Capítulo 108: Os Leões Negros (9/9)
— Que estranho — murmurou Carmen ao tirar um novo charuto. — Como um mago negro de nível tão baixo conseguiu fazer contato com o filho mais velho da linhagem principal dos Lionheart e ainda arranjar um contrato pra ele? Esse sujeito deve ter arrancado o próprio fígado ou então é completamente louco.1
— Provavelmente só estava desesperado — veio a resposta do lado de fora da cela.
— Ele começou a praticar magia negra há dezenas de anos, mas não conseguiu grandes resultados. Se morresse assim, a alma dele se tornaria propriedade do demonídeo com quem tinha contrato, e ele nem teria direito à reencarnação.
Carmen permaneceu em silêncio.
— Por isso, achou que precisava tentar alguma coisa. Mesmo que se metesse em encrenca, ele provavelmente acreditava que poderia sair dela com a ‘força’ que ganharia vendendo o herdeiro da linhagem principal dos Lionheart.
Gavid tinha dito exatamente isso. Durante a tortura, gritava que tinha feito tudo por pura ganância.
— Ouvi dizer que Noir Giabella afirma que não teve envolvimento nisso — disse Carmen por fim.
— Mesmo que isso seja verdade, a Duquesa Giabella com certeza teria recompensado o íncubo se ele tivesse conseguido capturar o herdeiro da linhagem principal. E certamente não teria o punido — opinou a voz.
— E você? — indagou Carmen.
— Não entendo por que suas perguntas sempre acabam voltando pra mim — respondeu Balzac, do lado de fora da cela, dando de ombros. — Ainda mais considerando que colaborei com você em cada passo dessa investigação, e que já pedi desculpas e demonstrei respeito mais do que o suficiente.
— Em vez de acreditar que um mago negro insignificante possa estar por trás disso, faz mais sentido suspeitar que foi você quem arquitetou tudo — explicou Carmen.
— Ah. Eu entendo por que você pensaria isso. Mas, se esse fosse o caso… o que eu ganharia com isso? — Balzac apontou para o cadáver esquartejado de Gavid. — Se eu tivesse sido o responsável por planejar isso… jamais deixaria rastros. Teria feito tudo de forma tão meticulosa que ninguém conseguiria me associar ao caso. Não acha?
— Esse incidente foi extremamente desleixado. Usar um antro de drogas no meio da Rua Bolero como local de ritual, sério? E ainda por cima com guardas tão fracos que nem perceberam que um garoto de dezessete anos os estava seguindo, e não conseguiram impedir a interferência dele. Haha… mesmo que eu tentasse, não conseguiria fingir um fracasso tão patético.
— E se fosse de propósito? E se eles fossem pegos justamente para desviar a atenção? — sugeriu Carmen.
— Você está dizendo que eles são meus subordinados? Qual seria a lógica de eu mutilar minha própria carne assim? — Balzac deu uma risada baixa e, com um estalar de dedos, acendeu a ponta do charuto que Carmen mastigava. — Dame Carmen2, acontece que eu tenho muitos inimigos.
Carmen esperou que ele fosse direto ao ponto.
— Eu sirvo ao Rei Demônio do Encarceramento e sou grato pela confiança e pelo afeto que ele deposita em mim. Mas, por causa disso, há muita gente em Helmuth que não gosta do quanto ele me favorece.
— Tipo Edmond Codreth?
— Claro. Com certeza ele também me vê como um empecilho. Amelia Merwin provavelmente também não vai muito com a minha cara.
Nesta era, havia apenas três magos negros que haviam firmado contratos diretos com o Rei Demônio do Encarceramento:
O Conde de Helmuth e atual dono de Vladmir, Edmund Codreth.
O Mestre da Torre Negra de Aroth, Balzac Ludbeth.
A Soberana do Calabouço do Deserto de Nahama, Amelia Merwin.
— E claro, além desses dois, há muitos ‘demonídeos’ que não gostam de mim. Na minha opinião, um deles pode muito bem ter tentado me desmoralizar usando esse incidente como pretexto — Balzac expressou suas suspeitas.
— Mas você não tem nenhuma prova — apontou Carmen.
— Assim como também não há nenhuma prova de que eu esteja envolvido nesse incidente. Francamente… quantas vezes nesses últimos dias eu já disse que não tenho nada a ver com isso? — Balzac soltou uma risada contida e balançou a cabeça. — Aliás, Dame Carmen, será que eu sou mesmo o único suspeito que você tem?
— Você é livre pra despejar tudo o que estiver fervendo nessa sua cabeça — Carmen se endireitou, parando de se recostar na parede, e lançou um olhar afiado a Balzac. — Mas com essa liberdade vem a responsabilidade. Está disposto a se responsabilizar pelas suas palavras?
— Você realmente não tem outro suspeito? — Balzac ajustou os óculos com um sorriso traiçoeiro. — Como um fiel servo do Rei Demônio do Encarceramento, assim como ele deseja manter boas relações com o clã Lionheart, eu também. Por isso me curvei em desculpas, colaborei com sua investigação e demonstrei respeito. Mas, afinal, sou apenas humano… e não consigo reprimir totalmente esse sentimento de injustiça cravado no meu peito como um punhal.
— … — Carmen permaneceu em silêncio, imóvel como pedra.
— Sou Balzac Ludbeth. Mestre da Torre Negra de Aroth. Servo do Rei Demônio do Encarceramento. Embora eu entenda por que você se recusa a me mostrar qualquer respeito… diante de insultos tão excessivos… mesmo que seja em nome do Rei Demônio do Encarceramento ou por minha própria causa, não poderei manter essa consideração infinita — declarou Balzac, enquanto suas pupilas escureciam.
Naishon e Fargo, que estavam dentro da cela com Carmen, avançaram para bloquear a frente da cela com expressões endurecidas. Gion também levou a mão à empunhadura da espada em sua cintura, observando a situação com os olhos semicerrados, mais ao fundo da cela.
— …Eu realmente não desejo causar mais grosserias sendo uma visitante neste reino estrangeiro — suspirou Carmen, por fim.
— Se esse é o seu desejo, farei o possível para que ninguém veja suas ações como desrespeitosas — ofereceu Balzac.
— Mas, pra isso, seu pescoço precisa continuar preso ao resto do seu corpo.
Balzac não respondeu à ameaça descarada e apenas sorriu. Mas a sombra que ele projetava na parede da cela começou a se agitar. Carmen ainda o encarava friamente, até que deu de ombros e balançou a cabeça.
— Então parece que vou ter que continuar pensando a respeito — Carmen mudou de assunto.
— Pensando sobre o quê? — perguntou Balzac.
— Sobre quem, dentro do clã Lionheart, quer prejudicar o prestígio da linhagem principal — disse Carmen, como se tivesse decidido descartar Balzac como suspeito.
O clã Lionheart era grande demais. Nos últimos trezentos anos, tirando a linha direta de sucessão de Patriarca para Patriarca, todos os demais membros da família principal foram obrigados a se tornarem independentes e fundar seus próprios ramos colaterais. E não havia qualquer limite para a quantidade de ramos colaterais que poderiam existir.
Entre esses inúmeros descendentes colaterais, certamente havia alguns que guardavam rancor contra a linhagem principal.
— Foi só um palpite — admitiu Carmen, sem se desculpar. — Não conseguimos descobrir nada com tortura nem com magia mental. Estava tudo limpo demais. Foi por isso que suspeitei de você.
— Ora ora… então parece que eu exagerei nas palavras — disse Balzac, com ar envergonhado.
Eles haviam ficado completamente no escuro, sem nenhuma pista concreta de onde seguir.
Balzac falou, hesitante:
— Preciso dizer que o que vou comentar agora não é nada… ‘limpo’. E não há motivo algum para que você confie em mim nisso.
— Vá em frente — cedeu Carmen.
— Se precisar de ajuda, posso lhe oferecer meu poder. Caso deseje, é claro… Ah, é verdade. A alma do Gavid ainda não deixou este lugar… quer que eu a invoque?
— Não quero ver sua magia imunda, e não quero sua ajuda nessa investigação, já que você pode muito bem aproveitar isso pra nos passar a perna no processo.
— Haha…
— E a cabeça do Olpher?
— Posso mostrar, mas não é uma visão agradável.
— Já vi muitas coisas cruéis e terríveis. Como, por exemplo, o que está bem na minha frente.
Apesar de dizer isso, Carmen não lançou o olhar para o cadáver de Gavid. Seus olhos semicerrados permaneciam cravados em Balzac. Na visão dela, a coisa mais cruel e terrível ali não era o cadáver morto pela tortura, mas o mago negro ainda vivo.
— Se é assim que se sente — Balzac deu de ombros.
Com um estalar de dedos, a sombra de Balzac começou a se erguer lentamente do chão. A sombra segurava, com uma mão negra, a cabeça decapitada de um íncubo bonito.
— A alma dele foi colhida pelo Rei Demônio do Encarceramento. Se quiser, posso pedir que ela seja entregue a você — ofereceu Balzac.
— Não há necessidade — recusou Carmen.
Com um sorriso, Balzac depositou a cabeça de Eoin Olpher no chão da cela. Carmen imediatamente deu um chute nela.
Crack!
A cabeça de Eoin Olpher se chocou contra as grades da cela e se despedaçou. Do outro lado das barras, Balzac foi atingido por sangue, ossos e pedaços de cérebro no rosto e nas roupas, mas o sorriso dele nem vacilou.
— Vamos voltar — ordenou Carmen, limpando a jaqueta que trazia sobre os ombros ao sair da cela. Parando diante de Balzac, ela o advertiu: — …Vou deixar isso claro, por via das dúvidas. Eugene Lionheart. Ele está sob os cuidados da Torre Vermelha de Magia. Se você sequer se aproximar dele…
— A única entidade capaz de comandar minhas ações e vontades é o Rei Demônio do Encarceramento — interrompeu Balzac antes que Carmen terminasse. Com a ponta dos dedos, ele tirou os óculos manchados de sangue e, virando-se de costas, concluiu: — Dame Carmen, você não tem poder algum sobre mim.
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