero aguentar esse treino.
E assim, o pátio mergulhou novamente no silêncio, quebrado apenas pelo som distante do vento batendo nos sinos de metal pendurados no beiral.
Claro.
…
A noite havia caído sobre Okinawa com uma serenidade enganosa. O vento trazia consigo o cheiro salgado do mar, misturado ao aroma das plantas recém-aparadas por Hayato. A pequena casa de madeira onde ele e Aiko estavam hospedados parecia ainda mais silenciosa sob a luz prateada da lua, como se todo o mundo estivesse adormecido — exceto ele.
Hayato estava no quintal, de camiseta simples e calças folgadas, os pés descalços tocando o chão frio. O suor ainda escorria de seu rosto, resquício do inferno físico que vivera durante o dia. Mesmo exausto, não conseguia ficar parado. Algo dentro dele queimava como brasa prestes a se tornar incêndio.
— Um dia sem treino… é um dia perdido… — murmurou para si mesmo, cerrando os punhos.
A respiração se tornou mais profunda, o olhar focado no vazio à frente. Então, começou.
Os primeiros socos foram lentos, quase tímidos, mas rapidamente ganharam força e precisão. Cada golpe cortava o ar com um estalo seco, como se pudesse partir o vento ao meio. Ele não enfrentava um inimigo físico naquele momento — seu adversário era imaginário, mas tão real em sua mente que cada esquiva, cada avanço, cada golpe era carregado de intenção letal.
No corredor lateral da casa, encostada no batente de uma porta, Aiko o observava. Não fez som, não anunciou sua presença. Apenas deixou os olhos passearem sobre a silhueta dele, iluminada pela luz pálida da lua. Havia algo na maneira como Hayato se movia — não era apenas força bruta. Havia instinto, fome de superação, e… uma sombra. Uma sombra que lembrava alguém que ela conheceu há muito tempo.
Seus olhos se perderam por alguns segundos, e o presente começou a se dissolver. O vento frio da noite deu lugar a um calor sufocante, o cheiro do mar foi substituído pelo odor de pólvora e sangue. Ela piscou — e estava de volta aos seus 25 anos.
Okinawa. Primeira Geração.
O chão tremia sob o som de passos apressados e explosões. As ruas estavam tomadas por gangues e mercenários, mas nenhum deles ousava se aproximar dela. Aiko, vestindo um uniforme simples, as mangas arregaçadas, avançava pelo campo de batalha com punhos que rompiam o ar como projéteis de artilharia.
— Sai da frente ou eu vou abrir um buraco no seu peito! — gritou, antes de desferir um golpe que acertou um homem corpulento. O impacto foi tão brutal que o ar ao redor estourou, como o disparo de uma bazuca.
Os inimigos caíam um a um, o som dos ossos quebrando ecoava como sinos macabros, e cada respiração dela era medida, precisa. Ninguém era páreo. Ninguém ousava ficar no seu caminho.
Até que o chão sob seus pés se partiu.
O estrondo ensurdecedor foi seguido por uma onda de poeira e fumaça. Ela caiu de joelhos, não por fraqueza, mas porque algo colossal havia atingido o prédio ao lado, derrubando uma pilha de escombros sobre ela.
No meio do caos, enquanto seu corpo era esmagado, ela viu… ela.
Uma figura feminina, de cabelos brancos tão puros que refletiam a luz da lua, como se estivessem molhados. O rosto jovem, quase angelical, contrastava com o sorriso insolente que carregava. Nos lábios, um pirulito vermelho girava lentamente, como se estivesse degustando não apenas o doce, mas o sofrimento diante dela.
— Tsc… tão forte… mas tão vulnerável. — disse a mulher, inclinando a cabeça para o lado, como quem analisa uma obra de arte imperfeita.
Aiko tentou se mover, mas a dor explodiu em sua perna. O sangue quente descia por sua pele, e ela sabia… algo ali estava perdido para sempre.
O som da risada daquela mulher ecoou, misturado ao estalar do pirulito entre seus dentes.
— Você não vai me esquecer, Aiko. Nunca. —
O cenário desapareceu tão rápido quanto veio, como uma chama apagada por vento.
De volta ao presente, Aiko ainda estava parada no corredor, os dedos cerrados sem perceber. Seu olhar havia endurecido, mas a respiração se manteve calma.
No quintal, Hayato finalizava uma sequência de golpes, o corpo arqueado pelo cansaço. Ele parou por um momento, como se tivesse sentido algo. Virou-se, encontrando o olhar dela.
— Hm? — ele arqueou uma sobrancelha. — Tá me espionando agora?
Aiko respirou fundo, controlando o turbilhão que lhe tomava a mente. Um sorriso leve surgiu, mas não alcançou seus olhos.
— Só observando… — respondeu, a voz neutra. — Continue, Hayato. Treine até o corpo não aguentar mais… porque um dia, isso vai ser a única coisa que vai te manter vivo.
Ele franziu o cenho, intrigado pela gravidade das palavras. Mas não perguntou nada. Voltou a golpear o ar, sentindo o peso daquele olhar sobre si, mesmo sem entender totalmente o que ele significava.
E, no silêncio da noite, Aiko manteve-se imóvel, com a lembrança da mulher de cabelos brancos ainda queimando como um veneno antigo dentro dela.
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