Capítulo 104: Os Leões Negros (5/9)
Depois que Melkith tomou sua decisão, o contrato foi imediatamente finalizado. Ele não havia sido apenas escrito em papel, mas criado por magia, de forma que nem mesmo uma Arquimaga como Melkith conseguiria se livrar dele.
— O que acontece se eu acabar destruindo o manto? — Eugene perguntou, curioso.
Quem respondeu foi a própria Melkith:
— Você só vai precisar me indenizar pelo valor do manto. Não se preocupe, não vou pedir sua vida por isso.
Francamente, ela nem estava em posição de fazer uma exigência desse tipo. Embora Eugene não fosse um herdeiro, ainda assim era filho adotivo da família principal dos Lionheart. Se fizesse um pedido tão absurdo, estaria claramente comprando briga com o clã, e Melkith não queria isso.
— Mas esse tipo de coisa nem teria como acontecer em primeiro lugar — Melkith acrescentou. — O Manto das Sombras foi feito especificamente como um artefato de defesa de altíssimo nível. Se o manto fosse destruído enquanto você estivesse usando… então provavelmente você já estaria morto. Entendeu o que estou querendo dizer, garoto?
— Você quis dizer que, se eu não quiser morrer, é melhor tomar cuidado? — Eugene respondeu, sem muita certeza.
— Exato. Não fique desfilando por aí confiando demais na defesa dele. Seja discreto. Tudo bem usar em uma festa chique, mas não vá lutar com ele.
Se era para usar só assim, por que ele precisaria de um manto desses? Eugene bufou e jogou o Manto das Sombras sobre os ombros.
— O design é impressionante — comentou Carmen do assento na janela. Ainda com o charuto apagado na boca, ela disse: — Gosto especialmente da gola de pelo espesso. Me lembra o símbolo do nosso clã Lionheart, a juba do leão.1
— Suponho que lembre mesmo — Eugene concordou educadamente.
— Mas é uma pena o pelo ser preto. Se fosse tingido de branco, como as chamas da Fórmula da Chama Branca, ou… talvez cinza, pareceria bem mais impressionante. A cor atual combina mais com alguém dos Cavaleiros do Leão Negro — Carmen avaliou.
— … — sem dizer nada, Eugene encarou Carmen com uma expressão vazia.
Carmen também ficou olhando para Eugene sem falar palavra alguma. Depois de alguns segundos nesse embate de olhares, Ciel, sentada ao lado dele, cutucou sua cintura.
— Entrega logo — sibilou ela.
— Por quê? — Eugene resmungou.
— Você não ouviu ela dizendo que quer experimentar?
— Mas acho que ela nem disse nada disso.
— Ela não precisa dizer com todas as letras pra você entender o que quis dizer.
Que bobagem era essa que Ciel estava dizendo agora? Embora Eugene não entendesse muito bem, sentia a pressão incômoda do olhar de Carmen.
— …Pode experimentar — disse ele, contrariado, tirando o manto. Carmen imediatamente se aproximou.
Com uma expressão de total indiferença, ela pegou o manto das mãos de Eugene e o envolveu ao redor do corpo com um floreio.
— Nada mal — comentou Carmen, observando seu reflexo na janela e fazendo lentamente uma série de poses.
Eugene observava suas costas enquanto ela fazia isso. Já tinha visto muitos idosos em suas vidas passada e presente, mas era a primeira vez que via uma anciã tão peculiar quanto Carmen, que parecia incapaz de agir conforme a própria idade.
— Acho que ficaria ainda melhor se você usasse um broche em forma de leão para prender na altura do peito. Também poderia bordar o brasão dos Lionheart nas costas — sugeriu Carmen.
— Pelo jeito que está falando, parece até que estou te dando o manto. Não se engane. Só estou te emprestando, entendeu? Não venha mexer no meu manto — gritou Melkith, que até então observava Wynnyd com olhos gananciosos.
No entanto, Carmen não reagiu ao protesto. Depois de continuar admirando seu reflexo na janela por mais alguns segundos, finalmente tirou o manto ao ouvir Naishon tossir várias vezes de propósito.
— Já está na hora. Vamos — declarou Carmen.
— Sim, senhora — respondeu Naishon, aliviado, ao se levantar.
Ele estava preocupado que Carmen saísse dali sem tirar o manto, mas felizmente ela não parecia disposta a fazer algo tão descarado e embaraçoso.
— Ciel — antes de deixar a sala de visitas, Gion chamou o nome de Ciel.
— Sim, vou esperar com o Eugene — respondeu Ciel prontamente, com um sorriso no rosto, como se já estivesse esperando que isso acontecesse.
Ao contrário do sorriso leve de Ciel, o rosto de Gion mostrava uma expressão um tanto relutante. No entanto, Eugene não teve oportunidade de perguntar o motivo, pois Carmen saiu da sala logo em seguida, sem dar chance para qualquer conversa.
Assim que Carmen e os outros Cavaleiros do Leão Negro se retiraram, Melkith se levantou de repente e disse:
— Eu também estou de saída.
Ela estava abraçada a Wynnyd com força contra o peito, sorrindo tão largamente que até as bochechas começaram a tremer de leve.
— Com certeza não vai levar tanto tempo quanto vocês estão imaginando — disse Melkith, com um ar de triunfo. — No máximo, meio dia?
— Nesse caso, eu vou com você — sugeriu Eugene.
Mas Melkith recusou imediatamente:
— De jeito nenhum. Quem foi que disse que você podia vir? Escuta, garoto, isso aqui envolve um contrato com um espírito. Embora a afinidade do invocador com o espírito seja importante, o ambiente e a atmosfera do local também influenciam. Então… se for pra fazer uma comparação, pense nisso como um encontro com um potencial cônjuge.
— Hã? — Eugene soltou um grunhido de confusão.
— Pensa bem. Como você se sentiria se chegasse todo empolgado no local do encontro e encontrasse um estranho qualquer fazendo companhia pra pessoa que você devia conhecer?
— Acho que não faria tanta diferença assim. Talvez a pessoa só ache que fui eu quem organizou o encontro?
— Você não tem nenhuma experiência com esse tipo de coisa?
— Hã?
— Experiência com encontros arranjados para casamento.
— Eu só tenho dezessete anos.
— E desde quando isso é um impedimento? Famílias tradicionais costumam organizar essas coisas bem antes disso. Foi o que li nos romances.
— Por favor, não confunda ficção com a realidade.
— Então é verdade? Nunca teve um? Como sempre, a realidade nunca chega aos pés da ficção — Melkith parou de divagar e se virou para ele. — Enfim, você não pode vir comigo. Agora que estou prestes a seduzir o Rei dos Espíritos do Vento, o que vou fazer se ele ver que você está comigo e se recusar a fazer o contrato? Você não acha que seria uma falta de respeito com o Rei dos Espíritos?
— Mas eu queria ver o Rei dos Espíritos do Vento com meus próprios olhos — reclamou Eugene.
— Não se preocupe — Melkith estufou o peito com orgulho. — Assim que o contrato estiver assinado, deixo você vê-lo quando eu devolver Wynnyd.
Eugene assentiu. Como a própria Melkith havia dito, não parecia provável que Tempest fosse aparecer se ele estivesse junto. Para falar a verdade, aquela comparação com encontro de casamento arranjado ainda soava absurda, mas o fato era que Tempest já sabia que Eugene era Hamel, e mesmo assim se recusava a atender seu chamado.
“Aquele desgraçado tá claramente escondendo alguma coisa de mim.”
Naquele encontro quatro anos atrás, Tempest havia dito que não sabia de nada, mas Eugene não confiava naquela resposta.
“Mesmo que ele realmente não saiba nada sobre o Juramento de Paz, ele com certeza deve lembrar do que aconteceu antes da luta contra o Rei Demônio do Encarceramento.”
Eugene decidiu que, pelo menos, precisava questionar Tempest sobre isso.
Depois que Melkith partiu, restaram na sala apenas Eugene, Lovellian e Ciel.
Lovellian, só então, pareceu perceber:
— …Ah, perdoe-me pela demora em cumprimentá-la, senhorita Ciel. Já se passaram quatro anos desde a última vez que nos encontramos, não?
— Sim, senhor — Ciel respondeu com um sorriso polido.
Alguns meses antes, quando Eugene a tinha visto, ela ainda estava visivelmente imersa nos dilemas da puberdade, preferindo se isolar no quarto. Mas agora parecia ter superado aquela fase, pois respondeu a Lovellian com um sorriso radiante e cheio de confiança.
Ao olhar para Ciel, agora com dezessete anos, Lovellian sentiu com clareza o peso do tempo. Já havia sentido algo parecido ao reencontrar Eugene, mas as crianças pareciam crescer num piscar de olhos. Quase não havia mais vestígios da imaturidade que ele lembrava de Ciel quatro anos atrás.
— Você comentou que veio escolher algo para o aniversário da Senhora Ancilla, foi isso? — perguntou Lovellian.
— Sim, senhor. Ah, e todos os presentes que o senhor me enviou ao longo dos anos estão enfeitando meu quarto lindamente — respondeu Ciel, sorrindo com charme.
— Haha, eu sempre gostei de ler suas cartas de agradecimento, senhorita Ciel. Estava até achando estranho não ter recebido nenhuma este ano… será que não gostou do presente que mandei?
— Não, não é nada disso.
Mesmo tendo sido uma pergunta meio constrangedora, Ciel apenas balançou a cabeça, mantendo o sorriso no rosto.
— Embora seja meio vergonhoso admitir isso… desde o começo deste ano, minha personalidade ficou sensível de várias maneiras. O presente que o senhor me enviou foi lindo, mas, estranhamente, eu simplesmente não quis pegar numa caneta e escrever uma carta de agradecimento — explicou Ciel.
— Ah… entendo. Na sua idade, senhorita, essas fases realmente podem surgir de repente — Lovellian aceitou a desculpa prontamente, sem parecer ofendido.
Lovellian nunca tivera filhos, então não sabia o que era sofrer como pai. Mesmo assim, já havia escutado várias vezes os lamentos de Gilead sobre ter que assistir à filha única passando pela puberdade.
— E aí chegou um ponto em que me pareceu grosseiro escrever uma carta e mandar para o senhor — continuou Ciel. — Mas mesmo assim, eu ficaria com remorso de ter aceitado seu presente como se fosse algo garantido… ainda mais agora que parece que não vai me mandar mais presentes a partir do ano que vem.
Ciel sorriu de forma travessa enquanto enfiava a mão no bolso. Ela tirou o que parecia ser uma pequena caixa de presente bem embrulhada e disse:
— Então escolhi um presente que achei que combinaria com o senhor, Sir Lovellian. Não é muita coisa, mas comprei depois de juntar minha mesada.
Lovellian prendeu o fôlego, surpreso.
— Oh…
— Abra logo — pediu Ciel com um sorriso suave.
Lovellian sentiu algo estranho, mas aconchegante, florescendo dentro do peito. Seria por isso que as pessoas se casavam e tinham filhos? Quando ouvia Gilead se derretendo de orgulho pelos filhos, não dava muita importância, mas agora, ao receber um presente assim, sentia que a emoção estava prestes a transbordar.
— Isto é… — a voz de Lovellian tremeu, assim como seus olhos, ao abrir a caixinha.
Dentro havia um prendedor de gravata de design elegante. Como Ciel havia dito, não era exatamente algo impressionante. Era bem-feito, talvez até um pouco caro, mas ainda assim era um item que qualquer um poderia comprar, contanto que tivesse dinheiro.
Mesmo assim, Lovellian sentia naquele presente um afeto muito maior do que o valor pago por ele. Jamais tinha recebido um presente como aquele em toda sua vida.
Ciel comentou:
— No começo, pensei em dar algo relacionado à magia, já que o senhor é um mago. Mas depois, pensando melhor, achei que provavelmente já teria muitas coisas assim.
— … — Lovellian permaneceu em silêncio.
— Aí, depois de muito pensar… percebi que o senhor está sempre usando túnicas. Mas pensei que, sendo o senhor quem é, Sir Lovellian, não poderia estar sempre de túnica—
— Vou me trocar e já volto — Lovellian se levantou de repente, interrompendo Ciel, que imediatamente deu uma risadinha e balançou a cabeça.
— Por favor, não faça isso. Em vez de me mostrar agora como fica, use no meu aniversário, no ano que vem — pediu Ciel.
— E por que eu tenho que esperar até o ano que vem? — protestou Lovellian com um ar desapontado. Estava doido para experimentar na hora.
Ao ouvir Lovellian implorando com a voz trêmula, Ciel continuou:
— Porque foi um presente que eu lhe dei. E embora eu não saiba se o senhor vai comparecer ao aniversário da minha mãe, por favor, não use nele também. Guarde para o meu. Assim vou poder me gabar para o Cyan e para os convidados.
“Mesmo depois de entrar na puberdade, continua tão maliciosa quanto sempre foi”, Eugene pensou com um sorriso, enquanto olhava de lado para o rosto sorridente de Ciel.
Embora também fosse bastante confiante ao lidar com adultos, Eugene tinha certeza de que não conseguiria competir com Ciel nisso.
Lovellian acabou cedendo:
— Hm… certo, entendi. Senhorita Ciel, por acaso tem algo que gostaria de ganhar no ano que vem?
— Vou ficar feliz com qualquer coisa que o senhor me der, Sir Lovellian. Ah, mas por favor, não exagere no presente. Meu irmão fica com ciúmes.
E se ele ficar? Lovellian não tinha a menor intenção de se importar com isso.
Desde a Cerimônia de Continuação da Linhagem, ele vinha mandando presentes para os gêmeos na residência principal todos os anos, e assim como Ciel, Cyan também lhe enviava cartas de agradecimento. Mas as cartas de Cyan sempre foram tão formais que, mesmo agora, Lovellian não conseguiria lembrar de nada do que ele havia escrito.
— …Hmph — Lovellian voltou a si com um grunhido, após passar um tempo encarando o prendedor de gravata com fascínio.
Olhou para o relógio pendurado na parede da sala de visitas e sorriu, desapontado.
— Parece que estou prendendo vocês dois há tempo demais — desculpou-se.
— Por favor, não diga isso — implorou Ciel. — De verdade, dizer que o senhor é quem está nos prendendo… Na verdade, nós é que devíamos pedir desculpas por roubar seu tempo precioso.
Como conseguia falar de forma tão encantadora? Lovellian balançou a cabeça, admirado, enquanto se levantava.
Lovellian dispensou o pedido de desculpas com um gesto:
— De jeito nenhum. Eu adoraria continuar conversando mais um pouco, senhorita Ciel… mas, como vocês têm compromissos a cumprir, vamos encerrar por aqui.
— Mas eu não me importaria de ficar mais um pouco… — Ciel murmurou, hesitante.
— Infelizmente não posso. Eu também preciso voltar ao trabalho — admitiu Lovellian.
Para confirmar os relatos dos Cavaleiros do Leão Negro, ele teria que aparecer no conselho pela primeira vez em um bom tempo. E, como Lovellian havia dito isso, Ciel não pôde mais insistir.
Eugene começou lentamente:
— …Nesse caso, eu também vou…
— Aonde pensa que vai? Você tem que vir comigo — exigiu Ciel.
— E por que eu faria isso? — retrucou Eugene.
— Porque esta é minha primeira vez em Aroth. Sendo assim, não acha que deveria me acompanhar e me mostrar o lugar? — argumentou Ciel.
— Eu também ficaria agradecido se pudesse fazer isso, Eugene — acrescentou Lovellian.
Tendo acabado de pôr as mãos no Manto das Sombras, Eugene tinha esperanças de descer para os laboratórios e testar seu desempenho… mas Lovellian já havia apoiado as palavras de Ciel. Com isso, Eugene alisou as sobrancelhas franzidas e assentiu, resignado.
- Isso se refere à aura branca em forma de chama que aparece quando a Fórmula da Chama Branca é ativada.[↩]
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