Capítulo 243 - O passado de Wallace
O céu daquela noite estava pesado, coberto por nuvens cinzentas que refletiam as luzes artificiais da cidade. O vento soprava frio, trazendo o cheiro de chuva misturado ao odor ácido das ruas úmidas. Wallace tinha apenas dezesseis anos, ainda um garoto tentando sobreviver em um mundo que não perdoava fraqueza. Mas ao lado dele havia sempre alguém — seu irmão mais velho, William.
William era tudo o que Wallace não era: seguro, paciente, com aquele sorriso leve que fazia parecer que nada podia abalá-lo. Enquanto Wallace vivia se perdendo na própria raiva, William era o equilíbrio, a mão que o puxava de volta à realidade.
Naquela noite, caminhavam juntos por uma viela escura, os passos ecoando pelo chão molhado. William trazia uma sacola com pão e arroz, o jantar que conseguiram comprar com muito esforço. Wallace, como sempre, reclamava.
— Mano… eu não aguento mais viver assim. Correndo atrás de migalhas, fugindo de gangues, escondendo o tempo todo… a gente tinha que ser mais forte! — disse Wallace, chutando uma lata velha que rolou pelo beco.
William riu baixo.
— Você fala como se fosse simples, Wallace. Força não é só músculo ou lutar até sangrar. Força é saber o momento de recuar, de proteger quem importa. — Ele colocou a mão sobre a cabeça do irmão, bagunçando os cabelos dele. — E você é minha força, sabia?
Wallace franziu a testa, meio irritado.
— Eu? Sua força? Você que sempre me protege, William. Se não fosse por você, eu já estaria morto faz tempo.
William apenas sorriu.
— Eu vivo por você. É simples assim.
Essas palavras ecoariam para sempre na mente de Wallace.
—
O beco parecia normal, mas então, do nada, o ar ficou mais pesado. Wallace sentiu um arrepio subir pela espinha. O instinto gritava que algo estava errado. William parou de caminhar e olhou para frente.
Na sombra, surgiu uma figura. Uma garota de passos leves, cabelos negros caindo pelos ombros, olhos tão frios quanto a lua. Era Yummi Blaker.
Wallace nunca a tinha visto antes, mas a simples presença dela paralisou seu corpo. Era como encarar a morte encarnada.
William imediatamente colocou o braço à frente do irmão, protegendo-o.
— Quem é você? — perguntou, firme, mas Wallace percebeu o leve tremor na voz dele.
Yummi não respondeu de imediato. Seus olhos passearam entre os dois, como se analisasse cada detalhe. Então, um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios.
— Um obstáculo. Só isso.
Ela avançou em silêncio. Nenhum som de passos. Como um fantasma.
William empurrou Wallace para trás.
— Corra, Wallace! — ele gritou.
— O quê? Não! Eu não vou te deixar aqui! — Wallace tentou agarrá-lo, mas William já havia avançado, o corpo ereto, os punhos cerrados.
Era a primeira vez que Wallace via seu irmão lutar de verdade. William sempre evitava brigas, mas agora, diante daquela ameaça, algo nele despertou. Os golpes eram firmes, diretos, cheios de vontade. Ele não queria vencer. Queria apenas ganhar tempo para o irmão fugir.
Mas Yummi… ela era diferente. Cada movimento dela parecia calculado, perfeito. Ela desviava sem esforço, seus olhos nunca piscavam, o corpo nunca vacilava. Ela não estava lutando. Estava apenas brincando.
Wallace assistia em desespero, o coração batendo tão rápido que doía.
— William! — ele gritava, mas o irmão não olhava para trás.
O sangue escorreu pela primeira vez quando Yummi acertou um chute seco no abdômen de William, jogando-o contra a parede. O impacto ecoou pelo beco, e Wallace sentiu o mundo girar.
— PARE! — Wallace correu até ela, mas foi agarrado pelo pescoço e jogado longe, batendo contra o chão encharcado. A dor foi insuportável, mas nada comparado ao que sentia ao ver o irmão apanhando.
William tossiu sangue, mas se levantou de novo. Com os olhos fixos em Wallace, sorriu fraco.
— Não… chore, irmãozinho. Você tem que sobreviver.
Essas palavras atravessaram Wallace como facas.
Yummi ergueu a mão, os dedos tensos como garras. A aura dela parecia cortar o ar. Wallace tentou correr, gritar, mas o corpo não respondia.
E então, aconteceu.
Um único golpe. Simples. Preciso. Mortal.
A mão de Yummi atravessou o peito de William. O som do osso quebrando, da carne se rasgando, ecoou como um trovão na mente de Wallace. O sangue jorrou, respingando no rosto dele.
O tempo parou.
William tossiu, os olhos ainda fixos em Wallace. Um sorriso manchado de sangue surgiu em seus lábios.
— Eu disse… que você era minha força… viva por mim… Wallace.
E então, seu corpo desabou, pesado, inerte, caindo na poça d’água que refletia a lua fria daquela noite.
Wallace caiu de joelhos, gritando, o som de sua voz ecoando pela cidade como um lamento desesperado.
— WIIIIIIILLIAAAAAAM!!!!
Ele correu até o corpo do irmão, o abraçando, tentando aquecê-lo, mas já não havia calor algum. Só o frio da morte. Suas lágrimas se misturavam ao sangue, a garganta queimava de tanto gritar.
— Por quê?! — Wallace urrou, olhando para cima, encarando Yummi. — POR QUÊ?!!
Mas Yummi apenas o observava em silêncio, os olhos vazios.
— Porque era necessário. — ela respondeu, a voz gélida, como se estivesse comentando o tempo.
E então, sem dizer mais nada, ela desapareceu na escuridão, deixando Wallace sozinho, abraçado ao corpo do irmão, perdido em um mar de dor que jamais cicatrizaria.
Naquele momento, Wallace deixou de ser apenas um garoto. A inocência morreu junto com William.
Naquele beco, sob a lua fria, nasceu algo que cresceria e o consumiria para sempre: ódio.
—
Wallace permaneceu ali até o amanhecer, abraçado ao corpo sem vida, repetindo em soluços:
— Eu prometo, irmão… eu prometo… vou viver. Mas vou destruir ela. Vou destruir cada maldito resquício dela…
E assim, no coração de um garoto quebrado, foi plantada a semente da vingança.
O corpo de Wallace ardia, a respiração falhava, os músculos latejavam com cada movimento. A droga corria como fogo em suas veias, distorcendo sua visão, embaralhando sua mente. Ele já não via o hospital, as paredes rachadas, o sangue respingado no chão.
Não.
Ele via o beco.
Aquela maldita noite.
A lua refletida na poça d’água misturada ao sangue do irmão.
— WIIIIILLIAAAAAM!!! — Wallace gritou, mas o som não saiu alto, apenas ecoou dentro dele, como um lamento eterno.
Cada vez que seus punhos acertavam Tom, ele não via Tom. Ele via Yummi. Os olhos frios dela, o sorriso quase invisível, o golpe que atravessou o peito de William. Era como se estivesse preso em uma repetição sem fim.
Tom desviou de um soco, segurou o braço de Wallace e empurrou-o para trás.
— Wallace! Olha pra mim! — ele gritou. — Eu não sou ela! Eu não sou seu inimigo!
Mas Wallace não ouvia. Seus olhos estavam marejados, cheios de dor. Ele avançou novamente, socando com toda a fúria que guardava há anos.
— VOCÊ MATOU ELE! VOCÊ ROUBOU MEU IRMÃO! — gritou, a voz quebrada. — EU NUNCA MAIS… NUNCA MAIS VOU TE PERDOAR!!!
Tom sentiu um aperto no peito. Aquilo não era apenas luta. Era um desabafo. Era a alma de Wallace gritando por justiça, ou pelo menos por vingança.
De repente, Wallace vacilou. O corpo dele travou por um segundo, e em sua mente, a cena voltou clara demais: William sorrindo, mesmo com o peito atravessado, dizendo aquelas palavras:
“Você é minha força. Viva por mim.”
A droga intensificava a memória, como se a dor tivesse sido revivida mil vezes. Wallace levou as mãos à cabeça, gritando, caindo de joelhos por um instante. As lágrimas desceram sem controle.
Tom se aproximou, hesitante.
— Wallace… eu sei que você está sofrendo. Eu sei que essa dor é insuportável… mas se continuar assim, vai se destruir.
Mas antes que pudesse terminar, Wallace se ergueu de novo, os olhos vermelhos de lágrimas e ódio.
— Eu não posso parar! — rugiu. — Se eu parar, eu esqueço o William! Eu não vou esquecer! Nunca!!!
E então, como se fosse possuído pela própria lembrança, o corpo de Wallace brilhou por dentro.
O Modo Automático foi ativado.
Por dez segundos, Wallace não era apenas um lutador. Ele era a soma da dor, da raiva, da memória e da vingança. Seus golpes eram tão perfeitos que pareciam coreografados por um deus. Cada chute, cada soco, era como se fosse o último que daria na vida.
Tom recuava, desviando por instinto, o Estilo Fera rugindo dentro dele. Mas mesmo com toda sua brutalidade, ele sentia: Wallace não estava lutando contra ele. Wallace estava lutando contra o passado.
— Wallace! — Tom gritou, segurando os punhos dele, sangue escorrendo de sua boca. — Seu irmão não queria isso! Ele queria que você vivesse! Ele morreu acreditando em você, não nessa raiva!
Por um segundo, os olhos de Wallace tremeram.
A cena do beco voltou.
William, sorrindo, dizendo com a voz fraca: “Viva por mim.”
O corpo de Wallace fraquejou. A perfeição do modo automático se desfez, os músculos tremendo, a respiração falhando. Ele caiu de joelhos, derrotado, lágrimas caindo em cascata.
Tom permaneceu em silêncio, olhando para ele. Sentia o peso daquela dor. Não havia nada que pudesse dizer para apagar o que Yummi tinha feito.
Wallace, entre soluços, murmurou:
— Eu não consigo… eu não consigo viver sem carregar isso… cada vez que fecho os olhos… eu vejo ele… e eu sinto o sangue dele em minhas mãos…
Tom se abaixou, colocando a mão no ombro dele.
— Então viva, Wallace. Mas não viva para a vingança. Viva para o William. Honre ele. Ele acreditava em você.
O silêncio tomou conta da sala. Apenas os sons de respiração pesada e choro preenchiam o ar. Wallace desmaiou logo depois, exausto, a mente quebrada pela mistura de dor, drogas e memórias.
Tom o segurou antes que caísse, colocando-o nos ombros. Seus olhos endureceram.
— Yummi… você não faz ideia do que criou. — ele murmurou, caminhando para fora. — Mas eu prometo… não vou deixar esse garoto ser destruído pelo mesmo ódio que matou o irmão dele.
E, enquanto o hospital ruía em gritos e batalhas ao longe, Tom carregava Wallace, não como inimigo… mas como alguém que precisava ser salvo.
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